PICICA: "Como encorajar, ouvir, acolher,
compreender e fortalecer o protagonismo direto das vítimas, exatamente
contra a lógica disseminada por este Estado Penal ao mesmo tempo sem
recairmos em concepções práticas de “justiça” supostamente novas, porém
derivadas da mesma lógica seletiva-punitivista que insiste em nos
violentar."
Sobre as vítimas e os nossos desafios
4 de dezembro de 2014
Como encorajar, ouvir, acolher,
compreender e fortalecer o protagonismo direto das vítimas, exatamente
contra a lógica disseminada por este Estado Penal ao mesmo tempo sem
recairmos em concepções práticas de “justiça” supostamente novas, porém
derivadas da mesma lógica seletiva-punitivista que insiste em nos
violentar. Por Fran e Dan
A
recente polêmica em torno do caso Idelber Avelar trouxe à tona uma
série de questões importantes para toda a esquerda, e para as lutas
feministas em especial. E talvez ninguém tenha sintetizado mais precisa e
serenamente as suas implicações do que o historiador André Godinho.
Segundo ele:
“A exposição do assédio pelas duas mulheres se coloca numa esfera que não é nem a judicial nem a moral, mas de natureza ética e política. Sendo que a questão colocada nos relatos é, sobretudo, a da consensualidade, que no meio da treta muitas vezes é reduzida à opção dessas mulheres em continuar ou não conversando com ele – uma das muitas variantes da culpabilização da vítima. Só que consensualidade não é só isso. Para não serem opressivas e abusivas, as práticas sexuais podem escapar a normas morais estabelecidas, mas não podem ignorar questões éticas, o que é bem diferente. Os relatos indicam se tratar de jogos recorrentes nos quais as regras não são claras para as mulheres envolvidas, que são abordadas de forma abusiva e que são manipuladas por alguém que usa privilégios sociais [e credenciais de esquerda feminista e libertária] para explorar suas fragilidades. Se fosse apenas conversa suja, mesmo que muito suja, entre duas pessoas adultas, cada qual buscando seu prazer, daria pra falar em tribunal moral. Mas não é o caso, o caso é de autodefesa das mulheres e de necessidade de autocrítica para todos nós. Nenhuma dessas questões se esgotam neste caso e espero que ele sirva para o aprendizado de todos.” [1]
Ocorre que a mesma polêmica suscita
também a nós outra reflexão política mais profunda, para além destes
pontos já levantados pelo André: sobre a condição e o papel das vítimas
diante de uma situação de opressão ou violência – visando nossa própria
autodefesa, a reparação dos danos causados aos indivíduos vitimados
[dimensão particular], e a elaboração da situação de conflito buscando a
construção horizontal de (novo) convívio [tendo sempre em vista a
totalidade]. Em suma: a superação efetiva das situações concretas de
opressão ou violência por parte diretamente das vítimas, a partir de uma
perspectiva feminista mais ampla, autônoma e anticapitalista.
O presente texto pretende, a partir
desta polêmica, por um lado, contrapor-se àqueles que estão buscando
deslegitimar o papel das vítimas (silenciando sobre elas;
culpabilizando-as novamente; acusando-as de vitimização; e, pior, de
“punitivistas” ou “misândricas” pura e simplesmente) – para os quais nós
procuraremos mostrar que o punitivismo capitalista moderno nasce
exatamente da negação à autonomia das vítimas poderem construir suas
próprias formas de elaboração dos conflitos, autodefesa e proposição
coletiva de novas formas horizontais/igualitárias de liberdade
[confiscadas pelo Sistema Penal]. Por outro lado, pretendemos
também problematizar a ênfase demasiada na denúncia do algoz machista (e
seu possível escracho ou linchamento, mesmo que virtual), que pode ser
parente da lógica de “estereotipia e extermínio do inimigo” – tão cara
ao Estado Penal Patriarcal que se busca criticar.
