fevereiro 04, 2015

"Do consultório particular à prática coletiva" - CRP-SP entrevista Antônio Lancetti

PICICA: "Depois de trabalhar em diferentes áreas da psicologia, ele defende a idéia de que a pulsão de vida está no coletivo e que o profissional precisa se inserir nas diversas lutas da sociedade." EM TEMPO: Em 2001, na III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília, o argentino Antônio Lancetti já se queixava apontando os limites da Reforma Psiquiátrica brasileira (com a rápida ascensão do PMDB o garrote no governo Dilma deve apertar mais ainda; é bom lembrar que por muito pouco seu governo usou as famigeradas "comunidades terapêuticas" como moeda de troca política) e clamava por uma revolução na Saúde Mental do país.


Entrevista

Do consultório particular à prática coletiva

Depois de trabalhar em diferentes áreas da psicologia, ele defende a idéia de que a pulsão de vida está no coletivo e que o profissional precisa se inserir nas diversas lutas da sociedade.

O argentino Antônio Lancetti iniciou sua trajetória na psicologia estudando psicanálise. Formou-se em 1975, época de grande efervescência política em seu país. Quando ainda era militante estudantil, começou a ler a obra de Marx ao mesmo tempo em que descobria Sigmund Freud. Embora houvesse grande valorização da psicanálise, surgia no cenário argentino a discussão sobre as práticas de grupo. O psiquiatra Henrique Pichon Rivière tinha vivido há poucos anos uma experiência marcante no campo da intervenção institucional, ao enfrentar uma greve de funcionários num hospital psiquiátrico de mulheres e organizar a instituição contando apenas com as pa-cientes. O episódio deu origem às discussões sobre os grupos operativos.

Nesse contexto, Lancetti começou a trabalhar em instituições públicas, embora vivesse o conflito de grande parte dos analistas de esquerda de sua geração: ?Viver com um pé no consultório particular e outro no serviço público?. No hospital onde trabalhava, atuava com crianças. Como era grande o número de pacientes, os profissio-nais começaram a reuni-los em grupos, constatando melhoras consideráveis. 

Foi nesse clima que veio para o Brasil, onde sua primeira atividade foi a apresentação de um trabalho em um congresso internacional sobre psiquiatria e pediatria, em que questionava a narrativa da psicanálise. Nesse trabalho, abordou o caso de uma criança que havia atendido no hospital argentino. Embora continuasse atendendo em consultório particular, manteve suas atividades voltadas para o serviço público. Foi o primeiro supervisor da Coordenadoria de Saúde Mental do Estado, na administração Franco Montoro. Foi professor do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, e do Instituto Brasileiro de Psicanálise (Ibrapsi), no Rio de Janeiro, atividades que deixou de exercer para ministrar um curso para formação de agentes de saúde mental com o objetivo de criar quadros para o trabalho nos serviços públicos.

Hoje é secretário de Ação Comunitária no município de Santos, onde começou a atuar na gestão da prefeita Telma de Souza como assessor do então secretário da Saúde David Capistrano. Foi naquele município que participou, como um dos líderes, da intervenção na Casa de Saúde Anchieta, primeiro fechamento de uma instituição hospitalar pela óptica do movimento por uma sociedade sem manicô-mios. Sua atuação na Secretaria é marcada por um trabalho com os segmentos excluídos da sociedade: meninos de rua, pacientes cronificados dos hospitais psiquiátricos e mendigos. Como analista institucional de orientação deleuziana, Lancetti recebeu o Jornal do CRP para falar sobre sua experiência desde os tempos de consultório até os dias de hoje.

CRP - Um aspecto que marca muito a sua trajetória e que o diferencia de grande parte dos psicólogos é o fato de o senhor ter se iniciado na psicanálise e partido para a prática no serviço público. Comumente o profissional começa sua carreira no serviço público enquanto termina sua formação e aí parte para a atuação na clínica privada.

Lancetti - A minha entrada na psicologia foi através da psicanálise. Na verdade, eu era estudante de engenharia e me interessava por disciplinas como a física e depois a filosofia. Logo cedo, como estudante, eu fui militante. Nós estudávamos livros como ?O Capital?, de Karl Marx, e nessa época eu também descobri Freud. Comecei a estudar psicanálise, primeiro sozinho, e depois em grupos. Em Buenos Aires havia um debate recente da discussão política na psicanálise. E também se discutia a questão dos grupos, as práticas coletivas transformadoras e o apoio das organizações revolucionárias. Havia uma organização composta pela Federação dos Psiquiatras e Associação dos Psicólogos que dava formação ao mesmo tempo de psicanálise, materialismo dialético e materialismo histórico. Mas a formação era fundamentalmente psicanalítica. 

