março 12, 2013

"RECUSAR", por Fabricio Toledo de Souza

PICICA: "Como então evitar a cumplicidade e o acoplamento? Não se trata apenas de recusar a inércia da cadeira do escritório e o vazio dos princípios gerais, das burocracias, normas e institutos. É preciso, acima de tudo, recusar a aliança com o poder, em sua forma mais microscópica, mais banal e diária. Não é a toa que Foucault gritava: não caia de amores pelo poder[i]. Recusar às vezes já é bastante coisa. Fugir, mas na fuga procurar uma arma. Recusar, mas na recusa montar uma outra máquina. Nomadizar o pensamento e a própria subjetividade. Colocar a vida em questão. Montar dispositivos de luta contra a captura, contra a má-consciência, contra as ideologias, contra o excesso do trabalho vazio e morto. Se o trabalho e a própria vida foram investidas pelo poder, todo trabalho e todo gesto são também resistência, são oportunidades de produção de vida. Neste sentido, resistir é o esforço diário de uma vida inteira. Ainda que seja necessário mentir, disfarçar, dissimular, falsificar, fraudar, todo esse esforço de se posicionar de uma certa maneira diante da verdade.




RECUSAR / Fabricio Toledo de Souza


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RECUSAR – Fabricio Toledo de Souza

 

Fugir, desviar, mentir, recusar, silenciar, paralisar, ceder, esconder, esquivar. Toda uma série de gestos que diríamos negativos, que nos parecem mais um recuo do movimento do que propriamente uma ação. O refugiado que foge, o operário que recusa, o condenado que se esquiva, a criança que mente, a mulher que desvia, o louco que silencia. Diriam alguns que são movimentos da impotência porque motivados por forças alheias. Será mesmo? Chegamos a supor que sejam recuos porque se destinam apenas à sobrevivência imediata e à preservação do corpo biológico. Mas já não é o bastante?

 


Cada um destes movimentos, no entanto, está repleto de outros tantos gestos: caóticos, prenhes, desviantes. É possível então imaginar outras séries: o refugiado que mente, o operário que foge, a mulher que recusa, o louco que desvia… A mulher que foge, o operário que mente, o louco que recusa… Infinito.

 


O amigo filósofo já nos dava a dica: fugir, mas na fuga procurar uma arma. Mas há casos em que a fuga já é a arma, acionando implosões, distúrbios, choques, caos. Lembramos de Melville e do escrivão enigmático: “eu preferia não”. E também lembramos de Geni, o excesso de devir minoritário da mulher, a histeria levada ao extremo absoluto, destroçada no desvio esquizo, a mulher-rainha, ainda e sobretudo, rainha dos detentos, das loucas e dos lazarentos, aquela que preferia amar com os bichos. O que importa não é que Geni tenha salvado a cidade do zepelin gigante, mas que ela esteja fundando a mulher-além-da-histeria, além-da-falta, a vadia em excesso, a além-mulher. Experimente beijar um louco na boca.

 


A respeito da fuga, o que importa menos é o seu caráter involuntário. A fuga já é resistência e como tal é potência ontológica. Não apenas sobrevivência. É mesmo mais vida, uma vida maior, adicionada de outros movimentos, expansões, alianças. O corpo do congolês que foge tende a compor em sua fuga novas forças, um novo pensamento, um povo inteiro no lugar do Estado-parasita e de sua guerra de perversões com os rebeldes. Há uma imensa multidão fugindo dos Congos-do-mundo, estes lugares onde o capitalismo se revela em toda a franqueza e falta de sofisticação, decepando braços, abrindo ventres, estuprando mulheres, suicidando ativistas. Mesmo dentre o pobre povo congolês, o capitalismo não para de inventar minorias: há os mais pobres, há as mulheres, os pigmeus e todas as minorias de uma minoria, os mais assassinados que outros, um infinito de perversidades. E nós sabemos que Congo, Haiti, Ruanda, Pinheirinho e Os Sertões estão em toda parte. E sabemos que não há tempos para metáforas.

 


E o que tenho a ver com isso?

 


