PICICA: "Para tornar mais nítido o que entendo por “devir minoritário”, a
intervenção de Gilles Deleuze (1925-1995) é bastante oportuna. Deleuze
traça uma interessante distinção entre maiorias e minorias. Estas não
diferem entre si pelo número, não se trata de uma questão quantitativa,
isto é, uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. Enquanto a
maioria se define por um modelo ao qual seria preciso estar conforme – e
o exemplo dado por Deleuze é o do “europeu médio adulto macho habitante
das cidades” –, a minoria configurar-se-ia como devir, como processo,
não referindo-se a modelo algum. É neste sentido que Deleuze defende a
ideia de um “devir minoritário”, que arrastaria por caminhos
desconhecidos a todos aqueles que consentissem em segui-lo. Ele aponta
que quando a minoria cria modelos é porque quer tornar-se majoritária,
não sendo isto propriamente um problema, pois justamente do Estado, do
ser reconhecido, do impor seus direitos dependem a sobrevivência e a
salvação da minoria. No entanto, a potência da minoria está naquilo que
ela cria e esta criação, mesmo passando para um modelo, permanece
independente. “O povo é sempre uma minoria criadora, e que permanece
tal, mesmo quando conquista uma maioria: as duas coisas podem coexistir
porque não são vividas no mesmo plano”, declara Deleuze."
Devir minoritário no “devir-evangélico” do Brasil
28/03/2013
Por Pedro Grabois
Por Pedro Grabois
Por um “devir minoritário” no “devir evangélico” do Brasil: um esboço.
Muito tem se falado sobre os evangélicos no Brasil, sobre seu crescimento: em números por todo o território nacional, em presença nos espaços midiáticos e na política representativa. Em diferentes discursos sobre esse segmento da população brasileira, é frequente a vinculação entre o perfil do evangélico ao de uma pessoa reacionária, conservadora, preconceituosa, alienada, e portanto, racista, sexista e homofóbica.
Embora tal perfil exista (e isso não se pode negar), associar, de
forma insistente, um ao outro soa como injusta redução, visto que a
presença evangélica no Brasil, suas transformações, seu devir enfim,
apontam para algo muito mais plural e diverso do que aquilo que se tenta
delinear em pretensiosas formulações. Os próprios evangélicos, quando
olham para si próprios, tem, pelo menos, duas opções: ou reforçam a
fragmentação do mundo evangélico, lançando olhares desconfiados sobre
seus pares; ou aproveitam a pluralidade dos grupos para experimentar,
nos diferentes espaços que encontram, outras formas de relacionar-se
consigo mesmos e com os outros. Neste segundo caso, eles mesmos
reconhecem-se como parte de um grupo plural e diverso, impossível de ser
representado univocamente. Não há, portanto, motivo para ignorar a
heterogeneidade dos evangélicos, uma vez que eles mesmos afirmam
diariamente esta impossibilidade de homogeneização.
Eu mesmo, enquanto evangélico “por opção”, falo a partir desses
diferentes atravessamentos vividos no âmbito do movimento evangélico.
Estou longe de ver o fenômeno “evangélicos no Brasil” como algo fechado e
amarrado. Prefiro pensar num “devir evangélico” do Brasil e naquilo que
pode se constituir como um devir minoritário neste devir evangélico.
Não falo apenas de, mas por um devir minoritário no devir evangélico
do Brasil. Este acontecimento bastante marginal, mas não sem
importância, no “interior” do campo evangélico brasileiro, não está
apenas diante de meus olhos, mas nele tomo parte cotidianamente. Falo em
defesa de um devir minoritário no devir evangélico sem a pretensão de
dizer que se trata de um devir minoritário dos evangélicos brasileiros
em geral. Embora também não se possa negar que o devir minoritário
esteja no próprio gérmen desse devir evangélico, sobretudo pela relação
entre as “identidades” evangélico e pobre na história recente do país,
seria muita pretensão dizer que haja de fato um movimento de grande
alcance que tomaria de assalto todo o meio evangélico brasileiro. Há uma
potência no movimento evangélico e nas formas de vida por ele,
especificamente, mobilizadas, mas a direção dessa força não está dada.
