PICICA: "Depois de trabalhar em diferentes áreas da psicologia, ele defende a
idéia de que a pulsão de vida está no coletivo e que o profissional
precisa se inserir nas diversas lutas da sociedade." EM TEMPO: Em 2001, na III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília, o argentino Antônio Lancetti já se queixava apontando os limites da Reforma Psiquiátrica brasileira (com a rápida ascensão do PMDB o garrote no governo Dilma deve apertar mais ainda; é bom lembrar que por muito pouco seu governo usou as famigeradas "comunidades terapêuticas" como moeda de troca política) e clamava por uma revolução na Saúde Mental do país.
Entrevista
Do consultório particular à prática coletiva
Depois de trabalhar em diferentes áreas da
psicologia, ele defende a idéia de que a pulsão de vida está no coletivo
e que o profissional precisa se inserir nas diversas lutas da
sociedade.
O argentino Antônio Lancetti iniciou sua
trajetória na psicologia estudando psicanálise. Formou-se em 1975, época
de grande efervescência política em seu país. Quando ainda era
militante estudantil, começou a ler a obra de Marx ao mesmo tempo em que
descobria Sigmund Freud. Embora houvesse grande valorização da
psicanálise, surgia no cenário argentino a discussão sobre as práticas
de grupo. O psiquiatra Henrique Pichon Rivière tinha vivido há poucos
anos uma experiência marcante no campo da intervenção institucional, ao
enfrentar uma greve de funcionários num hospital psiquiátrico de
mulheres e organizar a instituição contando apenas com as pa-cientes. O
episódio deu origem às discussões sobre os grupos operativos.
Nesse contexto, Lancetti começou a trabalhar em
instituições públicas, embora vivesse o conflito de grande parte dos
analistas de esquerda de sua geração: ?Viver com um pé no consultório
particular e outro no serviço público?. No hospital onde trabalhava,
atuava com crianças. Como era grande o número de pacientes, os
profissio-nais começaram a reuni-los em grupos, constatando melhoras
consideráveis.
Foi nesse clima que veio para o Brasil, onde
sua primeira atividade foi a apresentação de um trabalho em um congresso
internacional sobre psiquiatria e pediatria, em que questionava a
narrativa da psicanálise. Nesse trabalho, abordou o caso de uma criança
que havia atendido no hospital argentino. Embora continuasse atendendo
em consultório particular, manteve suas atividades voltadas para o
serviço público. Foi o primeiro supervisor da Coordenadoria de Saúde
Mental do Estado, na administração Franco Montoro. Foi professor do
Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, e do Instituto Brasileiro de
Psicanálise (Ibrapsi), no Rio de Janeiro, atividades que deixou de
exercer para ministrar um curso para formação de agentes de saúde mental
com o objetivo de criar quadros para o trabalho nos serviços públicos.
Hoje é secretário de Ação Comunitária no
município de Santos, onde começou a atuar na gestão da prefeita Telma de
Souza como assessor do então secretário da Saúde David Capistrano. Foi
naquele município que participou, como um dos líderes, da intervenção na
Casa de Saúde Anchieta, primeiro fechamento de uma instituição
hospitalar pela óptica do movimento por uma sociedade sem manicô-mios.
Sua atuação na Secretaria é marcada por um trabalho com os segmentos
excluídos da sociedade: meninos de rua, pacientes cronificados dos
hospitais psiquiátricos e mendigos. Como analista institucional de
orientação deleuziana, Lancetti recebeu o Jornal do CRP para falar sobre
sua experiência desde os tempos de consultório até os dias de hoje.
CRP - Um
aspecto que marca muito a sua trajetória e que o diferencia de grande
parte dos psicólogos é o fato de o senhor ter se iniciado na psicanálise
e partido para a prática no serviço público. Comumente o profissional
começa sua carreira no serviço público enquanto termina sua formação e
aí parte para a atuação na clínica privada.
Lancetti - A
minha entrada na psicologia foi através da psicanálise. Na verdade, eu
era estudante de engenharia e me interessava por disciplinas como a
física e depois a filosofia. Logo cedo, como estudante, eu fui
militante. Nós estudávamos livros como ?O Capital?, de Karl Marx, e
nessa época eu também descobri Freud. Comecei a estudar psicanálise,
primeiro sozinho, e depois em grupos. Em Buenos Aires havia um debate
recente da discussão política na psicanálise. E também se discutia a
questão dos grupos, as práticas coletivas transformadoras e o apoio das
organizações revolucionárias. Havia uma organização composta pela
Federação dos Psiquiatras e Associação dos Psicólogos que dava formação
ao mesmo tempo de psicanálise, materialismo dialético e materialismo
histórico. Mas a formação era fundamentalmente psicanalítica.
