PICICA: "Não sem razão, a
tomada de posição de Eduardo Viveiros de Castro, na eleição presidencial
de 2010, teria configurado não somente um apoio formal, de mais um
intelectual, à candidatura Marina, mas sua própria apresentação como
chantre de uma Weltanschauung e de uma razão filosófica envolvidas em sua prática política3.
Quer dizer, falo de minha relação com as insuficiências ou problemas
colocados por essa concepção da diferença que encontra em nós um
adversário cortês, porém resoluto, no sentido “misosófico”, segundo o
qual a relação com o inimigo, no pensamento, implica uma profunda
admiração (a inimizade como “determinação transcendental”)4.
É verdade que a nova ou outra metafísica permite erigir a diferença em
princípio absoluto, mas por isso mesmo ela a confunde com a nova direção
apontada e refaz a ilusão de uma redenção, afinal o que seria esse
espaço de perspectivas reversíveis, de diferenças federalizadas, de
relações simétricas senão o mundo diplomático das belas almas? Ora, não é
suficiente quebrar a representação se nos ativermos a uma potência
fabuladora que implica a diferença como seu princípio metafísico, como
novo nome do absoluto – é sair da transcendência vertical moderna, e se
deixar embalar por uma sedutora transcendência horizontal contemporânea,
de imanência, rizomática, como já problematizei em outro momento."
Marina Silva: razões filosóficas
13/03/2013
Por Cléber Lambert
Uma das tarefas de uma filosofia que se confunde com o que se chama de “nova” ou “outra metafísica”1
seria a de nos auxiliar a pensar o mundo não a partir de formas
prontas, já dadas, cuja única função seria a de reconhecê-lo, ou seja,
através de uma imagem representativa.
Segundo essa imagem, as formas de perceber e pensar o mundo são parte
da ordem social instituída e se interessam por tudo que é da ordem do
estável, do dado, do idêntico. A “outra metafísica” deveria, ao
contrário, interessar-se por algo que escapa a essas formas habituais,
ou seja, aos sinais que sugerem o movimento de uma novidade que se faz,
que não cessa de se fazer no tempo, no limiar mesmo de uma contínua
abertura ao futuro. A formação, em torno de Marina Silva, do movimento
“Rede Sustentabilidade” oferece-se como uma ocasião privilegiada para
essa visada filosófica, mas também como exemplo do quanto podemos
encontrar no mundo apenas aquilo que nele buscamos: esquemas habituais e
enrijecidos que nos tornam cegos ao “fato da imprevisível novidade no
mundo” (H. Bergson).
Com efeito, entre seguidores
e detratores de Marina Silva há aqueles que parecem partilhar essa
mesma percepção representativa. Entre os adeptos, afirma-se que a
emergência da Rede consistiria na sua potência em transcender o debate
bipartidário que domina a situação política nacional, criando um novo
espaço de diálogo, convergência e consenso para a construção, que seria o
que importa no mundo contemporâneo, onde o esgotamento e a destruição
parecem imperar. Não deixam claro, porém, quais problemas nos conduziram
à oposição sem diferença em que vivemos, nem qual a diferença concreta
do novo problema que mobilizaria a necessidade da construção, de um novo
esforço. Já entre os críticos, multiplicam-se as acusações: seria
apenas mais um partido a tornar mais espesso o caldo partidário
indiferenciado existente, Marina Silva não passaria, no melhor dos
casos, de uma nova líder carismática, no pior, de uma fundamentalista
cristã catalisando o sentimento confuso de desencantados insensíveis aos
verdadeiros e mais urgentes problemas do país (desigualdade, por
exemplo), reunindo apoiadores financeiros dos setores mais conservadores
da sociedade, etc.
