março 30, 2013

"Jean Wyllys, os tabus e as contradições da “questão evangélica”", por Bruno Cava

PICICA: "Uma das poucas vezes em que se pôde compreender politicamente a relação dos pobres com a religião e o cristianismo, foi na época da fundação do PT e do MST, quando as pastorais católicas exerceram um papel fundamental e incontornável.

Só durante o governo Lula, que soube compreender e se deixar atravessar por essas dinâmicas e subjetividades, foi possível agenciar uma força política com os pobres. Esse agenciamento atravessa, sem dúvida, o trabalho de base realizado pelas igrejas em todo o território nacional. Nenhuma força de esquerda tem influência política à altura dessa cauda longa de igrejinhas, cultos e comunidades. O governo Lula soube se ligar ao movimento, como a muitos outros “desde baixo”. Não à toa, o tremendo realinhamento eleitoral a partir de 2006, quando o voto do pobre migrou decisivamente da direita à esquerda partidária. Momento próximo, aliás, de quando parte da velha esquerda, ainda que repaginada com o colorido da diferença, porém reproduzindo os mesmos erros de 100 anos, passou a acusar o governo de traição. Quando se passam a sínteses mais amplas sobre a realidade brasileira, muitas vezes o discurso centrado na diferença se torna ambíguo em relação ao protagonismo dos pobres, sua feição, sua “consciência”. Para mim, isso ficou bem claro naquele embate entre “progressistas” da pauta LBGT e “progressistas” do campo evangélico, embora a questão transcenda esse recorte." 

Jean Wyllys, os tabus e as contradições da “questão evangélica”
 

No último dia 21, compareci na Glória para o lançamento do livro Religião e política, que trata “da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil”.

Na mesa, estavam duas pesquisadoras, um membro da secretaria de direitos humanos do Rio, o deputado Jean Wyllys e um pastor metodista da rede política de evangélicos Fale. O auditório era eclético, com militantes de movimentos LGBT e negro, ativistas do campo evangélico, um sacerdote muçulmano, mais pesquisadores e estudantes em geral. Uma composição que poderia propiciar, pela vontade construtiva, pontes entre os vários “campos”, diante das perplexidades da política brasileira contemporânea. É salutar ir além dos “campos” que a grande imprensa e o senso comum delimitam diariamente, em conveniente reducionismo, mas que certamente não correspondem à complexidade das forças políticas envolvidas.

As exposições foram boas, sobre a difícil luta das minorias num país com ainda poucos direitos às mulheres, negros, LGBT, índios etc. As pesquisadoras falaram sobre a pesquisa e basicamente expuseram os desafios do movimento, no contexto de aberto discurso antiminorias por parte de parlamentares das bancadas evangélica, católica e da família brasileira. Jean, como sempre, fez uma boa fala ao rememorar a história dos preconceitos no Brasil, se referir à permanente desqualificação de seu discurso e atuação corajosa, por ser homossexual assumido, bem como a constância da violência homofóbica e do bloqueio a pautas inadiáveis, por exemplo, a legalização do aborto ou o casamento igualitário. A modernização do Brasil Maior não está contemplando as minorias, o que fica óbvio quando um deputado homofóbico como Marco Feliciano encabeça uma comissão de direitos humanos e minorias.

Até aí, não poderia concordar mais.

O problema começou quando Jean Wyllys foi além da pauta imediata que ele trabalha, para apresentar sínteses sobre a “questão evangélica” no Brasil. Embora tenha citado alguns aliados entre grupos e lideranças religiosas, a meu ver, terminou por reproduzir vários preconceitos e generalizações. O que é duplamente problemático. No final das contas, essas generalizações atuam exatamente para fortalecer os homofóbicos evangélicos, e o conservadorismo que grassa em muitos coletivos e grupos socias brasileiros, de matiz religioso ou não.

Faço obviamente uma interpretação do que ouvi:

Para Jean, existe um avanço do neopentecostalismo no Brasil. O governo Lula não só foi conivente com esse avanço, ao se aliar com forças políticas do campo evangélico, como adubou as suas condições nas bases. É que ocorreu um declínio do ensino público no governo Lula. O déficit educacional abriu as portas para a maior alienação das pessoas. Quem melhor aproveitou a situação foram as igrejas evangélicas e os pastores. Oportunistas, eles trataram de manipular mentes e corações, e foram construídas fortunas, verdadeiros negócios e bancadas parlamentares em cima disso. As conquistas sociais do governo Lula foram muito limitadas: teria acontecido uma inclusão pelo consumo. Daí os pobres sejam mais induzidos a comprar carro, casa e ipad, do que em lutar por direitos. Sem senso crítico, enfim, não é possível acolher a diferença no mundo da vida (nessa altura, o deputado citou Hanna Arendt). Isto é, não é que os pobres tenham culpa: o problema central é a educação.