O jovem refugiado congolês me interpelou docemente. Era já um velho conhecido. Estava visivelmente contrariado, mas não perdia a doçura. Contrariado com as notícias sobre o pequeno número de congoleses que foram reconhecidos como refugiados no Brasil. O Brasil que cresce. Brésil, Brazil. Diria que estava mesmo indignado, mas mantinha-se doce, como é seu jeito. Dirigia-me perguntas duras e simples, diretamente para mim, com seu sotaque familiar, de “erres” puxados. Contou com impaciência os problemas de seu país. A guerra, o estupro indiscriminado de mulheres e meninas, o recrutamento forçado dos meninos, as mutilações, a exploração nas minas, a impunidade, a corrupção generalizada, a falta de justiça, tudo aquilo que lemos nos relatórios e que ouvimos de muitos e muitos congoleses antes dele. Não sei se ele falava em nome próprio, em nome de outro ou em nome de seus conterrâneos. Aliás, não sei se havia um que falava por outro. Quanto a mim, apenas concordava, forçando os traços do rosto para compensar a dificuldade da fala. Fazia questão de demonstrar minha compreensão, minha solidariedade e, acima de tudo, minha cumplicidade. Estava ao seu lado, é o que queria dizer. E forçava mais os traços do rosto. As histórias eram velhas conhecidas, mas havia algo de muito novo. Um incômodo crescente. Queria que terminasse logo, queria sair dali. Queria explicar que já conhecia o problema, mas não queria ser indelicado. Ele não parava de falar, de contar histórias. Sempre com doçura. No meu esforço de cumplicidade, fazia gestos repetitivos. Explicava que estávamos lutando por eles. Que compreendíamos. Explicava a ele como eram os julgamentos. Os tipos de objeções que se faziam. Os critérios usados para a análise dos pedidos de refúgio.  Falei sobre a questão da credibilidade, que era preciso distinguir entre os migrantes e os verdadeiros refu giados. Ele falava comigo e para mim. E eu falava do governo, do Estado, das leis, do instituto… Ele não abandonava o olhar de mim. Meu olhar, já não sabia onde estava. Ouvia cada palavra, mas ele parecia cada vez mais exausto das explicações. E eu também. Tentava então me esquivar. Aquilo tudo doía.

 


Contou, afinal, a história da garota que era sua vizinha no Congo. Ela ficou em Kinshasa, na capital do país, onde a violência é menor, segundos os relatórios oficiais. Morava com a família. Simplesmente porque recusou o assédio de um oficial das forças armadas, passou a ser estuprada rotineiramente. Várias vezes durante a semana, por vários homens, todos fardados. Ela não tem dinheiro para fugir do país e não há autoridades a quem ela possa reclamar. A autoridade a tinha estuprado. Não há juízes a quem pedir justiça. E afinal me disse: “mas o que querem ‘eles’? Eles realmente esperam que a gente volte para aquele país? É isso que eles esperam?” Então se foi. O incômodo explodiu na minha cara. Eu agora sentia vergonha.

 


Vergonha por ter me visto uma das tantas peças de uma estranha máquina. Uma máquina diabólica, sempre a espreita, e que não me pergunta de que lado estou. Diabólica, porque ela mesma está sempre mudando de lado, mudando os lados, incluindo em si todas as lateralidades, do Congo ao Brasil, de um lado a outro, do policial ao assistente social, do psicólogo ao advogado. Assim como incluindo o direito humanitário, o direito de intervenção, o direito de controle das fronteiras… Uma máquina estéril mas que paradoxalmente vai criando filiações, seja através da recompensa, da fantasia de conforto ou da simples má-consciência. Geralmente, tudo junto. Tudo vai virando um só Estado, desde as grandes instituições até os pequenos gestos diários, os traços simples do rosto, o jeito de andar, de falar, de ouvir. Trata-se de um rizoma infernal, que pode devorar tudo, inclusive vegetais orgânicos e os sorvetes de iog urte.

 


Como então evitar a cumplicidade e o acoplamento? Não se trata apenas de recusar a inércia da cadeira do escritório e o vazio dos princípios gerais, das burocracias, normas e institutos. É preciso, acima de tudo, recusar a aliança com o poder, em sua forma mais microscópica, mais banal e diária. Não é a toa que Foucault gritava: não caia de amores pelo poder[i]. Recusar às vezes já é bastante coisa. Fugir, mas na fuga procurar uma arma. Recusar, mas na recusa montar uma outra máquina. Nomadizar o pensamento e a própria subjetividade. Colocar a vida em questão. Montar dispositivos de luta contra a captura, contra a má-consciência, contra as ideologias, contra o excesso do trabalho vazio e morto. Se o trabalho e a própria vida foram investidas pelo poder, todo trabalho e todo gesto são também resistência, são oportunidades de produção de vida. Neste sentido, resistir é o esforço diário de uma vida inteira. Ainda que seja necessário mentir, disfarçar, dissimular, falsificar, fraudar, todo esse esforço de se posicionar de uma certa maneira diante da verdade.

 


Não é caso de esconder a verdade, mas de fazê-la aparecer radiante na explosão da mentira. Mentira-estratégia que se dobra contra a mentira-captura, aquela mentira que justifica as remoções dos pobres, a prisão dos negros e a expulsão dos haitianos. Não se nega a verdade, mas se a exagera a ponto de parecer mentira. Se o jogo é dado, então é preciso jogá-lo, subvertendo-o por dentro, pelas beiradas, de lado. Se até mesmo Pierre, o jovem camponês que confessou ter matado sua família é tomado por mentiroso e depois por louco, porque achamos que a verdade liberta? A verdade liberta? O trabalho liberta? Nada mais mentiroso, nós bem sabemos. Portanto, recusar é necessário, assim como mentir. Coragem da Verdade, mas também Coragem da Mentira.

 

Fonte: Global Brasil Revista Nômade

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