Portanto, cabe dizer que o devir minoritário e o devir evangélico são
dois processos que se atravessam ou que podem se atravessar.
Para tornar mais nítido o que entendo por “devir minoritário”, a
intervenção de Gilles Deleuze (1925-1995) é bastante oportuna. Deleuze
traça uma interessante distinção entre maiorias e minorias. Estas não
diferem entre si pelo número, não se trata de uma questão quantitativa,
isto é, uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. Enquanto a
maioria se define por um modelo ao qual seria preciso estar conforme – e
o exemplo dado por Deleuze é o do “europeu médio adulto macho habitante
das cidades” –, a minoria configurar-se-ia como devir, como processo,
não referindo-se a modelo algum. É neste sentido que Deleuze defende a
ideia de um “devir minoritário”, que arrastaria por caminhos
desconhecidos a todos aqueles que consentissem em segui-lo. Ele aponta
que quando a minoria cria modelos é porque quer tornar-se majoritária,
não sendo isto propriamente um problema, pois justamente do Estado, do
ser reconhecido, do impor seus direitos dependem a sobrevivência e a
salvação da minoria. No entanto, a potência da minoria está naquilo que
ela cria e esta criação, mesmo passando para um modelo, permanece
independente. “O povo é sempre uma minoria criadora, e que permanece
tal, mesmo quando conquista uma maioria: as duas coisas podem coexistir
porque não são vividas no mesmo plano”, declara Deleuze.
“Evangélicos e católicos somos maioria absoluta no país. [Em] nenhum
Estado democrático de direito, minoria vai cercear maioria”, declarava
um influente e midiático líder evangélico em ato contra a PLC 122 (que
criminaliza a homofobia) em junho de 2011. Este discurso inflamado de
ódio e paixão é parte do avesso do que tratamos aqui, é parte de um
devir majoritário, que, não se pode negar, atravessa muitas mentes e
corações evangélicas e não-evangélicas no Brasil de hoje e de
antigamente. Bastante conhecido de todos, é em geral sobre esse devir
majoritário, sobre esse conservadorismo, que se insiste em falar. O
discurso majoritário lança mão de um ecumenismo oportunista que une
setores evangélicos e católicos para pautar os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres, sobretudo no que diz respeito ao aborto, e os
direitos ligados à cidadania LGBT, sobretudo no que diz respeito à
homofobia e ao casamento civil igualitário. Digo ecumenismo oportunista,
justamente porque os movimentos evangélico, ecumênico e de diálogo
interreligioso são, ao contrário, movimentos historicamente marcados por
uma dimensão muita mais libertadora e emancipadora no que se refere a
conquista de direitos e lutas sociais e políticas daqueles que são
perseguidos por sistemas de poder hegemônicos. É no “lastro histórico”
desses movimentos que se pode encontrar um devir minoritário no devir
evangélico do Brasil. É sobre esse devir minoritário que se deveria
falar quando se fala dos movimentos evangélicos no Brasil de hoje. Como
criar algo novo e “lutar por uma justiça” para além da (e até mesmo
contrária à) Justiça instituída, se só tratamos do oportunismo dos
outros?
Há hoje diferentes movimentos de dentro das próprias igrejas ou a
elas atrelados, que não somente reconhecem aquilo que já não se pode
negar – a existência de discriminações insistentemente dirigidas a
mulheres, pobres, negros e gays “dentro” e “fora” da vida da fé -, mas
que também se empenham em enfrentar toda forma de dominação na sociedade
e no interior da própria vida comunitária das igrejas. Não podemos mais
negar a capacidade da religião, e aqui especialmente dos evangélicos,
como força política criadora de outros modos de vida, de outras formas
de subjetivação, que não se sujeitam a e não aceitam tacitamente o poder
das velhas práticas instituídas concernentes a todos os problemas da
vida contemporânea (cultura, sexualidade, raça, gênero, drogas, classe,
políticas, etc.).