Por outro lado, havia uma corrente de ar fresco, representada por Henrique Pichon Rivière. Antes de eu vir para o Brasil teve um processo de discussão em relação à questão da psicanálise ligada à história argentina, às lutas das organizações de esquerda, a todo o processo repressivo. A faculdade de psicologia liderava as greves, era um dos centros de liderança das discussões políticas.

A grande questão que apareceu talvez nesse mundo foi a chegada do anti-Édipo. Quando chegou, o anti-Édipo deu uma reviravolta na cabeça de todo mundo. Na Argentina, a corrente lacaniana se desenvolveu muito na época do processo militar. O lacanismo esteve muito ligado a esse processo. Na época foi necessário esconder os livros de marxismo, tirá-los das bibliotecas, estudar Heidegger e dar cursos de fenomenologia do espírito para introduzir Lacan. Foi grande a proliferação de escolas. Havia os gurus, a moda eram os grupos de estudo.

Nesse clima, eu comecei a trabalhar num hospital público. Nós tínhamos que fazer uma espécie de vestibular para poder entrar num trabalho que era público. Havia filas de pessoas interessadas em trabalhar. E o trabalho era gratuito. Não se recebia. Nós íamos algumas vezes por semana e pagávamos supervisor com dinheiro próprio. E além disso pagávamos análise.

Nós éramos muito rígidos. Recons-truíamos todas as sessões e discutíamos os casos. Apesar de a psicanálise ser muito valorizada, começamos a discutir a questão dos grupos. Eu trabalhava no serviço de atendimento a crianças. Como tínhamos muitos pacientes, começamos a fazer grupos. Não sabíamos por que, mas as crianças dos grupos melhoravam e as outras não melhoravam.

Mais ou menos nesse clima eu vim para o Brasil, inicialmente para o Rio de Janeiro. Minha primeira atividade foi num congresso internacional de psicanálise e pediatria. Apresentei um trabalho naquele congresso sobre uma criança que havíamos atendido no hospital. A questão principal que o trabalho levantava era sobre que tipo de narrativa era a da clínica. Isso foi uma coisa que sempre me preocupou. Se era uma narrativa literária, literal, e como isso tinha a ver com o tipo de transmissão que se fazia para o supervisor. Todo mundo conta sua história a partir da teoria que professa. Um paciente vai produzir certo tipo de deslocamento metonímico, enfim, de acordo com a teoria do analista.

E nós estávamos discutindo a questão da crítica institucional. Pichon já tinha suportado uma greve de funcionários num hospital psiquiátrico de mulheres e organizou o hospital só com as pacientes. Foi uma coisa parecida ao que aconteceu com Basaglia na Segunda Guerra. Um dia houve um bombardeio e o hospital ficou sem funcionários e nada aconteceu. Assim começou a surgir a idéia de que não se precisava de funcionários. Que eles mais atrapalhavam do que ajudavam. E esta idéia era muito forte. Isso reapareceu aqui. Na minha história no Brasil quando nós começamos a trabalhar com a rede alternativa à psiquiatria. Isso foi a primeira experiência que eu vivi aqui, e depois nós fundamos, com um grupo de companheiros, o grupo de saúde mental do PT. Esse grupo teve uma importância muito destacável na área de saúde mental. Foi a partir desse grupo que se gerou o movimento que desencadeou os Congressos de Saúde Mental e a adoção da idéia de uma sociedade sem manicômios.

Quando vim para o Brasil eu tinha que viver de alguma coisa. Então eu vivia do consultório, mas trabalhava dando formação para outros trabalhadores de saúde mental. Eu estava com o drama de toda essa geração, que é ter um pé na saúde pública e outro na saúde particular. Como eu, havia vários. Principalmente aqueles analistas de esquerda. Para nós era mais valioso o serviço público. Eu me criei como psicólogo, num ?fermento? onde o público era teoricamente mais interessante em todos os aspectos. O público descrevia mais sobre os acontecimentos. Os debates das reuniões de equipe de que nós participávamos eram muito interessantes. 