Embora
possamos encontrar, de um lado e de outro, matéria para discussões cuja
utilidade é incontornável, a “nova metafísica” deveria se interessar
por uma diferençaque implica uma suspensão dos próprios termos em que se constituiria essa discussão entre adeptos e críticos, mesmo que seja para a eles voltar em seguida, com outra imagem, dessa vez mediadora e não mais representativa2
– ou seja, não mais colada a eles numa perfeita aderência à ordem
social, mas capaz de deslocá-los e de reavivá-los com uma nova
tonalidade, capaz de formar assim uma nova perspectiva, uma linha de
fuga em relação à ordem instituída. Abandonar essa imagem representativa
far-se-ia necessário, pois, do lado dos críticos, ela aniquila a
diferença de Marina Silva nela projetando esquemas já prontos e que
fartam a realidade política há tempos; igualmente do lado de
determinados adeptos, ela neutraliza a diferença ao supor que a saída da
dicotomia estéril na qual nos encontramos seria capaz de nos conduzir a
um espaço transcendente e neutro.
Ora, a diferença que
moveria Marina Silva não poderia ser medida por essas imagens
representativas. Não se trataria de uma diferença meramente exterior,
dessas que permitem comparações e distinções a partir de categorias já
prontas. A diferença que interessaria a essa outra metafísica é mais
sutil, mais secreta, o que explicaria que Marina tenha podido escapar de
certas cristalizações, capturas e neutralizações nesses últimos anos de
sua vida política (por exemplo, quando já não conseguiu levar a frente
suas políticas no Ministério do Meio Ambiente, ou quando não obteve
sucesso em sua proposta de transformar o Partido Verde…). O que
embalaria Marina Silva é propriamente uma diferença interna, ou seja, um
elã ou força fabuladora
capaz de bagunçar os lugares, introduzir um princípio de divergência lá
onde as partilhas dos lugares, sujeitos e funções estariam feitas
segundo uma ordem dada. Contudo, a essa altura, é evidente que a outra
metafísica não apenas nos permite apreender a diferença, como também,
mais profundamente, concebe nessa impulsão uma via política possível,
adequada ao nosso tempo.
Dessa
maneira, é com a expressão deleuziana “fazer pensar” que o antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro referiu-se aquilo que, em Marina, poderia
dizer respeito a essa nova maneira de fazer política, ou seja, a esse
impulso fabulador que força o pensamento a especular outros mundos
possíveis diante do pathos
do desastre e da catástrofe a saturar o horizonte do mundo
contemporâneo. A força “hacker” de sua “r(R)ede” residiria em sua
capacidade em multiplicar as diferenças internas, em disjuntá-las, pois
somente esses deslocamentos e reviravoltas poderiam nos fazer pensar
“outramente”, variar nossa imaginação, contagiar-nos desse impulso, o
qual, por sua vez, seria o único capaz de lançar possibilidades de uma
nova sensibilidade vital. Não é senão seguindo tal precipitação que a
construção, agora bem determinada em sua imanência, ganharia seu sentido
pleno: o de um processo vital com o qual seria preciso se conectar e não de um modelo já dado que poderíamos seguir confortavelmente e bem vigiados.
Seguindo esse começo do pensar no pensamento,
a nossa vida deixaria de ser inteiramente “nossa”, ela se confundiria,
através da imagem mediadora, com o próprio movimento da diferença.
Seríamos, então, capazes de ver,
talvez, em toda sua evidência, uma vida mais ampla, mais urgente, mais
próxima de um misterioso elã criador de novidade no mundo, finalmente
compreendido como um “multiverso”: de perspectivas, de naturezas, de
relações. Vislumbraríamos um Direito ainda difuso e a biopolítica ganharia em amplitude. Os filósofos G. Deleuze e F. Guattari (O que é a filosofia?)
diziam que o pensamento sente-se mais próximo de um animal que agoniza
do que de um homem vivo, ainda que democrata. Viveríamos um momento onde
os animais, as demais formas de vida e mesmo algo como uma vida
inorgânica dos elementos sentiriam cada vez mais próxima deles uma
sensibilidade cuja introdução na situação política nacional Marina Silva
teria tido a coragem de efetuar, não sem nos demandar um esforço para
deslocar, a condição de quebrarmos os esquemas já prontos, essa situação
rumo a novas margens, emergentes nos dois sentidos da palavra, como ela
pôde apontar recentemente.