Por outro lado, havia uma corrente de ar
fresco, representada por Henrique Pichon Rivière. Antes de eu vir para o
Brasil teve um processo de discussão em relação à questão da
psicanálise ligada à história argentina, às lutas das organizações de
esquerda, a todo o processo repressivo. A faculdade de psicologia
liderava as greves, era um dos centros de liderança das discussões
políticas.
A grande questão que apareceu talvez nesse
mundo foi a chegada do anti-Édipo. Quando chegou, o anti-Édipo deu uma
reviravolta na cabeça de todo mundo. Na Argentina, a corrente lacaniana
se desenvolveu muito na época do processo militar. O lacanismo esteve
muito ligado a esse processo. Na época foi necessário esconder os livros
de marxismo, tirá-los das bibliotecas, estudar Heidegger e dar cursos
de fenomenologia do espírito para introduzir Lacan. Foi grande a
proliferação de escolas. Havia os gurus, a moda eram os grupos de
estudo.
Nesse clima, eu comecei a trabalhar num
hospital público. Nós tínhamos que fazer uma espécie de vestibular para
poder entrar num trabalho que era público. Havia filas de pessoas
interessadas em trabalhar. E o trabalho era gratuito. Não se recebia.
Nós íamos algumas vezes por semana e pagávamos supervisor com dinheiro
próprio. E além disso pagávamos análise.
Nós éramos muito rígidos. Recons-truíamos todas
as sessões e discutíamos os casos. Apesar de a psicanálise ser muito
valorizada, começamos a discutir a questão dos grupos. Eu trabalhava no
serviço de atendimento a crianças. Como tínhamos muitos pacientes,
começamos a fazer grupos. Não sabíamos por que, mas as crianças dos
grupos melhoravam e as outras não melhoravam.
Mais ou menos nesse clima eu vim para o Brasil,
inicialmente para o Rio de Janeiro. Minha primeira atividade foi num
congresso internacional de psicanálise e pediatria. Apresentei um
trabalho naquele congresso sobre uma criança que havíamos atendido no
hospital. A questão principal que o trabalho levantava era sobre que
tipo de narrativa era a da clínica. Isso foi uma coisa que sempre me
preocupou. Se era uma narrativa literária, literal, e como isso tinha a
ver com o tipo de transmissão que se fazia para o supervisor. Todo mundo
conta sua história a partir da teoria que professa. Um paciente vai
produzir certo tipo de deslocamento metonímico, enfim, de acordo com a
teoria do analista.
E nós estávamos discutindo a questão da crítica
institucional. Pichon já tinha suportado uma greve de funcionários num
hospital psiquiátrico de mulheres e organizou o hospital só com as
pacientes. Foi uma coisa parecida ao que aconteceu com Basaglia na
Segunda Guerra. Um dia houve um bombardeio e o hospital ficou sem
funcionários e nada aconteceu. Assim começou a surgir a idéia de que não
se precisava de funcionários. Que eles mais atrapalhavam do que
ajudavam. E esta idéia era muito forte. Isso reapareceu aqui. Na minha
história no Brasil quando nós começamos a trabalhar com a rede
alternativa à psiquiatria. Isso foi a primeira experiência que eu vivi
aqui, e depois nós fundamos, com um grupo de companheiros, o grupo de
saúde mental do PT. Esse grupo teve uma importância muito destacável na
área de saúde mental. Foi a partir desse grupo que se gerou o movimento
que desencadeou os Congressos de Saúde Mental e a adoção da idéia de uma
sociedade sem manicômios.
Quando vim para o Brasil eu tinha que viver de
alguma coisa. Então eu vivia do consultório, mas trabalhava dando
formação para outros trabalhadores de saúde mental. Eu estava com o
drama de toda essa geração, que é ter um pé na saúde pública e outro na
saúde particular. Como eu, havia vários. Principalmente aqueles
analistas de esquerda. Para nós era mais valioso o serviço público. Eu
me criei como psicólogo, num ?fermento? onde o público era teoricamente
mais interessante em todos os aspectos. O público descrevia mais sobre
os acontecimentos. Os debates das reuniões de equipe de que nós
participávamos eram muito interessantes.