CRP - O senhor foi um dos interventores na Casa de Saúde Anchieta, realizada em Santos na administração da prefeita Telma de Souza e que culminou no desmantelamento do hospital. Como foi o processo que desencadeou a intervenção?

Lancetti - O hospital era um campo de concentração atípico, porque geralmente os campos ficam afastados e esse ficava no centro da cidade. Não havia jurisprudência para uma intervenção. O professor Sérgio da Cunha, que é um grande jurista, dizia que não havia embasamento legal e que existiam apenas os princípios da Constituição de 1988. Ou seja, não existia uma regulamentação para fazer a intervenção e nós dependeríamos do apoio que conseguíssemos na cidade.

Por outro lado, o David Capistrano, secretário municipal de Saúde na época, conseguiu o resultado de uma supervisão técnica realizada no hospital. O documento apontava que havia mortes injustificadas, excesso de pacientes. Baseado nessa história, nós lançamos uma campanha no rádio em que dizíamos para a população que não enviasse pessoas para aquele hospital. E preparamos isso muito rapidamente. A intervenção, portanto, não foi dada pelas vias legais. Foi baseada nos resultados dessa supervisão técnica.

Uma semana depois que fizemos a intervenção um juiz concedeu liminar favorável ao hospital e tivemos que sair. Na semana seguinte a liminar foi suspensa e voltamos ao hospital. Começou uma batalha extraordinária porque, na verdade, na experiência de Santos, nós não só inventamos coisas singulares, nós misturamos todos os modelos que tínhamos na cabeça. Nós tínhamos o modelo basagliano, segundo o qual tínhamos que ir contra a instituição, o modelo do território, de Trieste (município italiano que desenvolveu com sucesso a reforma, dando origem a uma sociedade sem manicômios).

Nós tivemos que remontar o hospital, porque as pessoas estavam muito doentes. Tinham piolhos, infecções. E dávamos alta. Tudo era muito complicado. Os médicos não apareciam para trabalhar. Todos foram mandados embora. E os funcionários eram muito cronificados e administravam castigos corporais, eletrochoques etc. Ao verem desmontarmos aquilo, fizeram uma greve. Ficamos sem funcionários e tivemos que administrar sem eles. Nós fizemos uma assembléia, dividimos o serviço. Os funcionários estavam todos lá fora e o hospital funcionando até melhor sem eles.

Nós fazíamos assembléias com todos os parentes que chegavam aos domingos. E também com os pacientes. Primeiro, separadamente, homens e mulheres e, depois, juntávamos todos. Eram assembléias bem complicadas, mas extraordinárias. Eles fizeram teatro, depois apareceu a Rádio Tan Tan (programa desenvolvido numa rádio de Santos, totalmente produzido pelos internos do hospital) e tantos outros inventos. E aí o grupo ia dividindo-se no hospital, e os que estavam mais fortalecidos saíam com seus pacientes e montavam os Núcleos de Atenção Psico-Social (Naps). Nós vivíamos num estado de virtualidade muito intenso. Havia constantemente idéias e muitos projetos.

CRP - Hoje algumas correntes do movimento da luta antimanicomial consideram que os Naps correm riscos porque estariam sendo cortejados pela iniciativa privada como uma forma de anga-riar verbas do governo federal, através de convênios com o SUS, mas sem os princípios que os norteavam quando de sua criação. O senhor também vê tais riscos?

Lancetti - Com os métodos de atendimento da iniciativa privada que se conhecem até agora duvido que tenham êxito, que façam alguma coisa inteligente, porque o sistema é de rendimento. Nos Naps é preciso investir muito nas pessoas. A essência da história dos Naps é a valorização, a criação de valores, a emergência.

Para isso precisa ter muita inventividade. E, principalmente, a matéria com a qual se transforma é o próprio corpo dos trabalhadores de saúde mental. Eles põem o corpo. Se isso não acontece, não vai haver iniciativa pública que dê conta, e eu não sei qual vai ser o tipo de iniciativa. Pode até ser mais fácil fazê-lo através da iniciativa privada, porque a empresa pública atrapalha bem no Brasil, pelas regras, pelo mundo kafkiano que implica administrá-la. Depende de como se invista, que grau de importância vai ter o investimento daquilo que não é público.

