"RECUSAR", por Fabricio Toledo de Souza
PICICA: "Como
então evitar a cumplicidade e o acoplamento? Não se trata apenas de
recusar a inércia da cadeira do escritório e o vazio dos princípios
gerais, das burocracias, normas e institutos. É preciso, acima de tudo,
recusar a aliança com o poder, em sua forma mais microscópica, mais
banal e diária. Não é a toa que Foucault gritava: não caia de amores
pelo poder[i].
Recusar às vezes já é bastante coisa. Fugir, mas na fuga procurar uma
arma. Recusar, mas na recusa montar uma outra máquina. Nomadizar o
pensamento e a própria subjetividade. Colocar a vida em questão. Montar
dispositivos de luta contra a captura, contra a má-consciência, contra
as ideologias, contra o excesso do trabalho vazio e morto. Se o
trabalho e a própria vida foram investidas pelo poder, todo trabalho e
todo gesto são também resistência, são oportunidades de produção de
vida. Neste sentido, resistir é o esforço diário de uma vida inteira.
Ainda que seja necessário mentir, disfarçar, dissimular, falsificar,
fraudar, todo esse esforço de se posicionar de uma certa maneira diante
da verdade."
RECUSAR / Fabricio Toledo de Souza
RECUSAR – Fabricio Toledo de Souza
Fugir,
desviar, mentir, recusar, silenciar, paralisar, ceder, esconder,
esquivar. Toda uma série de gestos que diríamos negativos, que nos
parecem mais um recuo do movimento do que propriamente uma ação. O
refugiado que foge, o operário que recusa, o condenado que se esquiva, a
criança que mente, a mulher que desvia, o louco que silencia. Diriam
alguns que são movimentos da impotência porque motivados por forças
alheias. Será mesmo? Chegamos a supor que sejam recuos porque se
destinam apenas à sobrevivência imediata e à preservação do corpo
biológico. Mas já não é o bastante?
Cada
um destes movimentos, no entanto, está repleto de outros tantos gestos:
caóticos, prenhes, desviantes. É possível então imaginar outras séries:
o refugiado que mente, o operário que foge, a mulher que recusa, o
louco que desvia… A mulher que foge, o operário que mente, o louco que
recusa… Infinito.
O
amigo filósofo já nos dava a dica: fugir, mas na fuga procurar uma
arma. Mas há casos em que a fuga já é a arma, acionando implosões,
distúrbios, choques, caos. Lembramos de Melville e do escrivão
enigmático: “eu preferia não”. E também lembramos de Geni, o excesso de
devir minoritário da mulher, a histeria levada ao extremo absoluto,
destroçada no desvio esquizo, a mulher-rainha, ainda e sobretudo, rainha
dos detentos, das loucas e dos lazarentos, aquela que preferia amar com
os bichos. O que importa não é que Geni tenha salvado a cidade do
zepelin gigante, mas que ela esteja fundando a mulher-além-da-histeria,
além-da-falta, a vadia em excesso, a além-mulher. Experimente beijar um
louco na boca.
A
respeito da fuga, o que importa menos é o seu caráter involuntário. A
fuga já é resistência e como tal é potência ontológica. Não apenas
sobrevivência. É mesmo mais vida, uma vida maior, adicionada de outros
movimentos, expansões, alianças. O corpo do congolês que foge tende a
compor em sua fuga novas forças, um novo pensamento, um povo inteiro no
lugar do Estado-parasita e de sua guerra de perversões com os rebeldes.
Há uma imensa multidão fugindo dos Congos-do-mundo, estes lugares onde o
capitalismo se revela em toda a franqueza e falta de sofisticação,
decepando braços, abrindo ventres, estuprando mulheres, suicidando
ativistas. Mesmo dentre o pobre povo congolês, o capitalismo não para de
inventar minorias: há os mais pobres, há as mulheres, os pigmeus e
todas as minorias de uma minoria, os mais assassinados que outros, um
infinito de perversidades. E nós sabemos que Congo, Haiti, Ruanda,
Pinheirinho e Os Sertões estão em toda parte. E sabemos que não há
tempos para metáforas.
E o que tenho a ver com isso?
O
jovem refugiado congolês me interpelou docemente. Era já um velho
conhecido. Estava visivelmente contrariado, mas não perdia a doçura.
Contrariado com as notícias sobre o pequeno número de congoleses que
foram reconhecidos como refugiados no Brasil. O Brasil que cresce.