Ao
recusar ver essa novidade em seu esplendor, o arranjo de forças,
lugares e perspectivas no qual ela emerge, com o qual se confunde ou do
qual já participa efetivamente,
um grande prejuízo poderia ser esperado, pois o que tem a força da
absoluta novidade avança apesar dos obstáculos que podem, mais cedo ou
mais tarde, desacelerar, interromper ou desviar sua marcha. Diante
disso, se não formos capazes de apreender seu impulso, menos ainda o
seremos de inventar, por nós mesmos, as alianças e modos de resistências
que certamente a nova situação poderá demandar, se é que já não nos
demanda. Com efeito, muitas são as situações concretas em que
consentimos em partilhar “uma parte do caminho, como a agulha da via
férrea quando adota durante alguns instantes a direção do trilho do qual
ela quer destacar-se”, para fazer uso novamente desse “metafísico
outro”, que seria H. Bergson. Essa imagem aplica-se à relação de Marina
Silva com a realidade política na qual ela deseja se re-inserir,
apontando para outra direção, onde o velho e o novo parecem se
confundir.
No entanto,
não posso deixar de usar a mesma imagem para a minha própria relação
com a concepção metafísica que tornou possível a abordagem acima e que é
partilhada por alguns posicionamentos teóricos fortes na atualidade a
maneira de um mesmo plano ou imagem do pensamento. Não sem razão, a
tomada de posição de Eduardo Viveiros de Castro, na eleição presidencial
de 2010, teria configurado não somente um apoio formal, de mais um
intelectual, à candidatura Marina, mas sua própria apresentação como
chantre de uma Weltanschauung e de uma razão filosófica envolvidas em sua prática política3.
Quer dizer, falo de minha relação com as insuficiências ou problemas
colocados por essa concepção da diferença que encontra em nós um
adversário cortês, porém resoluto, no sentido “misosófico”, segundo o
qual a relação com o inimigo, no pensamento, implica uma profunda
admiração (a inimizade como “determinação transcendental”)4.
É verdade que a nova ou outra metafísica permite erigir a diferença em
princípio absoluto, mas por isso mesmo ela a confunde com a nova direção
apontada e refaz a ilusão de uma redenção, afinal o que seria esse
espaço de perspectivas reversíveis, de diferenças federalizadas, de
relações simétricas senão o mundo diplomático das belas almas? Ora, não é
suficiente quebrar a representação se nos ativermos a uma potência
fabuladora que implica a diferença como seu princípio metafísico, como
novo nome do absoluto – é sair da transcendência vertical moderna, e se
deixar embalar por uma sedutora transcendência horizontal contemporânea,
de imanência, rizomática, como já problematizei em outro momento.
Para além ou aquém dessa concepção especulativa, é preciso ser atento a uma filosofia prática, segundo a qual não é senão numa situação material,
ou seja, numa multiplicidade qualquer, que se instauram processos de
singularização que, a cada vez, determinam a direção que a agulha deverá
tomar, bem como as condições segundo as quais uma organização social
pode ser atualizada, o que jamais a mera especulação, realista, perspectivista ou simetrizante,
poderia efetuar, visto que permanecem enredadas na relação principial
que liga o pensamento a um Absoluto (que seja de transcendência ou de
imanência, o Grande Fora, o Virtual ou a Diplomacia, pouco importa). Não
há emoção criadora nem novidade senão como efeitos de decisões,
de verdadeiros processos de singularização, capazes de realizar uma
convergência de lutas múltiplas, ou seja, de linhas de fuga,
perspectivas e relações que, entregues a elas mesmas, poderiam se diluir
ou restaurar velhas estruturas em novas formações de poder.
Somente
quando a fabulação coincide com um ato de decisão é que política se
torna instauração e, ao mesmo tempo, a metafísica se torna
experimentação. Mais do que a reivindicação dogmática de uma ou outra
direção como sendo aquela realmente capaz de oferecer o novo, deveríamos
celebrar o fato de “não sabermos o caminho”, condição para a prática de
sua contínua invenção. Resta saber se Marina Silva fará outra coisa que
não somente fabulação, se ela será capaz de decisão. De toda maneira, as razões filosóficas num caso e noutro não podem ser as mesmas.