Conforme alertou recentemente Suellen:
“Nesse sentido, uma parte da militância feminista que não atenta para a
totalidade do sistema que combatem em algumas de suas especificidades
acaba por se valer da prática do inimigo e, desta forma, reproduz
internamente o sistema: não só se submete ao Estado capitalista e ao
sistema enquanto um todo integrado, mas pior, se integra nele. A luta
acaba, então, [consciente ou inconscientemente] sendo assimilada, e
passa a cumprir funções de legitimação do sistema causador das demandas
que a luta inicialmente buscava ver atendidas.” [2].
Uma estratégia cuja lógica pode, portanto, ser muito facilmente
recuperada pelo sistema patriarcal-capitalista, voltando-se novamente
contra as próprias vítimas históricas.
O Sistema Penal Capitalista Histórico
Antes
de falarmos propriamente sobre a condição e o papel das vítimas em
contextos atuais afins é preciso, porém, ter-se em vista o avanço
histórico do Sistema Penal-Punitivo no qual estamos metidxs até o último
fio de cabelo, que é correlato à própria evolução do capitalismo
moderno. Um desenvolvimento histórico que fez com que sua violência
heterônoma (material, simbólica, penal e militar) se disseminasse,
constantemente atualizada, para todas as esferas (e corpos
administrados) da vida social – por meio de diversos dispositivos
biopolíticos [3]. Essa estrutura sócio-penal
moderna, marcada pela constante ameaça de punição, funde a exploração de
classe com a dominação racial e de gênero, inter-relacionando-as de
forma desigual e combinada entre as distintas sociedades capitalistas
conectadas entre si (sob a égide da gestão dos corpos trabalhadores
e sob a constante violência punitiva contra o dominado/explorado que
ousa subvertê-las).
Um processo que não ocorreu de forma
diferente no Brasil – país em que a questão racial, por conta do
escravismo, tem ainda mais peso relativamente a outros países: a
formação histórica de nosso Sistema Penal é marcada pelo constante
incremento do controle total sobre os corpos – negros em especial, tendo
como pano de fundo o genocídio (via sistema carcerário e/ou extermínio
policial), conforme já bem analisou Ana Flauzina [4].
De modo que não é de hoje (remonta ao tempo dos Pelourinhos em praças
públicas), nem é por acaso, que a ideia de “justiça”, por exemplo,
também por aqui a cada dia mais tem se confundido imediatamente, seja à
direita ou à esquerda, com a ideia de “punição”. A razão de todas
prementes questões (sociais, raciais, de gênero, sexuais etc) seria “a
impunidade”… “Justiça”, então, seria igual a + Leis, + Tribunais (Reais
ou Virtuais) e + Mecanismos Punitivos.
Esse punitivismo generalizado no Brasil e
no mundo, no entanto, tem tudo a ver com a própria lógica histórica do
Estado Penal (Capitalista) e a sua progressiva priorização da
heteronomia disciplinar-repressiva em detrimento do protagonismo
autônomo das vítimas para (re)construírem outras formas possíveis de
elaboração dos conflitos (construção horizontal do convívio;
socialização igualitária da produção; justiça restaurativa, por
exemplos). “A história da criminologia está […] intimamente ligada à
história do desenvolvimento do capitalismo. […] A invenção da pena
pública supõe o confisco do conflito da vítima, que se torna apenas uma
figura secundária na reconfiguração do poder punitivo”, sintetiza Vera
Malaguti. [5]
Os punitivismos do Estado de Direito
Por
isso soa mais do que patético, diante da reação legítima de vítimas que
conseguem se levantar e denunciar agressões físicas, simbólicas ou
ético-políticas, em nossa sociedade – como no caso dos abusos e da
predação sexual público/privada em série do Idelber Avelar, recorrer à
suposta “legalidade” daquilo que está sendo denunciado publicamente. “O
quê o sujeito fez está ou não está prescrito no Código Penal?”,
questionam supostos militantes de esquerda – inclusive feministas (como
fizeram respectivamente Túlio Vianna e Cynthia Semíramis). Estando ou
não dentro da legalidade – para estes cúmplices do Estado de Direito
realmente existente: literalmente foda-se o testemunho, a condição e o
papel das vítimas – atuais e potenciais! Como disse Godinho, “mais uma
das muitas variantes da culpabilização (e silenciamento) das vítimas”,
confiscando-as novamente a palavra – neste caso apoiado na suposta
ilegalidade ou ilegitimidade de suas denúncias.