CRP - O
senhor foi um dos interventores na Casa de Saúde Anchieta, realizada em
Santos na administração da prefeita Telma de Souza e que culminou no
desmantelamento do hospital. Como foi o processo que desencadeou a
intervenção?
Lancetti - O
hospital era um campo de concentração atípico, porque geralmente os
campos ficam afastados e esse ficava no centro da cidade. Não havia
jurisprudência para uma intervenção. O professor Sérgio da Cunha, que é
um grande jurista, dizia que não havia embasamento legal e que existiam
apenas os princípios da Constituição de 1988. Ou seja, não existia uma
regulamentação para fazer a intervenção e nós dependeríamos do apoio que
conseguíssemos na cidade.
Por outro lado, o David Capistrano, secretário
municipal de Saúde na época, conseguiu o resultado de uma supervisão
técnica realizada no hospital. O documento apontava que havia mortes
injustificadas, excesso de pacientes. Baseado nessa história, nós
lançamos uma campanha no rádio em que dizíamos para a população que não
enviasse pessoas para aquele hospital. E preparamos isso muito
rapidamente. A intervenção, portanto, não foi dada pelas vias legais.
Foi baseada nos resultados dessa supervisão técnica.
Uma semana depois que fizemos a intervenção um
juiz concedeu liminar favorável ao hospital e tivemos que sair. Na
semana seguinte a liminar foi suspensa e voltamos ao hospital. Começou
uma batalha extraordinária porque, na verdade, na experiência de Santos,
nós não só inventamos coisas singulares, nós misturamos todos os
modelos que tínhamos na cabeça. Nós tínhamos o modelo basagliano,
segundo o qual tínhamos que ir contra a instituição, o modelo do
território, de Trieste (município italiano que desenvolveu com sucesso a
reforma, dando origem a uma sociedade sem manicômios).
Nós tivemos que remontar o hospital, porque as
pessoas estavam muito doentes. Tinham piolhos, infecções. E dávamos
alta. Tudo era muito complicado. Os médicos não apareciam para
trabalhar. Todos foram mandados embora. E os funcionários eram muito
cronificados e administravam castigos corporais, eletrochoques etc. Ao
verem desmontarmos aquilo, fizeram uma greve. Ficamos sem funcionários e
tivemos que administrar sem eles. Nós fizemos uma assembléia, dividimos
o serviço. Os funcionários estavam todos lá fora e o hospital
funcionando até melhor sem eles.
Nós fazíamos assembléias com todos os parentes
que chegavam aos domingos. E também com os pacientes. Primeiro,
separadamente, homens e mulheres e, depois, juntávamos todos. Eram
assembléias bem complicadas, mas extraordinárias. Eles fizeram teatro,
depois apareceu a Rádio Tan Tan (programa desenvolvido numa rádio de
Santos, totalmente produzido pelos internos do hospital) e tantos outros
inventos. E aí o grupo ia dividindo-se no hospital, e os que estavam
mais fortalecidos saíam com seus pacientes e montavam os Núcleos de
Atenção Psico-Social (Naps). Nós vivíamos num estado de virtualidade
muito intenso. Havia constantemente idéias e muitos projetos.
CRP -
Hoje algumas correntes do movimento da luta antimanicomial consideram
que os Naps correm riscos porque estariam sendo cortejados pela
iniciativa privada como uma forma de anga-riar verbas do governo
federal, através de convênios com o SUS, mas sem os princípios que os
norteavam quando de sua criação. O senhor também vê tais riscos?
Lancetti - Com
os métodos de atendimento da iniciativa privada que se conhecem até
agora duvido que tenham êxito, que façam alguma coisa inteligente,
porque o sistema é de rendimento. Nos Naps é preciso investir muito nas
pessoas. A essência da história dos Naps é a valorização, a criação de
valores, a emergência.
Para isso precisa ter muita inventividade. E,
principalmente, a matéria com a qual se transforma é o próprio corpo dos
trabalhadores de saúde mental. Eles põem o corpo. Se isso não acontece,
não vai haver iniciativa pública que dê conta, e eu não sei qual vai
ser o tipo de iniciativa. Pode até ser mais fácil fazê-lo através da
iniciativa privada, porque a empresa pública atrapalha bem no Brasil,
pelas regras, pelo mundo kafkiano que implica administrá-la. Depende de
como se invista, que grau de importância vai ter o investimento daquilo
que não é público.