Basta circular um pouco pela região metropolitana do Rio de Janeiro
para encontrar uma série de pessoas – de diferentes gerações, mas com
número expressivo de jovens – e grupos do e no meio evangélico que
questiona o racismo, o classismo, o machismo e a homofobia presentes não
apenas nas igrejas, mas nas escolas, ruas da cidade, no campo, nas
universidades, nos ambientes familiares e de trabalho. De forma
organizada em movimentos ou em redes sem ponto central, é cada vez mais
frequente encontrarmos isso que chamo de uma “nova subjetivação
evangélica”. Essa nova subjetivação aponta para algo que ainda não
sabemos bem o que é, mas que passa por um resgate histórico das próprias
contribuições da lutas dos evangélicos por justiça, no sentido de
quebrar com os sistemas de inclusão/exclusão que hoje se apresentam ainda como inescapáveis evidências.
Essa nova subjetivação evangélica é atravessada por um devir
minoritário. Ela está, assim, em cada ação afirmativa local e global:
quando o crente comum expressa sua identidade estratégica dentro de uma
série de disputas e reivindicações que atravessam hoje a sociedade. Essa
identidade estratégica não faz apenas menção ao ser cristão e ao ser
bíblico como essência, mas insere essa dimensão de pertencimento numa
agenda propositiva que entrecruza-se com outras identificações: mulher,
trabalhadora, estudante e negra, por exemplo. Não se trata de demarcar e
fixar a própria identidade, mas perceber o quanto ela mesma é processo
(não apenas individual) de subjetivação, processo de ir em direção ao
outro, ao outro que há nos outros e ao outro constitui a nós mesmos.
Esse devir minoritário no devir evangélico do Brasil, sendo um
movimento essencialmente dos leigos e não dos pastores (mas sem
excluí-los), não passa necessariamente por uma revisão da elaboração
teológica ou da fé devocional de cada um. Trata-se antes de um movimento
que começa por um questionamento cada vez mais abrangente das velhas
práticas de demonizar o outro e que aponta para novas formas de afirmar o
direito que o outro tem de ser outro, e subsequentemente, o direito que
nós temos de ser outros. Esse devir minoritário, essa nova subjetivação
evangélica não significa, necessariamente a abertura de novas igrejas,
com novas roupagens ou novas morais.
O que temos diante de nós é antes um movimento marginal, sutil e
radical que atravessa as pessoas e instituições. É neste espaço do novo
que a fé, a espiritualidade e também a religião têm chance de dizer não
ao devir majoritário, que por detrás do discurso da família e dos bons
costumes esconde, dentre outras coisas, a morte e o encarceramento de
milhares de jovens pretos e pobres, filhos de um projeto religioso e
social fundamentalmente excludente. Além do dizer não, tem-se a chance
de construir outros modos de vida, que sejam radicalmente afirmativos
das vidas e vozes que têm sido abafadas, dentro e fora do meio
evangélico.
Pedro Grabois é articulador da Rede Fale, evangélico da igreja
batista, blogueiro do www.justicaintegral.blogspot.com e doutorando em
Filosofia (Uerj).
Imagem: Capa de HQ sobre Thomas Müntzer (1489-1525), teólogo protestante, citado por Marx como um dos primeiros comunistas, que liderou uma insurreição de sem terras até ser derrotado no campo de batalha pelo exército dos senhores. Sob tortura, não “abjurou” da causa, declarando como últimas palavras que omnia sunt communia (tudo é comum de todos).
Fonte: Rede Universidade Nômade do BrasilImagem: Capa de HQ sobre Thomas Müntzer (1489-1525), teólogo protestante, citado por Marx como um dos primeiros comunistas, que liderou uma insurreição de sem terras até ser derrotado no campo de batalha pelo exército dos senhores. Sob tortura, não “abjurou” da causa, declarando como últimas palavras que omnia sunt communia (tudo é comum de todos).
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