Da mesma forma que dizer, pura e
simplesmente, que “essas feministas estão sendo punitivistas” (e até
misândricas), ignora o fato de que a origem deste punitivismo
moderno denunciado reside justamente na negação [o confisco por parte do
Estado Penal] do protagonismo autônomo das vítimas, no caso mulheres
que se sentem violentadas, para elaborar sua própria autodefesa, a
reparação dos danos causados e a elaboração pública da situação de
violência visando à construção horizontal de (novo) convívio – entre
mulheres e homens. “Por todos os meios possíveis e necessários” (e legítimos).
De modo que é impensável construir uma
verdadeira luta autônoma contra o Estado Penal e o punitivismo histórico
(incluindo sua forma “Democrática”) que não passe, de alguma maneira, pela reparação e re-empoderamento autônomo das vítimas históricas no processo de construção direta de novas formas de justiça
– entendendo “justiça” aqui como elaboração e superação autônoma das
opressões, buscando a construção horizontal de um (novo) convívio, como
já foi dito.
Dilemas atuais
Ocorre
que hoje vivemos uma situação-limite, que leva este desafio ao
paroxismo: essa lógica histórica do Estado Penal sofisticou-se e
espraiou-se a tal ponto (por meio de uma quantidade infinita de
dispositivos sociais e tecnológicos – do aparato policial-prisional à
TV, internet e às redes sociais, passando pelo trabalho disciplinando
integralmente nossos corpos), que praticamente todos indivíduos, (de)formados por esta sociedade, somos altamente punitivistas e, no limite, linchadores em potencial (ou em real time).
A lógica mais perversa do Sistema Penal – o extermínio do inimigo e a
invisibilidade da vítima – introjetou-se perfeitamente em cada indivíduo
de nossa sociedade atual, tornando inclusive muitas vezes desnecessária
a presença externa dos braços armados do Estado para se garantir a
realização de sua violência (já internalizada em nós mesmxs).
Introjetou-se, portanto, inclusive na postura das vítimas históricas.
Somos todxs punitivistas voluntárixs. [6]
Não é à toa que assistimos à
multiplicação de “justiceiros” populares – de bairros nobres ou mesmo em
comunidades periféricas (sob diversas facetas), em situações que
chegam, muitas vezes, à mobilização para o linchamento/execução real.
Qualquer semelhança com as estruturas da lógica policial de
“encarceramento em massa dos bandidos” ou “extermínio sumário dos
suspeitos” não é mera coincidência. As Sheherazades e os Datenas da vida
não trabalham gratuitamente (nem desprovidos de interesses raciais,
classistas e sexistas por trás das suas escalações) durante todas as
longas tardes das semanas fazendo trabalho de base real nos lares e
sobre os corpos de brasileirxs…
Daí o dilema redobrado: como encorajar,
ouvir, acolher, compreender e fortalecer o protagonismo direto das
vítimas (do nosso luto à nossa luta), exatamente contra a lógica
disseminada por este Estado Penal (Capitalista, Racista e Patriarcal) –
que sempre culpabiliza a vítima já violentada a priori, praticamente
relegando-a ao desaparecimento subjetivo ou objetivo (e, no limite, ao
genocídio); ao mesmo tempo sem recairmos em concepções práticas
de “justiça” supostamente novas, porém derivadas da mesma lógica
seletiva-punitivista que insiste em nos violentar (até porque está
arraigada em nossos próprios corpos). Afinal, o talhão (o seletivismo; o
punitivismo; o escracho; o linchamento; o extermínio) sempre retorna às
vítimas históricas. Aliás, como dito anteriormente, o talhão não deixa
de ser uma espécie de solidariedade velada com o opressor – ao priorizar
desproporcionalmente a sua figura individual na “resolução” de
conflitos sociais, ao preço da secundarização (do todo social) e o
esquecimento da própria condição específica da vítima a ser reparada
(ela que acaba tendo reconfiscada sua autonomia para escolher, organizar
e concretizar suas próprias formas de autodefesa e superação concreta
da violência). Satisfeita a “sede de justiça” com a aniquilação do
agressor, qual lugar efetivo sobrará para as suas vítimas específicas –
virada a página do espetáculo para o próximo alvo?