Brésil, Brazil. Diria que estava mesmo indignado, mas mantinha-se doce,
como é seu jeito. Dirigia-me perguntas duras e simples, diretamente para
mim, com seu sotaque familiar, de “erres” puxados. Contou com
impaciência os problemas de seu país. A guerra, o estupro indiscriminado
de mulheres e meninas, o recrutamento forçado dos meninos, as
mutilações, a exploração nas minas, a impunidade, a corrupção
generalizada, a falta de justiça, tudo aquilo que lemos nos relatórios e
que ouvimos de muitos e muitos congoleses antes dele. Não sei se ele
falava em nome próprio, em nome de outro ou em nome de seus
conterrâneos. Aliás, não sei se havia um que falava por outro. Quanto a
mim, apenas concordava, forçando os traços do rosto para compensar a
dificuldade da fala. Fazia questão de demonstrar minha compreensão,
minha solidariedade e, acima de tudo, minha cumplicidade. Estava ao seu
lado, é o que queria dizer. E forçava mais os traços do rosto. As
histórias eram velhas conhecidas, mas havia algo de muito novo. Um
incômodo crescente. Queria que terminasse logo, queria sair dali. Queria
explicar que já conhecia o problema, mas não queria ser indelicado. Ele
não parava de falar, de contar histórias. Sempre com doçura. No meu
esforço de cumplicidade, fazia gestos repetitivos. Explicava que
estávamos lutando por eles. Que compreendíamos. Explicava a ele como
eram os julgamentos. Os tipos de objeções que se faziam. Os critérios
usados para a análise dos pedidos de refúgio. Falei sobre a questão da
credibilidade, que era preciso distinguir entre os migrantes e os
verdadeiros refu giados. Ele falava comigo e para mim. E eu falava do
governo, do Estado, das leis, do instituto… Ele não abandonava o olhar
de mim. Meu olhar, já não sabia onde estava. Ouvia cada palavra, mas ele
parecia cada vez mais exausto das explicações. E eu também. Tentava
então me esquivar. Aquilo tudo doía.
Contou,
afinal, a história da garota que era sua vizinha no Congo. Ela ficou em
Kinshasa, na capital do país, onde a violência é menor, segundos os
relatórios oficiais. Morava com a família. Simplesmente porque recusou o
assédio de um oficial das forças armadas, passou a ser estuprada
rotineiramente. Várias vezes durante a semana, por vários homens, todos
fardados. Ela não tem dinheiro para fugir do país e não há autoridades a
quem ela possa reclamar. A autoridade a tinha estuprado. Não há juízes a
quem pedir justiça. E afinal me disse: “mas o que querem ‘eles’? Eles
realmente esperam que a gente volte para aquele país? É isso que eles
esperam?” Então se foi. O incômodo explodiu na minha cara. Eu agora
sentia vergonha.
Vergonha
por ter me visto uma das tantas peças de uma estranha máquina. Uma
máquina diabólica, sempre a espreita, e que não me pergunta de que lado
estou. Diabólica, porque ela mesma está sempre mudando de lado, mudando
os lados, incluindo em si todas as lateralidades, do Congo ao Brasil, de
um lado a outro, do policial ao assistente social, do psicólogo ao
advogado. Assim como incluindo o direito humanitário, o direito de
intervenção, o direito de controle das fronteiras… Uma máquina estéril
mas que paradoxalmente vai criando filiações, seja através da
recompensa, da fantasia de conforto ou da simples má-consciência.
Geralmente, tudo junto. Tudo vai virando um só Estado, desde as grandes
instituições até os pequenos gestos diários, os traços simples do rosto,
o jeito de andar, de falar, de ouvir. Trata-se de um rizoma infernal,
que pode devorar tudo, inclusive vegetais orgânicos e os sorvetes de iog
urte.
Como
então evitar a cumplicidade e o acoplamento? Não se trata apenas de
recusar a inércia da cadeira do escritório e o vazio dos princípios
gerais, das burocracias, normas e institutos. É preciso, acima de tudo,
recusar a aliança com o poder, em sua forma mais microscópica, mais
banal e diária. Não é a toa que Foucault gritava: não caia de amores
pelo poder[i].
Recusar às vezes já é bastante coisa. Fugir, mas na fuga procurar uma
arma. Recusar, mas na recusa montar uma outra máquina. Nomadizar o
pensamento e a própria subjetividade. Colocar a vida em questão. Montar
dispositivos de luta contra a captura, contra a má-consciência, contra
as ideologias, contra o excesso do trabalho vazio e morto. Se o
trabalho e a própria vida foram investidas pelo poder, todo trabalho e
todo gesto são também resistência, são oportunidades de produção de
vida. Neste sentido, resistir é o esforço diário de uma vida inteira.
Ainda que seja necessário mentir, disfarçar, dissimular, falsificar,
fraudar, todo esse esforço de se posicionar de uma certa maneira diante
da verdade.
Não
é caso de esconder a verdade, mas de fazê-la aparecer radiante na
explosão da mentira. Mentira-estratégia que se dobra contra a
mentira-captura, aquela mentira que justifica as remoções dos pobres, a
prisão dos negros e a expulsão dos haitianos. Não se nega a verdade, mas
se a exagera a ponto de parecer mentira. Se o jogo é dado, então é
preciso jogá-lo, subvertendo-o por dentro, pelas beiradas, de lado. Se
até mesmo Pierre, o jovem camponês que confessou ter matado sua família é
tomado por mentiroso e depois por louco, porque achamos que a verdade
liberta? A verdade liberta? O trabalho liberta? Nada mais mentiroso, nós
bem sabemos. Portanto, recusar é necessário, assim como mentir. Coragem
da Verdade, mas também Coragem da Mentira.
Fonte: Global Brasil Revista Nômade
Nenhum comentário:
Postar um comentário