Simplesmente não dá pra engolir essa narrativa. Alguém que se construiu politicamente ao redor do discurso da abertura à diferença, não pode se fechar de maneira tão reducionista, à beira da intolerância. Os evangélicos presentes, em sua maioria (provavelmente todos) também contra Feliciano, se sentiram atingidos pela fala. O último a falar, o pastor metodista da rede Fale (que apresentou uma petição com 20.000 assinaturas de evangélicos contra Feliciano), pontuou que não se podem desconsiderar as tensões internas e divisões no que a imprensa e o senso comum apresentam monoliticamente como “campo evangélico”. Que qualquer estratégia de resistência à bancada conservadora, que inclui deputados evangélicos, não pode prescindir dos próprios evangélicos. No entanto, naquele momento, a ideia de erigir pontes praticamente se esfacelava na esteira da fala do deputado.

Evidentemente, nas intervenções de apoiadores de Jean e/ou do movimento LGBT, ele foi muito aplaudido. Isso apenas me deixou mais angustiado com o fogo cruzado. Parecia incorrermos numa dicotomização que reforça tanto os evangélicos homofóbicos e autoritários, quanto certo discurso ambíguo por dentro dos movimentos pró-diferença, quando ampliam os horizontes de análise, e que acabam reproduzindo preconceitos contra o pobre brasileiro e sua “ascensão” na última década. Por sinal, essas tendências conservadoras, no movimento evangélico ou gay, não estavam ali presentes, ou pelo menos não majoritariamente.

Parte do problema, em que Jean pelo menos esbarrou nalguns momentos, está na aplicação da famosa “hipótese Lula”, quase um “padrão PSOL” de crítica ao governo e o governismo. Para desqualificar a massificação de políticas sociais, lhes atribui um caráter meramente assistencialista e eleitoreiro. O que se nivela com os argumentos da direita brasileira, desde sempre desqualificadora do pobre, e para quem a grande referência do Brasil moderno é a classe média branca e ilustrada (eles mesmos). O discurso educação-vem-primeiro tem muito a ver com a percepção de que os pobres sejam deseducados, sem “consciência política”, suscetíveis à “sedução”, e que antes de lhes conferir poder e influência devam ser salvos da ignorância por quem já estudou. Sustentam, ainda que nas entrelinhas, que o pobre necessita de formação para chegar no patamar crítico, esse que a esquerda branca e ilustrada já teria atingido, a única ainda capaz de razão desinteressada. Sem isso, não se pode ter democracia voltada ao interesse geral, e recaimos todos cronicamente no patrimonialismo, o qual, segundo a tese conservadora, é a grande doença do estado brasileiro.

E parte do problema está na equação evangélico = fundamentalista = direita reacionária e obscurantista. Essa generalização não só contorna a complexidade de tendências e forças dentro do “campo evangélico”, como fortalece os vetores conservadores, como, por exemplo, o que mantém o mandato de Marco Feliciano. A bancada evangélica é minoria em relação à bancada da família brasileira — por que o foco frequente só nela? Vamos, sim, combater Feliciano, os evangélicos homofóbicos, mas com igual raiva e empenho os católicos homofóbicos, os ateus racistas, os socialistas machistas. Afinal, nada é mais fundamentalista e ameaçador, como comprova a história das lutas, do que a elite brasileira, obscurecida por histerias e temores e ódios intestinos, e a quem serve uma ordem social violentamente racista, patriarcal e classista que assassina diariamente as minorias. Como se o “avanço dos evangélicos” fosse uma onda ameaçadora, obscurantista, um perigo contra o “estado laico” e a tolerância, num país que jamais conheceu democracia na base, e cujo único momento de real mudança se deu nos últimos 10 ou 15 anos.