Há, no entanto, um ponto fundamental: duvido de
qualquer experiência que não tenha trabalho coletivo, grupos. A pulsão
de vida está no coletivo. Depende disso. Essa é que é a matéria. Se a
administração vai ser privada, aí eu não sei. Agora, o primeiro
analisador seria o dinheiro. Sempre a análise institucional começa pelo
dinheiro, que é o principal analisador de qualquer instituição.
Na nossa experiência, por exemplo, a história
da reforma psiquiátrica se expandiu para o campo da assistência social.
Nós juntamos uma população sedentária, pacientes crônicos do hospital
psiquiátrico, com uma população nômade, que são os meninos de rua. Foi
fantástico. Nós tínhamos um paciente com Síndrome de Down que estava lá
internado desde os 8 anos. Ele se chamava Manequinho. Faleceu com 38
anos. Ele só batia tampinhas de desodorante. Não fazia outra coisa. E aí
os meninos entraram numa relação com ele e, um dia, eu encontrei o
Manequinho dançando twist. Uma vez, o psiquiatra levou o Manequinho numa
assembléia que eu coordenava uma vez por semana. Eu achei muito
sensível e adequado da parte dele. Só que ele me disse que não havia
sido idéia dele levar o Manequinho, mas de um menino, que o havia
levado. Nós vivíamos uma época de tanta intensidade que não houve nenhum
suicídio no hospital. Não havia espaço para a morte. Havia uma grande
intensidade de vida. O que se criava, tudo se reinscrevia. Houve uma
verdadeira intervenção institucional, uma verdadeira revolução. Ninguém
que passou por lá ficou igual. Ou se separou, ou se casou, a vida dele
se transformou. Então, se a iniciativa privada conseguir fazer isso,
conseguir que se desarranje tanto a vida dessas pessoas...
CRP - Como foi a atuação dos psicólogos nesse período?
Lancetti - Foi
importante a intervenção na instituição psicologia. Os psicólogos
chegavam lá no Anchieta e perguntavam onde era a sala deles. Eles
queriam ter uma sala. Nós explicávamos que não tinha sala. Que eles
tinham que ir para o pátio e se virar. Muitos choravam, se desesperavam.
Nós explicávamos, por exemplo, que ele tinha que cortar as unhas dos
pacientes, porque quando se corta a unha entra em contato, conversa e
começa a saber da vida, da história. E fazer daquele caso uma biografia.
Isso foi muito complicado, principalmente com psicólogos, para eles
entenderem que tinham que tocar, o problema da escuta, que tudo isso
estava totalmente reformulado.
CRP -
Essa é uma das contradições que o profissional da psicologia está
enfrentando agora. Ele continua aprendendo na universidade a trabalhar
com um modelo médico-clínico, mas vai encontrar uma realidade totalmente
diversa e não sabe lidar com ela. Na sua opinião, como atuar nessas
condições?
Lancetti - O
psicólogo precisa ler mais Nietzsche e, principalmente, Spinoza, para
entrar em contato com a sensibilidade psicológica. Na minha opinião,
todo desarranjo, toda quebra de identidade profissional é benéfica,
porque todos os fracassos institucionais, ou o hospital psiquiátrico, ou
a Febem, adotaram os modelos médico-clínicos e o psicólogo foi na
carona disso.
Toda ruptura, desde que seja séria, vai
quebrar, mas não vai deixar sem sistemática. Mas ela precisa ser
rigorosa. É preciso dizer que não é de um jeito, mas explicar, passo a
passo, como é que funciona, por um problema de ética enunciativa. Para
isso a psicologia vai ter que mudar, criar outros tipos de recursos,
outros paradigmas. Mas isso traz um desarranjo corporal. Por isso as
pessoas precisam fazer supervisão, para que alguém suporte e processe o
desarranjo que produz essa mudança.
É interessante que essa ida do psicólogo às
diferentes experiências implique uma viagem onde ele não fique se
defendendo. Porque senão ele vira um juiz. O trabalho do psicólogo no
Poder Judiciário, por exemplo, o transforma no aprendiz de uma
personagem de Kafka. Ele é muito pior do que o juiz. Eu digo isso porque
constantemente tenho discussões aqui com pessoas muito inteligentes e
sensíveis que trabalham no Judiciário. Mas na hora que se toca o
paradigma, aí eles ficam na defensiva. Então aquilo começa a funcionar
como a procura das idéias justas. E o problema não é ter idéias justas,
como dizia Bob Dylan. É ter justo uma idéia.
