PICICA: "Compreende-se, lendo essas páginas, porque hoje a obra de Badiou se
presta às vezes a argumentos nostálgicos, daqueles que, não sabendo como
sair do fracasso do “socialismo real”, continuam a sonhar-se
comunistas, só porque se recusam a recomeçar a luta."
Negri lê Badiou: O guardião da ideia absoluta
30/04/2013
Por Toni Negri
Por Toni Negri | Trad. UniNômade Brasil
Resenha de BADIOU, Alain. A República de Platão; diálogo em 16 capítulos (2013).
Publicado com o título “Il guardiano dell’idea assoluta” na UniNômade Itália (27/4/2013)
Há, nesta reescrita badiounista da República de Platão, uma referência ao “comunismo” como forma de governo, a “quinta” além das quatro criticadas pelo fundador do idealismo filosófico: portanto, além da Timocracia (o governo dos heróis) e da Oligarquia (dos nobres), e além da Democracia e da Tirania (sempre ciclicamente cambiáveis entre si). E esse é um conceito belo, quase uma inovação teórica — ela já encontrara expressão, como muitas propostas do pós-moderno, noutros episódios da filosofia política; bem como em várias experiências democráticas de comunidade eclesiástica, na Idade Média ou na Reforma; ou ainda na “democracia absoluta” espinosista; ou nas utopias anarquistas e socialistas da modernidade. Que um sólido Philosophe — em verdade, um homem das Luzes, como a mim parece ser Badiou — reivindique esse ideal, é não só desejável como também belo. Em seu livro, que não trata sistematicamente da República de Platão, nem é simplesmente uma renovação moderna do texto, e nem a experiência de um diálogo amoroso do filósofo com Amantéa (figura feminina e “republicana”, invenção verdadeiramente formidável) — em seu livro, dessarte, se lê gaiamente essa aventura ideal — somente parcialmente esfumada por certo exercício tedioso e antiquado de estilo.
Mas tentemos situar melhor o trabalho de Badiou. Que haja tanto comunismo “à francesa”, um comunismo que reúne refinado método racionalista, inspiração janseísta [1] e comoção sensista [2], num tipo de sublimação comunitária. Mas também — juntemos logo esta passagem — uma ausência total de espírito dialético, de prática antagonista e de dispositivos constituintes. Esse comunismo, essa república ignora a luta de classe. O que isto quer dizer? Significa, antes de tudo, que está ausente qualquer sentido para a subjetividade, ou melhor, ausência de passione subjetiva. O ideal comunista é pesquisado, mas não construído; o amor pelo ideal é uma contemplação e não um agir constituinte: falta a passione. Desse ponto de vista, paradoxalmente Hannah Arendt resulta mais comunista do que Badiou. E a passione acaba escapando porque não há produção: nem produção de bens, nem produção de subjetividade. Que o comunismo de Badiou tenha pouco que ver com aquele de Marx já se sabe desde sempre, mas desta vez falta também aquela concepção de produção (ainda retida na batalha filosófica) que ele, como bom althusseriano, deveria ter composto em suas articulações da “Teoria”. Falar só isto ainda é pouco: porque dessa maneira se dissipam também as fontes e tramas da política moderna — que se emaranhavam nas formas de produtividade da polis. E que, além disso, se faça um salto, ou melhor, que afundemos na Ur, no profundo, em uma espécie de “arqui-originariedade” (como justamente nota o organizador do livro). O comunismo, então, é o quê? É uma ontologia ideal. É alguma coisa de ideológico e também de arcaico, uma utopia externa ao agir coletivo, fora da modernidade — radicalmente “de-saturado” (como também anota o organizador do livro) da historicidade do movimento comunista, e de toda reminiscência material e coletivamente revolucionária.
Com esse livro, a mim parece, Badiou alcança um essencialismo renovado em seu pensamento. Por exemplo, ele também corta no meio a possibilidade de “exemplificar o evento”, naquela treva de historicidade que Badiou desenha, desaparecendo igualmente o Cristo dos Evangelhos, o Napoleão de Hegel, o Mao da O. (assim se chama a organização comunista dos badiounistas) — desaparecendo aquele montante de simbólico que caracteriza o evento. E, junto desses exemplos do passado, desaparecem também os do porvir: não se compreende, de fato, de que lado da arqui-originariedade da ideia o evento poderia surgir. A desorientação na qual a hipérbole do “evento” nos tinha deixado agora é total — senão cômica.