Exemplos concretos
O
movimento de familiares de vítimas da violência policial, por exemplo,
uma vertente importante de certo feminismo negro e popular que tem
ganhado destacado protagonismo nos últimos tempos, vive e é plenamente
consciente deste tipo de impasse há anos. Isto se explicita numa
situação concreta recorrente: o movimento exige os devidos julgamentos e
mais punições aos policiais assassinos dos filhos, sabendo que mais
procedimentos punitivos (ainda mais neste Estado de Direito Penal), no
final das contas, só reforçam um sistema penal-carcerário cuja maior
vítima é a mesma das execuções policiais: jovens negros, pobres e
periféricos (e nossas famílias, vítimas conexas). Exige-se mais direitos
aos familiares, mesmo sabendo que + Leis significam legitimar e
fortalecer um Estado Democrático de Direito estabelecido contra nós.
Como garantir avanços concretos sem ser cooptado/recuperado pelo Sistema
que combatemos? Como sair desta armadilha? Não há ninguém que viva mais
este dilema do que as famílias de vítimas negras, pobres e periféricas
deste Estado Penal no Brasil, enquanto convivem com um sofrimento
profundo (não-reparado) e totalmente invisibilizado pelas burocracias;
que apenas se torna visível quando se exige espetacularmente mais
punição (e não mais reparação substantiva, muito menos qualquer
superação coletiva autônoma efetiva). Afinal, a sociedade só tem olhos
(obsessivos) para o próximo suspeito-inimigo. O Estado Penal Capitalista promove um rol de alvos em série e massifica este olhar – e esta agenda prática genocida sem fim.
Mas este dilema não é privilégio da luta
dos familiares de vítimas da violência policial. Todo e qualquer
movimento que lide com opressões, violências ou – como tem se costumado
dizer desde fins dos anos 1970 no admirável mundo nomeado pelas leis
democráticas – “violações de direitos humanos”, está sujeito em maior ou
menor grau a este dilema. Ou a criação da Lei Maria da Penha e a
multiplicação de Delegacias da Mulher podem ser consideradas
objetivo-final de uma luta pela emancipação da mulher? Ou a
criminalização efetiva do racismo e da homofobia (por meio desta Polícia
e deste Sistema Judiciário) significará a superação plena da histórica
opressão racial e sexista que constituem também a exploração
capitalista?
Cada grupo ativista um novo dispositivo de controle?
O
fato é que esta batalha está sendo definitivamente perdida por nós. E o
que temos assistido, de maneira aparentemente incontornável, é a
multiplicação entre nós de práticas de controle, seletivas,
hierarquizantes e punitivas (inclusive contra nós mesmxs), tornando cada
pequeno grupo de militantes num novo dispositivo disciplinar,
competitivo e violento, a serviço do sistema que dizemos combater. Não
há mais “companheiros e companheiras”, por exemplo, mas no máximo
“aliados” táticos-conjunturais – de quem todo mundo sabe que apenas se
aguarda o momento para romper, atualizando-o como inimigo. Estamos
todxs, portanto, altamente mobilizadxs em “modo de espera” (pela
iminente próxima violência) – totalmente reativxs, sem maiores
perspectivas. Como vem dizendo o professor Paulo Arantes: “o novo tempo
[emergencial] do mundo” está marcado pelo encurtamento radical de nossos
horizontes emancipatórios. Não há, portanto, estratégia; é o reino da
conjuntura e das táticas defensivas/reativas perenes [7].