Então ficam atrapalhando aqueles processos
ricos de produção, argumentando que está faltando isso ou aquilo. E isso
é muito démodé, porque as sociedades disciplinares, todas as ciências
de radical psi, como Foucault demonstrou, se inventaram para criar um
tipo de individuação. Mas isso está fora de moda. Agora estamos na
sociedade de controle. A mídia funciona. No Brasil, há um exemplo. A
rede Globo funciona melhor que a cadeia. A capacidade do sujeito ter
autocontrole é muito maior pela eficácia do acoplamento dos diversos
componentes do sistema semiótico vigente, em que a disciplina é um
deles. Mas não é o fundamento. Não estamos no final do século XIX. Então
é importante que essa ida do psicólogo transmita um novo olhar, que
seja uma espécie de olhar antropológico lúcido. Quando ele transita do
Judiciário para a assistência social, por exemplo, isso é muito
interessante. E às vezes o psicólogo consegue isso.
CRP -
Nesse caso, em termos concretos, o que se exige hoje de um profissional
da psicologia para trabalhar nos projetos que estão sendo desenvolvidos
em Santos?
Lancetti - É
necessário uma desaprendizagem que implica um outro investimento que às
vezes eles não estão dispostos. Por isso é que eu gosto mais de
assistentes sociais. Primeiro porque eles são menos preconceituosos, não
têm nenhum modelo lacaniano na cabeça. Então eles conseguem fazer
melhor os grupos, permitem que as coletividades se organizem mais. Eles
têm uma afecção maior. O assistente social às vezes é muito impregnado
de um espírito piegas, é verdade. Mas às vezes ele consegue,
relativamente, se desvencilhar disso, porque disso ninguém consegue se
desvencilhar. Só Nietzsche deixou de ser cristão.
É preciso comandar. Sou eu que me lanço. Não é
como no consultório que alguém me procura e vem me perguntar pela
verdade da sua história. É um processo distinto. E isso é um campo mais
complexo. O grau de complexidade da objetologia formal se complica. Ela é
menos fixa, do ponto de vista epistemológico a coisa fica muito mais
rica, muito mais interessante. É por isso que eu digo que é no serviço
público que isso acontece, e não no consultório particular. Ali é muito
reduzido. É importante que a ida do psicólogo não seja uma viagem de
turista. O turista faz uma viagem que poderia fazer no seu aparelho de
vídeo. Um viajante é diferente de um turista. É isso que seria
interessante que a pessoa que está iniciando pense.
É preciso também que haja mais rigor na
formação. Que as pessoas estudem mais. Eu vejo uma geração em que é
complicado ter disciplina, estudar, ler. Um psicólogo mal informado é
como um lutador de boxe míope. Não dá certo. Ele vai apanhar. E estou
falando de informação em outros campos, como literatura, política. E que
não fique reduzido a sua área, porque senão fica muito empobrecido.
CRP - A
realidade dos órgãos públicos de Santos, hoje, não reflete a maioria das
instituições brasileiras. No âmbito mais geral, como o senhor pensa que
o psicólogo possa atuar nessas instituições?
Lancetti - Eu
acho que aí se daria uma nota lacaniana. Eu penso que o conceito de
objeto a de Lacan ainda não foi suficientemente explorado. Ou então o
objeto paradoxal de Winicott. O espaço é um espaço transicional. Esse é
que é o drama do psicólogo ou de qualquer outra profissão. Quando ele
começa a pensar em termos espaciais, ele se perde. O problema é o tempo.
Então, se ele tem que começar a encontrar espaço, reconhecimento de
identidade e tudo isso, ele vai cair no drama do corporativismo. Tem que
reformular o conceito de espaço, de território. E de como ele intervém,
seja no campo clínico, institucional grupal, coletivo etc. Caso
contrário ele empobrece sua ação e vai cair nesse drama que Gilles
Deleuze chama o fim da luta de classes e o reinado do corporativismo.
Isso vai empobrecer tudo, simplificar de novo.
Então, isso é o mais interessante que posso
dizer. Sim, ele tem que intervir, mas como intervir, para quê? Como
produzir, que tipo de produção ele vai conseguir, no campo da
subjetividade, da produção social da subjetividade? Como ele vai pensar
diversos sistemas semióticos? Porque isso não se limita à linguagem, são
todos os gestuais, os pré-significantes. Por exemplo, no caso da
criança, do desenvolvimento pessoal e social, previsto pelo ECA, o
psicólogo pode dizer assim: onde está a singularidade, o traço único
desse desenvolvimento? É isso que o psicólogo tem que dizer. É esse que
tem que ser o olhar, a intervenção e o grito do psicólogo, para ele ter
uma importância. Aí é que está a loucura. Um supervisionando meu falava
que ele tinha um paciente no manicômio judiciário que o chamava e dizia
assim: olha, o senhor é o único que pode me entender, porque o senhor é
psicótico. E ele corrigia e dizia que não era psicótico, mas psicólogo. O
paciente insistia que ele era psicótico. No dia que aceitou que era
psicótico, ele começou a mudar aquele sujeito.
