PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
março 21, 2013
"Eduardo e a bactéria-FC (esboço de artigo em desenvolvimento)", por Cleber Lambert
PICICA:"Agradeço ao meu irmão por ter me feito escutar FC, há anos atrás. Eu
fazia um curso de jornalismo absolutamente insuportável. A filosofia e o
rap forçaram-me mais do que qualquer outra coisa a pensar outra prática
comunicacional, que mais tarde eu chamaria de imidiática. É que o rap
sempre foi uma máquina informacional, com seu conectivismo material e
semiótico, uma composição vital de corpos e de signos. Ele constitui um
modo de pensamento singular. A rima, tal como o conceito filosófico, o
bloco de sensações artístico ou a imagem cinematográfica, é pensamento
em ato. O rap traça seu próprio plano, capaz de fazê-lo sair
eficientemente do caos mental e social que ameaça o povo da periferia.
Nesse sentido, ele é capaz de ricas ressonâncias e interferências com a
filosofia."
Eduardo e a bactéria-FC (esboço de artigo em desenvolvimento)
Mesmo que o Facção Central continue, sem Eduardo já não teremos as
rimas potentes que, no auge do neoliberalismo descreveram com absoluta
precisão o funcionamento do aparelho de captura e de violência que
continuava, por outros meios, a Casa Grande e Senzala, a maquina de moer
gente da periferia, negros e pobres, através do crime, da prisão, da
máquina judiciária, da mídia, do separatismo urbano, e que Eduardo bem
chamou de "Sistema Brasileiro de Corpos", pois sempre se tratou disso,
de partilhar os corpos segundo funções e atribuições bem delimitadas, ou
seja, num espaço previamente repartido. Eduardo, com sua voz e suas
rimas, fez comunicar linhas até então solidamente mantidas a distância e
contribuiu certamente para instaurar uma subjetividade molecular que,
para além desse Sistema, conseguiu eleger Lula em 2002, um dos "nossos".
Porém, desde que o Brasil passou pelas transformações da última década,
o Facção parecia dividido. Dum Dum, de um lado, afirmando que já não
era mais possível cantar a pobreza num país onde as coisas melhoraram
para os manos da periferia, de outro, Eduardo, agora leitor de Marx, a
dizer que o fato de ter TV, carro e geladeira, não mudava a condição
daqueles que jamais participaram das decisões efetivas e continuavam sem
fazê-lo de fato. E não se trata de uma crítica simplista ao consumismo
dos ex-pobres, como se poderia supor a princípio. Sem contar que a
máquina continua a moer, com seus mais de 40 mil mortos por ano. Na
verdade, para Eduardo não é, nem nunca foi, uma questão de
re-presentação. Ele não lastima o fato de ser bem ou mal representado.
Ele sempre desejou a transmutação, não apenas ser uma linha de fuga da
sociedade, mas fazer a sociedade fugir, ao rimar a violência das
palavras, dos gestos, dos corpos, das leis, como agenciamentos concretos
que a recortam, mais, que a produzem continuamente (com seu lado ora
mais repressivo, ora mais insinuante, a se exercer ainda mais
insidiosamente nas periferias). Como instauração e afirmação de um modo
de vida irredutível a essa máquina, ele rimou seu ser periférico
alegremente, um pensamento sem o cogito do poder e uma vida sem limites
carcerários (a dupla face do que ele chamou de “detenção sem muro” como
regime imanente de controle): “sou periferia em cada célula do corpo,
por isso uma pa de porco ta me querendo morto ”. E, segundo suas
críticas recentes ao Governo, os porcos que ontem o queriam morto, hoje o
querem meramente incluído através do consumo? É o que ele parece
indicar como sendo a via que sua máquina de guerra sonora e rimática
tomará agora, ela que afirma a exterioridade periférica irredutível a
qualquer modelo, repressivo ou permissivo, para melhor salvaguardar sua
potência criadora quase divina. A questão é, então, quais riscos e quais
possibilidades nessa empresa? Risco de uma abolição pura e simples?
Fechamento num gueto? Possibilidade de estabelecimento de um plano onde
essa potência, para além da simples crítica contra o consumismo,
coincida com a dimensão desejante que está em jogo nesse processo pelo
qual o Brasil vem passando de criação de direitos (para o qual Rodrigo
Guéron, recentemente, no artigo “Teocracia fundamentalista, ódio aos
pobres e resistência”, chamou atenção através da questão da
monetarização)? A criação de direitos não responde a colocação problemas
precisos que, sem duvida, a bactéria FC ajudou a disseminar nos milhões
de jovens das periferias? Ou ainda outra via insuspeita? De qualquer
maneira, não há máquina de guerra que não envolva risco, mesmo o mais
letal, pois ela mobiliza o conjunto do vital, para liberá-lo das forças
que o aprisionam, mesmo sem muros. Ora, suas rimas colocaram com
precisão problemas que hoje se tenta ainda morosamente responder .
Agradeço ao meu irmão por ter me feito escutar FC, há anos atrás. Eu
fazia um curso de jornalismo absolutamente insuportável. A filosofia e o
rap forçaram-me mais do que qualquer outra coisa a pensar outra prática
comunicacional, que mais tarde eu chamaria de imidiática. É que o rap
sempre foi uma máquina informacional, com seu conectivismo material e
semiótico, uma composição vital de corpos e de signos. Ele constitui um
modo de pensamento singular. A rima, tal como o conceito filosófico, o
bloco de sensações artístico ou a imagem cinematográfica, é pensamento
em ato. O rap traça seu próprio plano, capaz de fazê-lo sair
eficientemente do caos mental e social que ameaça o povo da periferia.
Nesse sentido, ele é capaz de ricas ressonâncias e interferências com a
filosofia. Do ponto de vista desta última, o plano recorta o caos de uma
maneira que ainda deve ser determinada, porém não resta dúvida de que
nele a estética e política se tornam indiscerníveis, o sensível e o
comum remetem um ao outro, passam um pelo outro... Eduardo é um dos
muitos nomes próprios desta espécie de “quarta pessoa do singular” em
que estamos continuamente em vias de nos tornar, para além do individual
e do coletivo, do particular e do geral, uma vasta periferia, o
singular tornado universal sem deixar de ser singular, como já dizia
alguém que entendia duas ou três coisas de periferia, fuga,
exterioridade.
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