Cada tendência política, cada grupo de ativistas, cada ONG, cada
indivíduo-militante (ou cada microblog; twitter ou perfil de facebook)
pode virar, a qualquer momento, um Órgão de Vigilância, uma Delegacia de
Costumes ou um Tribunal Sumário em potencial – na verdade já o são,
como sabemos, sobretudo para as corporações que controlam privadamente
estas “redes nada sociais”. “Causas” e “Perfis” é o quê não faltam à
disposição no mercado. As Corporações Transnacionais e o seu Estado
Penal Globalizado (Capitalista, Racista e Patriarcal) ri de nós mesmxs, e
agradece pelos ótimos serviços prestados.
Mesmo diante de casos legítimos de
denúncia pública de violência para a nossa própria autodefesa, nos casos
de abusos (inclusive de menor) feito por Idelber de onde partimos para
esta reflexão, como não temos autonomia sobre as formas, processos e
dispositivos por meio dos quais disseminamos estas denúncias, a
iniciativa pode ser facilmente recuperada pelo Sistema Penal e voltar-se
novamente contra nós. Isso não significa condenar as denúncias, mas
encarar todas as suas possíveis consequências (boas e também ruins).
Exemplo concreto de como a violência
pode retornar? Ao terem sido obrigadas a expor massivamente conversas
íntimas para se autodefenderem (e prevenirem outras mulheres) sobre os
riscos reais de predação sexual implicados na postura privada de Avelar
(em total oposição à sua também massificada imagem pública – que era um
dos recursos manipulados por ele para sua predação em série), as vítimas
necessariamente tiveram que vigiar e violar a intimidade não só dele,
mas também delas próprias – algo caro a todo mundo, de esquerda
inclusive, colocando-as juntas a outras mulheres sob novos riscos de
vigilância/exposição massiva, e de retaliações afins por parte deste ou
daquele outro agressor. Já se tornaram célebres casos de homens de
esquerda escrachados que, ao sentirem que foram liquidados política e
moralmente, voltam-se ainda mais violentos contra suas vítimas e contra
toda a esquerda (inclusive às vezes passando a trabalhar diretamente
para a Inteligência Policial do Estado). [8] Mas não só
os agressores escrachados voltam-se contra a esquerda – o quê no final
das contas poderia ser o menor dos problemas, pois personalizado. Tem
sido recorrente nos últimos dias, por conta desta famigerada polêmica,
manifestar-se entre feministas de esquerda uma série de comentários
neste sentido, deslegitimando (e punindo preventivamente?) homens de
esquerda por causa deste caso específico: “não dá para confiar mesmo em
‘homens feministas’, de esquerda então…”; “não dá para confiar em homens
de forma geral…”. Mais uma vez a parte [o indivíduo agressor] pelo todo
[a esquerda e os homens]. No caso dos comentários acima, aí sim,
flertando com o biologismo e a misandria (existem feministas que flertam
com essas concepções, devemos ser francxs e admitir). Homens não teriam
legitimidade, sequer, para se manifestar sobre o assunto…
E outro saldo indiscutível desta
polêmica, para o bem e para o mal: todxs aumentaremos a vigilância e o
controle mútuo (pessoal e social) sobre nossas conversas íntimas em
redes sociais. As vítimas talvez não pudessem encontrar, neste caso em
questão, outra maneira de prevenir outras mulheres (vítimas em
potencial) – demonstrando, assim, solidariedade prática de gênero – sem
recorrer massivamente a este sempre perigoso e questionável recurso: a
quebra do acordo tácito de confidencialidade (que a violenta abordagem
de Idelber e sua ‘falsa simetria’, ademais, já havia feito implodir,
tornando as mulheres reféns de um novo silêncio imposto só por ele).
Para fazer este novo omelete julgaram ter sido necessária a quebra
desses sagrados ovos (sem trocadilhos) para todxs nós, o quê ao mesmo
tempo produziu novas consequências – repressivas e/ou emancipatórias?