Se o comunismo não é expressão produtiva das singularidades que se organizam no comum, mas em vez disso uma imersão improdutiva no ideal, aparecem certos problemas dificilmente solucionáveis. À recusa de considerar o comunismo na figura de um comum construído pelo trabalho produtivo, através da organização da cooperação do trabalho vivo, Badiou não faz mais que substituir o comunismo por uma figura isomórfica, analógica do ideal absoluto. Aí está o ponto: o comunismo é “participação” [3] na ideia, materialidade ideal… E daí uma série de declinações paradoxais: indivíduo/totalidade, liberdade/necessidade, evento/limite, atualidade/infinito… Diz o comentador: “o comunismo platônico é, nesse sentido, fielmente reproduzido em um contra-mito co-originário ao gesto filosófico, e a ponto de curtocircuitar a mitografia espontânea de uma desigualdade fundamental e imprescindível entre os homens.” Que seja! Decerto que esse isoformismo, essa analogia ontológica não estava na base daquele comunismo à Deleuze que, apesar disso, Badiou reivindicava como companheiro teórico e político — na verdade, aquele comunismo denunciava forte e continuamente a analogia adotada por Badiou.
Para retomar os pontos centrais ao comentário da República: choca em primeiro lugar a pressa com a qual Badiou se livra de Trasímaco, o realista político. Como se sabe, o cinismo do sofista, o seu riso diante da ideia e, por conseguinte, a afirmação que a política é geometria da potência e justiça física das forças — são hipóteses facilmente contestáveis pelo filósofo idealista; e todavia não são somente os patifes e fascistas que repetem essas opiniões, como também podem ser encontradas em Tucídides, Maquiavel e Lênin, bem como em qualquer político democrático radical ou comunista.
Provavelmente, o comunismo provoca uma práxis concreta que se coloca esse mesmo problema sem considerá-lo o fruto de um sofista sujo e beberrão, que é como Badiou descreve Trasímaco. Um segundo ponto é aquele no qual o velho iluminista Badiou aceita, talvez à maneira romântica, esmagar de modo demasiadamente violento a figura do filósofo e aquelas do chefe [capo] político, do sábio e do governante. Através desse gargalo, os filósofos são forçados a organizar uma força específica (aquela dos Guardiães), para conduzir cada cidadão à verdade, à sabedoria, à felicidade. Tem-se aqui uma ideia quase militar da obtenção da justiça. Nela está presente, em terceiro lugar, uma espécie de totalitarismo político, em que a justiça objetiva deve ser capaz de aderir à justiça subjetiva, e vice-versa: o caráter elitista da participação na ideia (da parte de filósofos e chefes) deve ser tornado possível e atual para todos os cidadãos. É fácil objetar que aqui se vai muito rapidamente de Platão a Pol Pot, passando por Robespierre; e que a desestruturação da reminiscência comunista parece se confundir com um processo de repressão de eventos revolucionários complexos, nos quais os comunistas tem precisado construir e reconstruir, amiúde dolorosamente, dispositivos de subversão e de governo.
Muito belas são, no entanto, as páginas em que Badiou leva à conclusão o sonho comunista: a interpretação do apólogo platônico da caverna, a experiência do grande “cinema cósmico” etc. Deveria ser este o lugar onde a história se reintegra, de modo “participativo”, à filosofia, à ética, construindo assim vida vivida. Também se nada disso acontecer, o incitamento é forte e a retórica eficaz.
“Mas então, — pergunta Glauco [4] preocupado — não será ninguém a dar vida à nossa quinta política? E Sócrates: depende do nosso trabalho. Quando digo “nosso”, pretendo dizer os pioneiros da Ideia comunista. Devemos criar as condições — porque sabemos que o pensamento de qualquer um vale tanto quanto o de qualquer um — porque as grandes massas se dirigem ao saber que nós consideramos fundamental, aquele orientado à visão do Verdadeiro. Que todos, com os bons ou os maus, saiam da caverna! Que a anábase para o sol seja para todos! E se uma aristocracia minoritária alcançou sozinha o topo e ali goza da Ideia do Verdadeiro, não lhe permitiremos o que tem sido permitido praticamente desde sempre.”
Compreende-se, lendo essas páginas, porque hoje a obra de Badiou se presta às vezes a argumentos nostálgicos, daqueles que, não sabendo como sair do fracasso do “socialismo real”, continuam a sonhar-se comunistas, só porque se recusam a recomeçar a luta.
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Tradutor: Bruno Cava
Notas do tradutor:
[1] Doutrina teológica para a renovação do catolicismo elaborada por Cornellius Jansen (1585-1638), basicamente, para quem a salvação não depende apenas das boas intenções, mas da Graça divina, beirando a tese protestante da predestinação.
[2] Os partidários do sensismo atribuem a função do conhecimento e o próprio motor da ação ao “sentir”. Da sensibilidade ou modo de sentir até o comportamento do sujeito, contorna-se a necessidade da mediação pela consciência. Os primeiros filósofos sensistas foram Bernardino Telesio (1509-1588) e Tommaso Campanella (1568-1639), autor da doutrina pansensista cósmica.
[3] No original “metessi”, palavra italiana usada para o conceito platônico de participação de algo na Ideia; do grego μέθεξις (mètexis).
[4] Irmão de Platão e personagem da República, é o interlocutor do mito da caverna.
Fonte: Rede Universidade Nômade