Há, no entanto, um ponto fundamental: duvido de qualquer experiência que não tenha trabalho coletivo, grupos. A pulsão de vida está no coletivo. Depende disso. Essa é que é a matéria. Se a administração vai ser privada, aí eu não sei. Agora, o primeiro analisador seria o dinheiro. Sempre a análise institucional começa pelo dinheiro, que é o principal analisador de qualquer instituição.
Na nossa experiência, por exemplo, a história da reforma psiquiátrica se expandiu para o campo da assistência social. Nós juntamos uma população sedentária, pacientes crônicos do hospital psiquiátrico, com uma população nômade, que são os meninos de rua. Foi fantástico. Nós tínhamos um paciente com Síndrome de Down que estava lá internado desde os 8 anos. Ele se chamava Manequinho. Faleceu com 38 anos. Ele só batia tampinhas de desodorante. Não fazia outra coisa. E aí os meninos entraram numa relação com ele e, um dia, eu encontrei o Manequinho dançando twist. Uma vez, o psiquiatra levou o Manequinho numa assembléia que eu coordenava uma vez por semana. Eu achei muito sensível e adequado da parte dele. Só que ele me disse que não havia sido idéia dele levar o Manequinho, mas de um menino, que o havia levado. Nós vivíamos uma época de tanta intensidade que não houve nenhum suicídio no hospital. Não havia espaço para a morte. Havia uma grande intensidade de vida. O que se criava, tudo se reinscrevia. Houve uma verdadeira intervenção institucional, uma verdadeira revolução. Ninguém que passou por lá ficou igual. Ou se separou, ou se casou, a vida dele se transformou. Então, se a iniciativa privada conseguir fazer isso, conseguir que se desarranje tanto a vida dessas pessoas...

CRP - Como foi a atuação dos psicólogos nesse período?

Lancetti - Foi importante a intervenção na instituição psicologia. Os psicólogos chegavam lá no Anchieta e perguntavam onde era a sala deles. Eles queriam ter uma sala. Nós explicávamos que não tinha sala. Que eles tinham que ir para o pátio e se virar. Muitos choravam, se desesperavam. Nós explicávamos, por exemplo, que ele tinha que cortar as unhas dos pacientes, porque quando se corta a unha entra em contato, conversa e começa a saber da vida, da história. E fazer daquele caso uma biografia. Isso foi muito complicado, principalmente com psicólogos, para eles entenderem que tinham que tocar, o problema da escuta, que tudo isso estava totalmente reformulado. 

CRP - Essa é uma das contradições que o profissional da psicologia está enfrentando agora. Ele continua aprendendo na universidade a trabalhar com um modelo médico-clínico, mas vai encontrar uma realidade totalmente diversa e não sabe lidar com ela. Na sua opinião, como atuar nessas condições?

Lancetti - O psicólogo precisa ler mais Nietzsche e, principalmente, Spinoza, para entrar em contato com a sensibilidade psicológica. Na minha opinião, todo desarranjo, toda quebra de identidade profissional é benéfica, porque todos os fracassos institucionais, ou o hospital psiquiátrico, ou a Febem, adotaram os modelos médico-clínicos e o psicólogo foi na carona disso.

Toda ruptura, desde que seja séria, vai quebrar, mas não vai deixar sem sistemática. Mas ela precisa ser rigorosa. É preciso dizer que não é de um jeito, mas explicar, passo a passo, como é que funciona, por um problema de ética enunciativa. Para isso a psicologia vai ter que mudar, criar outros tipos de recursos, outros paradigmas. Mas isso traz um desarranjo corporal. Por isso as pessoas precisam fazer supervisão, para que alguém suporte e processe o desarranjo que produz essa mudança.

É interessante que essa ida do psicólogo às diferentes experiências implique uma viagem onde ele não fique se defendendo. Porque senão ele vira um juiz. O trabalho do psicólogo no Poder Judiciário, por exemplo, o transforma no aprendiz de uma personagem de Kafka. Ele é muito pior do que o juiz. Eu digo isso porque constantemente tenho discussões aqui com pessoas muito inteligentes e sensíveis que trabalham no Judiciário. Mas na hora que se toca o paradigma, aí eles ficam na defensiva. Então aquilo começa a funcionar como a procura das idéias justas. E o problema não é ter idéias justas, como dizia Bob Dylan. É ter justo uma idéia. 