Contexto ambivalente e necessidade de autocrítica permanente para a esquerda
Neste contexto ambivalente, como então valorizar
a palavra direta das vítimas e o nosso protagonismo,
(re)empoderando-nos contra a histórica lógica negacionista e punitivista
deste Estado Penal, agora turbinado ciberneticamente [9], sem reproduzir
nas nossas tão necessárias novas formas de autodefesa (de elaboração de
conflitos, reparação e construção horizontal de novos convívios), os
atuais padrões de disciplinarização, vigilância e violência punitiva –
contra o outro, que pode ser inclusive nós mesmxs?
Sairemos mais fortes ou mais fracxs após
cada fratura – e cada agressor/opressor – que conseguirmos expor, por
nós mesmxs, deste Sistema Capitalista, Racista e Machista? Com quem
(grupo, gênero, raça ou classe) e de que forma podemos nos organizar
horizontal e efetivamente para forçar essas fraturas – analisando-as
caso a caso? Este esgarçamento fortalece a nossa Autonomia e propõe
novas formas efetivas de Elaboração dos Conflitos e Construção Coletiva
da Liberdade, ou pode acabar criando outras armadilhas para nós mesmxs –
estruturas opressivas similares, nos jogando, fragmentadxs, deformadxs e
desconfiadxs entre si (beirando à paranóia), totalmente integradxs ao
sistema que buscávamos destruir: nós contra nós mesmxs?
Por
enquanto o Sistema Penal, direta (com seus próprios braços civis e
militares) ou indiretamente (com nosso ativismo retro-punitivista), tem
conseguido nos manter cada vez mais desagregadxs e fragilizadxs:
plenamente capturadxs pela gramática que pretendíamos combater. Há uma
competição frenética entre nós mesmxs para demarcar (frente ao
outro-inimigo) quem é verdadeiramente mais de esquerda (via de regra,
pelo discurso), quem é a feminista mais radical (às vezes inclusive pelo
grau de misandria, deve-se admitir), quem é mais autenticamente negro
(às vezes sob a medição dos níveis de melanina), quem é a periferia mais
original (o CEP mais alto?), quem é o anarquista mais libertário (às
vezes pela disposição sexual), quem é o autônomo mais combativo, quem… ?
A consciência de trabalhadores e
trabalhadoras que um dia pudesse ter nos unido (enquanto classe,
enquanto comum) ficara para trás com o ciclo político que se fechou com a
triunfante farsa da “esquerda” lulo-petista – gestores de partidos e
sindicatos ossificados e movimentos sociais totalmente cooptados à
frente. Sintomático que a célebre saudação, feita pelo
ex-torneiro-ainda-representante-mor deste finado ciclo, “companheiros e
companheiras”, fora com o tempo substituída sem maiores resistências, no
discurso e na prática, por “meus amigos e minhas amigas” (enquanto
Ele-trabalhador se transformava no principal gestor do capitalismo no
Brasil)… Não deveria surpreender que alguns militantes de esquerda
estejam silenciando sobre ou até justificando a postura de Idelber
Avelar sob o mesmo critério – da amizade com ele. Nem que algumxs
governistas estejam aproveitando esta tragédia para tirar uma casquinha
do caso contra as boas críticas que Idelber costumava fazer à gestão
neodesenvolvimentista do capitalismo feita pela mulher Dilma – estaria
tudo explicado pela questão de gênero…
A marcha fúnebre promovida pelo Estado e
a (auto)predação social – com esta “esquerda” à frente – prosseguem,
porém, mais fortes do que nunca. “O inimigo é um só, mas a luta insiste
em se [des]organizar aos fragmentos”, como disse recentemente a Suellen
em artigo já citado neste texto.
Teremos classe para encarar esta
reflexão autocrítica e este desafio permanente pelos quais passa
fundamentalmente a atual construção anticapitalista prática, coletiva e
autônoma, de mulheres e homens realmente novxs por aqui no Brasil?