Vivemos a versão brasileira da islamofobia: o avanço evangélico equivale ao “perigo árabe”. Mas, no nosso caso, em vez de a Europa ocupar o lugar da civilização assaltada pela mancha bárbara, aqui é a classe média branca e ilustrada, quer dizer, a nossa própria mini-Europa pretensiosamente evoluída, que não por acaso adora passear em pontos in de cidades charmosas do velho mundo (Jessé Souza). É como se a própria Europa não tivesse se construído a partir dos bárbaros, árabes e imigrantes; como se a própria classe média brasileira, branca e ilustrada, com sua boa consciência forjada num mérito a-histórico, pudesse existir sem a exploração sistemática dos pobres, a violência e o racismo.

Quando se perseguem os crentes e se demonizam os cultos neopentescostais, é favorecido o discurso pastoral mais achatado, que robustece uma “identidade evangélica” e uma pauta voltadas à pior moral cristã. Estamos fazendo o jogo do inimigo, como naquelas disputas entre extremistas que se alimentam reciprocamente. A bancada evangélica agradece. Nesse aspecto, falta vivência e pesquisa para a esquerda branca e ilustrada, contumaz no erro histórico de não compreender o funcionamento dos arranjos produtivos e subjetividades entre os pobres. No Brasil, esse é um erro clássico que vem desde a aparição das primeiras camadas médias urbanas, passa pela esquerda pré-1964, atravessa a luta contra a ditadura (que não soube valorizar as bases), até o movimento antineoliberalismo dos anos 1990 (preso aos slogans estatólatras).

Uma das poucas vezes em que se pôde compreender politicamente a relação dos pobres com a religião e o cristianismo, foi na época da fundação do PT e do MST, quando as pastorais católicas exerceram um papel fundamental e incontornável.

Só durante o governo Lula, que soube compreender e se deixar atravessar por essas dinâmicas e subjetividades, foi possível agenciar uma força política com os pobres. Esse agenciamento atravessa, sem dúvida, o trabalho de base realizado pelas igrejas em todo o território nacional. Nenhuma força de esquerda tem influência política à altura dessa cauda longa de igrejinhas, cultos e comunidades. O governo Lula soube se ligar ao movimento, como a muitos outros “desde baixo”. Não à toa, o tremendo realinhamento eleitoral a partir de 2006, quando o voto do pobre migrou decisivamente da direita à esquerda partidária. Momento próximo, aliás, de quando parte da velha esquerda, ainda que repaginada com o colorido da diferença, porém reproduzindo os mesmos erros de 100 anos, passou a acusar o governo de traição. Quando se passam a sínteses mais amplas sobre a realidade brasileira, muitas vezes o discurso centrado na diferença se torna ambíguo em relação ao protagonismo dos pobres, sua feição, sua “consciência”. Para mim, isso ficou bem claro naquele embate entre “progressistas” da pauta LBGT e “progressistas” do campo evangélico, embora a questão transcenda esse recorte.

Parte fundamental do problema, e isso consiste num tabu, está no preconceito da esquerda que inverte o sinal desse empoderamento político dos pobres, muito acelerado no governo Lula. Mobilizados produtivamente por renda e consumo, os pobres galgaram um poder político inigualável em épocas anteriores. A ascensão dos evangélicos está assentada, de fato, nesses arranjos produtivos e subjetividades. É por isso mesmo que, dentro do “campo evangélico”, também pulsem tendências e tensões “progressistas”, quiçá um devir-minoritário! Obviamente, testar essa hipótese não passa pelos esquemas retrógrados da grande imprensa e do senso comum, nem do esquerdismo cuja militância não vai longe, que fala entre si e encontra sempre as mesmas figuras.

É preciso mudar as coordenadas de tempo e espaço da militância. Isso exige vivência, copesquisa, sair da zona de conforto onde temos um discurso pronto e esquemático, que inclusive nos constitui, mas que falha no critério básico da prática. E que bateu no teto, não tendo como reunir mais forças para ser efetivo.

Trata-se mesmo de uma tarefa emergencial. Ficando apenas na zona de conforto ativista, o avanço, esse sim, dos homofóbicos, racistas e machistas vai continuar. Até se pode derrubar Feliciano, mas as manchas obscuras e desconhecidas, para nós, continuarão a avançar, gerando perplexidade e contradição. Os bárbaros já estão dentro. São os pobres. É preciso reaprender tudo, voltar à prancheta, e sem preconceitos mergulhar na composição de classe, a única que pode, em escala, mudar o mundo para melhor. Eles já estão fazendo isso, e não vão continuar pedindo a nossa opinião por muito tempo, se não soubermos mudar de perspectiva.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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