Então ficam atrapalhando aqueles processos ricos de produção, argumentando que está faltando isso ou aquilo. E isso é muito démodé, porque as sociedades disciplinares, todas as ciências de radical psi, como Foucault demonstrou, se inventaram para criar um tipo de individuação. Mas isso está fora de moda. Agora estamos na sociedade de controle. A mídia funciona. No Brasil, há um exemplo. A rede Globo funciona melhor que a cadeia. A capacidade do sujeito ter autocontrole é muito maior pela eficácia do acoplamento dos diversos componentes do sistema semiótico vigente, em que a disciplina é um deles. Mas não é o fundamento. Não estamos no final do século XIX. Então é importante que essa ida do psicólogo transmita um novo olhar, que seja uma espécie de olhar antropológico lúcido. Quando ele transita do Judiciário para a assistência social, por exemplo, isso é muito interessante. E às vezes o psicólogo consegue isso.

CRP - Nesse caso, em termos concretos, o que se exige hoje de um profissional da psicologia para trabalhar nos projetos que estão sendo desenvolvidos em Santos?

Lancetti - É necessário uma desaprendizagem que implica um outro investimento que às vezes eles não estão dispostos. Por isso é que eu gosto mais de assistentes sociais. Primeiro porque eles são menos preconceituosos, não têm nenhum modelo lacaniano na cabeça. Então eles conseguem fazer melhor os grupos, permitem que as coletividades se organizem mais. Eles têm uma afecção maior. O assistente social às vezes é muito impregnado de um espírito piegas, é verdade. Mas às vezes ele consegue, relativamente, se desvencilhar disso, porque disso ninguém consegue se desvencilhar. Só Nietzsche deixou de ser cristão.

É preciso comandar. Sou eu que me lanço. Não é como no consultório que alguém me procura e vem me perguntar pela verdade da sua história. É um processo distinto. E isso é um campo mais complexo. O grau de complexidade da objetologia formal se complica. Ela é menos fixa, do ponto de vista epistemológico a coisa fica muito mais rica, muito mais interessante. É por isso que eu digo que é no serviço público que isso acontece, e não no consultório particular. Ali é muito reduzido. É importante que a ida do psicólogo não seja uma viagem de turista. O turista faz uma viagem que poderia fazer no seu aparelho de vídeo. Um viajante é diferente de um turista. É isso que seria interessante que a pessoa que está iniciando pense.

É preciso também que haja mais rigor na formação. Que as pessoas estudem mais. Eu vejo uma geração em que é complicado ter disciplina, estudar, ler. Um psicólogo mal informado é como um lutador de boxe míope. Não dá certo. Ele vai apanhar. E estou falando de informação em outros campos, como literatura, política. E que não fique reduzido a sua área, porque senão fica muito empobrecido.

CRP - A realidade dos órgãos públicos de Santos, hoje, não reflete a maioria das instituições brasileiras. No âmbito mais geral, como o senhor pensa que o psicólogo possa atuar nessas instituições?

Lancetti - Eu acho que aí se daria uma nota lacaniana. Eu penso que o conceito de objeto a de Lacan ainda não foi suficientemente explorado. Ou então o objeto paradoxal de Winicott. O espaço é um espaço transicional. Esse é que é o drama do psicólogo ou de qualquer outra profissão. Quando ele começa a pensar em termos espaciais, ele se perde. O problema é o tempo. Então, se ele tem que começar a encontrar espaço, reconhecimento de identidade e tudo isso, ele vai cair no drama do corporativismo. Tem que reformular o conceito de espaço, de território. E de como ele intervém, seja no campo clínico, institucional grupal, coletivo etc. Caso contrário ele empobrece sua ação e vai cair nesse drama que Gilles Deleuze chama o fim da luta de classes e o reinado do corporativismo. Isso vai empobrecer tudo, simplificar de novo. 

Então, isso é o mais interessante que posso dizer. Sim, ele tem que intervir, mas como intervir, para quê? Como produzir, que tipo de produção ele vai conseguir, no campo da subjetividade, da produção social da subjetividade? Como ele vai pensar diversos sistemas semióticos? Porque isso não se limita à linguagem, são todos os gestuais, os pré-significantes. Por exemplo, no caso da criança, do desenvolvimento pessoal e social, previsto pelo ECA, o psicólogo pode dizer assim: onde está a singularidade, o traço único desse desenvolvimento? É isso que o psicólogo tem que dizer. É esse que tem que ser o olhar, a intervenção e o grito do psicólogo, para ele ter uma importância. Aí é que está a loucura. Um supervisionando meu falava que ele tinha um paciente no manicômio judiciário que o chamava e dizia assim: olha, o senhor é o único que pode me entender, porque o senhor é psicótico. E ele corrigia e dizia que não era psicótico, mas psicólogo. O paciente insistia que ele era psicótico. No dia que aceitou que era psicótico, ele começou a mudar aquele sujeito.