NOTAS
[1] Ler o texto completo de André Godinho aqui.
[2] Ler o texto completo da Suellen aqui.
[3] Sobre isso ler sob uma perspectiva anticapitalista os livros de Michel Foucault: Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1977-1978) [São Paulo: Martins Fontes, 2008] e Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979) [São Paulo: Martins Fontes, 2008].
[4] Sobre isso ler a
tese “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado Brasileiro”, de Ana Luíza Pinheiro Flauzina (Disponível aqui: http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_arquivos/44/TDE-2006-12-01T170601Z-520/Publico/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf)
[5] Ver Introdução Crítica à Criminologia Brasileira de Vera Malaguti Batista (Rio de Janeiro: Revan, 2011 – p.23/24).
[6] Ver Guy Debord, em Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo:
“O governo do espetáculo, que presentemente detém todos os meios de
falsificar o conjunto da produção assim como da percepção, é senhor
absoluto das recordações tal como é senhor incontrolado dos projetos que
modelam o mais longínquo futuro. Ele reina só em todo o lado; ele executa os seus julgamentos sumários
(…) Os rumores mediático-policiais adquirem num instante, ou no pior
dos casos depois de terem sido repetidos três ou quatro vezes, o peso
indiscutível de provas históricas seculares. Segundo a autoridade
lendária do espetáculo do dia, estranhos personagens eliminados no
silêncio reaparecem como sobreviventes fictícios, cujo retorno poderá
sempre ser evocado ou calculado, e provado pela mais simples diz-se dos
especialistas. Algures entre Aqueronte e Letes estão estes mortos que
não foram regularmente enterrados pelo espetáculo; é suposto estarem
adormecidos, esperando que se queira acordá-los, todos, o terrorista
descido de novo das colinas, e o pirata regressado do mar, e o ladrão
que já não tem necessidade de roubar” [Disponível aqui: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/comentariosse.html].
[7] Ver o livro de Paulo Arantes, O novo tempo do mundo
(São Paulo, Boitempo, 2014). Em especial o primeiro e último ensaio: “O
novo tempo do mundo” e “Depois de Junho a Paz será Total”.
[8] Ler, por exemplo, esta crônica de Dokonal que deve ter se inspirado num caso real recente no Rio de Janeiro (pós-Junho de 2013).
[9] Ler aqui texto de Julian Assange (Wikileaks) sobre as relações umbilicais entre a Google e o Departamento de Estado Norte-Americano.
ARTIGOS E LIVROS CITADOS
Ana Luíza Pinheiro Flauzina – Tese de Doutorado: “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro” (Disponível em http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_arquivos/44/TDE-2006-12-01T170601Z-520/Publico/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf ).
André Godinho – Postagem de Facebook: “Sobre o caso do Idelber, tenho a dizer apenas que não se trata de uma questão judiciária ou moral, mas ética e política” (Disponível em https://www.facebook.com/andree.godinho/posts/951490284878269).
Dokonal – Artigo: “Sobre escrachos, extrema-esquerda e suas próprias novelas: o conto que pensei em escrever” (Disponível aqui)
Guy Debord – Livro: Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo (Disponível aqui).
Julian Assange – Trecho de livro: “Google não é o quê parece” (Disponível aqui)
Michel Foucault – Livros: Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1977-1978) [São Paulo: Martins Fontes, 2008] e Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979) [São Paulo: Martins Fontes, 2008].
Paulo Arantes – Livro: O novo tempo do mundo
(São Paulo, Boitempo, 2014). Em especial o primeiro e último ensaio: “O
novo tempo do mundo” e “Depois de Junho a Paz será Total”.
Suellen – Artigo: “Reflexões acerca de nossas lutas pelo feminismo” (Disponível aqui).
Vera Malaguti Batista – Livro: Introdução Crítica à Criminologia Brasileira (Rio de Janeiro: Revan, 2011)
Fonte: Passa Palavra
Nenhum comentário:
Postar um comentário