Esse é que é o espaço do psicólogo. E, para
fazer isso, precisa ser muito sério, senão vira porra-louquice. E isso é
o rigor do trabalho, da formação, que não é aquilo quadradinho. Agora
também estão querendo aplicar a tríade da formação do psicólogo e do
psicanalista ao caso do educador de rua. Então é a tríade supervisão,
formação teórica e de novo caímos no aparelho da distinção entre objeto
formal abstrato e prescrições técnicas. E depois não dá certo. Não
funciona do jeito que eu queria. É preciso criar passo a passo essa
crítica, e eu acho que todas as áreas são interessantes, desde que haja o
enriquecimento e a valorização.
CRP -
Dentro dessa sua visão do trabalho institucional do psicólogo, como o
senhor pensa o papel do Conselho Regional de Psicologia?
Lancetti -
Tudo o que se faça em prol dessas idéias que para nós são caras e
fundamentais, agenciar essa idéia de objeto complexo, a idéia de
produção de solidariedade, de produção de subjetividade ligada à vida,
enfim, tudo o que seja produção de vida nesse campo tão complexo, eu
acho que tem um campo propício. Essa linha de atuação do CRP de
acompanhar toda a questão antimanicomial, coisa que antes não se fazia, é
um fato positivo. Além de acompanhar e polemizar toda a questão de
direitos, como é que se geram esses direitos.
Eu acho que é um desafio criar essa diversidade
de direitos que não sejam só os do psicólogo. Esse é um papel muito
interessante. Acompanhar todas essas lutas de corte ético, de corte
vital, que são as lutas antimanicomiais, a produção de direitos, a
criação de dispositivos onde a criança se desenvolva. Eu acho que o
psicólogo tem um campo muito interessante em relação à questão da
institucionalização da criança nas Febens. Porque é dramática a
situação, principalmente em São Paulo, onde está a metade dos internos
do Brasil.
Tudo isso não só gera um campo de complexidade
apetecível do ponto de vista teórico, como de apoio a todos os
companheiros que estão ali presentes. Você pode reparar que em todas
essas experiências de inovações e invenções institucionais e de grandes
lutas pela cidadania, seja no campo dos direitos singulares, dos loucos,
da mulher ou da criança, há psicólogos. Porém, é importante que a gente
problematize. Como diz o Krenak, que é um grande líder indígena, ?o que
o exército, a igreja e as mais diversas instituições não conseguiram
fazer com meus parentes, os psicólogos conseguiram. Um psicólogo é um
bicho perigosíssimo?.
Então todo esse trabalho da transferência
institucional, essa área de intervenção, tem uma potência muito grande. E
ele tem um papel também na reabilitação social, que passa pelo trabalho
que não fica reduzido ao consultório. É importante também que nós, com
toda essa velocidade que o mundo atual apresenta, e apesar de o
imperialismo semiótico nos impor acreditar que nada muda, consigamos
investir nessas experiências que estão se multiplicando no Brasil. No
campo da saúde mental, no campo da criança, os projetos são muitos. E
acho que nós temos muito a dizer.
Mas precisamos ser humildes. Nós temos muito a
aprender com os pedagogos. Por exemplo, no caso dos meninos de rua, há
uma preponderância da pedagogia, mas não é uma pedagogia cognitiva. Os
processos mais duros, mais rigorosos que nós podemos chamar de produção
de subjetividade com seus acoplamentos, seus agenciamentos, enfim todo
esse campo que é o do inconsciente produtivo e não representativo, todo
esse campo não é reduzido ao psicólogo, mas nós não devemos desprezá-lo.
E o papel do CRP é problematizar, discutir, reagrupar, fortalecer essas
lutas, essas grandes lutas que estão se travando, essa luta pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente é um embate muito sério. Mas nós só
demonstraremos que o ECA funciona se reduz a mortalidade infantil, a
repetência, se aumenta o sucesso escolar, a promoção da criança, a
promoção do desenvolvimento. E aí nós temos muito a dizer e fazer.
Fonte: CRP SP
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