Esse é que é o espaço do psicólogo. E, para fazer isso, precisa ser muito sério, senão vira porra-louquice. E isso é o rigor do trabalho, da formação, que não é aquilo quadradinho. Agora também estão querendo aplicar a tríade da formação do psicólogo e do psicanalista ao caso do educador de rua. Então é a tríade supervisão, formação teórica e de novo caímos no aparelho da distinção entre objeto formal abstrato e prescrições técnicas. E depois não dá certo. Não funciona do jeito que eu queria. É preciso criar passo a passo essa crítica, e eu acho que todas as áreas são interessantes, desde que haja o enriquecimento e a valorização.

CRP - Dentro dessa sua visão do trabalho institucional do psicólogo, como o senhor pensa o papel do Conselho Regional de Psicologia?

Lancetti - Tudo o que se faça em prol dessas idéias que para nós são caras e fundamentais, agenciar essa idéia de objeto complexo, a idéia de produção de solidariedade, de produção de subjetividade ligada à vida, enfim, tudo o que seja produção de vida nesse campo tão complexo, eu acho que tem um campo propício. Essa linha de atuação do CRP de acompanhar toda a questão antimanicomial, coisa que antes não se fazia, é um fato positivo. Além de acompanhar e polemizar toda a questão de direitos, como é que se geram esses direitos.

Eu acho que é um desafio criar essa diversidade de direitos que não sejam só os do psicólogo. Esse é um papel muito interessante. Acompanhar todas essas lutas de corte ético, de corte vital, que são as lutas antimanicomiais, a produção de direitos, a criação de dispositivos onde a criança se desenvolva. Eu acho que o psicólogo tem um campo muito interessante em relação à questão da institucionalização da criança nas Febens. Porque é dramática a situação, principalmente em São Paulo, onde está a metade dos internos do Brasil.

Tudo isso não só gera um campo de complexidade apetecível do ponto de vista teórico, como de apoio a todos os companheiros que estão ali presentes. Você pode reparar que em todas essas experiências de inovações e invenções institucionais e de grandes lutas pela cidadania, seja no campo dos direitos singulares, dos loucos, da mulher ou da criança, há psicólogos. Porém, é importante que a gente problematize. Como diz o Krenak, que é um grande líder indígena, ?o que o exército, a igreja e as mais diversas instituições não conseguiram fazer com meus parentes, os psicólogos conseguiram. Um psicólogo é um bicho perigosíssimo?.

Então todo esse trabalho da transferência institucional, essa área de intervenção, tem uma potência muito grande. E ele tem um papel também na reabilitação social, que passa pelo trabalho que não fica reduzido ao consultório. É importante também que nós, com toda essa velocidade que o mundo atual apresenta, e apesar de o imperialismo semiótico nos impor acreditar que nada muda, consigamos investir nessas experiências que estão se multiplicando no Brasil. No campo da saúde mental, no campo da criança, os projetos são muitos. E acho que nós temos muito a dizer.

Mas precisamos ser humildes. Nós temos muito a aprender com os pedagogos. Por exemplo, no caso dos meninos de rua, há uma preponderância da pedagogia, mas não é uma pedagogia cognitiva. Os processos mais duros, mais rigorosos que nós podemos chamar de produção de subjetividade com seus acoplamentos, seus agenciamentos, enfim todo esse campo que é o do inconsciente produtivo e não representativo, todo esse campo não é reduzido ao psicólogo, mas nós não devemos desprezá-lo. E o papel do CRP é problematizar, discutir, reagrupar, fortalecer essas lutas, essas grandes lutas que estão se travando, essa luta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é um embate muito sério. Mas nós só demonstraremos que o ECA funciona se reduz a mortalidade infantil, a repetência, se aumenta o sucesso escolar, a promoção da criança, a promoção do desenvolvimento. E aí nós temos muito a dizer e fazer.

Fonte: CRP SP

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