————————————–
NOTAS:
1 O uso, neste artigo, desses termos remete, num primeiro momento, a Pierre Montebello que, ao formulá-los, em seu livro Autre métaphysique,
Desclée de Brouwer, 2002, preocupou-se em depreender das filosofias de
Ravaisson, Tarde, Nietzsche e Bergson uma outra via para aceder ao
Absoluto, uma via propriamente não-grega, ou seja, não pressupondo um
dualismo entre espírito e matéria, mas capaz de reencontrar o Absoluto
na vida, na matéria, na consciência. Nesse sentido, a outra metafísica
seria uma ontologia da natureza que desembocaria, entre outros, numa
filosofia como a de Gilles Deleuze. No entanto, de maneira mais geral,
com esses termos, entendo um conjunto heterogêneo de iniciativas e
posicionamento teóricos que pressupõem uma nova aliança em torno da
especulação, ou seja, em torno desse compromisso que ligaria a experiência do pensamento ao esforço de contato com o Absoluto,
o qual, entretanto, deve ser entendido não mais como princípio
transcendente, seja qual for sua determinação (subjetiva ou objetiva),
mas como princípio imanente cuja presença pode ser reencontrada em cada
ser singular. Em outras palavras, a outra metafísica, assim como a
clássica, consiste numa filosofia principial.
2
Encontramos a noção de « imagem mediadora » no filósofo H. Bergson,
para quem ela significa o termo intermediário entre a “simplicidade da
intuição filosófica concreta” e a “complexidade das abstrações que a
traduzem”. A imagem mediadora exprime o esforço de um pensamento que vai
da complexidade de uma doutrina filosófica até a intuição simples que
ela envolve: ela não traduziria essa intuição simbolicamente, mas
permitiria ver diretamente o que a intuição dá a ver.
3
É o depreendemos da “reflexão” de Viveiros de Castro a respeito do
“significado da candidatura de Marina Silva”, disponível em vídeo no
seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=dyzz8KDf6jg
4 No artigo « Qu’est-ce qui parle à travers nous ? », na revista Rue Descartes n° 76,
de Peter Pal Pélbart, vemos como o materialismo superior e o
imanentismo ameríndio formam duas linhas divergentes e aberrantes de um
mesmo impulso, aquele do pensamento do Fora, como também pode ser
chamada a “outra metafísica”. Ainda que ele chame a atenção, lançando
mão da reflexão de Zourabichvili acerca da relação entre Deleuze e
Negri, para o fato de que é uma “alegria” estar diante de “dois
pensamentos” ao invés de um só, em relação a esse impulso, ao menos, cuja “penetração” foi profunda no Brasil, não estaríamos diante de duas expressões da outra ontologia,
uma constitutiva, a outra canibal, uma materialista, a outra animista?
Poderíamos escavar mais a questão com a seguinte interrogação: qual
dessas linhas chega a fazer o impulso passar, sem se deixar envolver
pelas ilusões que parecem envolvê-lo, ou sem deixar se enrijecer em
slogans de imanência? Ou seja, qual delas determinaria as condições sob
as quais as linhas de fuga suscitariam forças revolucionárias (máquinas
de guerra) ou permaneceriam anedóticas (tentativas individuais, pequenas
comunidades), até se diluírem numa espécie de “abandonismo às
fatalidades”? Desse ponto de vista, que é aquele da necessidade de uma
“centralidade organizacional”, como dizia Guattari, capaz de “acelerar a
cristalização de um modo de organização social menos absurdo que o
atual”, a antropofagia não tem outra saída a não ser se tornar
materialista, ao mesmo tempo em que o materialismo se torna racionalista
– mas o racionalismo de um “cogito canibal” – e pluralista, fazendo com
que o impulso passe na medida mesmo em que desfaça sua forma principial
ou ontológica (a forma última do colonialismo) para se tornar o plano
ou situação material pré-individual (“uma vida…”) onde cristalizações
transversais possam, de fato, instaurar tramas multitudinárias e
multinaturais. Sobre essa questão da cristalização, da centralidade
organizacional das forças revolucionárias e dos perigos da linha de
abolição, remeto ao artigo de Roger Lambert, “Hip Hop, processos de singularização e as máquinas de guerra”, disponível igualmente no site da Uninômade.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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