PICICA: "É impossível assistir ao
documentário de Paulo Henrique Fontenelle sobre Cássia Eller e não se
apaixonar por ela. Não porque o filme apare arestas e a santifique, como
fazem tantos outros do gênero, nem tampouco porque a “explique”. Nada
disso. O mérito de Cássia Eller consiste justamente no oposto:
apresentar a personagem como pedra bruta, multifacetada. Enigma que não
se decifra. No entanto, ao final da sessão, sentimos que de alguma forma
chegamos mais perto de seu coração selvagem."
É impossível assistir ao
documentário de Paulo Henrique Fontenelle sobre Cássia Eller e não se
apaixonar por ela. Não porque o filme apare arestas e a santifique, como
fazem tantos outros do gênero, nem tampouco porque a “explique”. Nada
disso. O mérito de Cássia Eller consiste justamente no oposto:
apresentar a personagem como pedra bruta, multifacetada. Enigma que não
se decifra. No entanto, ao final da sessão, sentimos que de alguma forma
chegamos mais perto de seu coração selvagem.
Ao tratar de uma biografia assim, de carga dramática já por si tão intensa, e dispondo de uma abundância de material audiovisual, tão importante quanto saber o que colocar na tela é decidir o que deixar de fora.
Comecemos então pelo que Cássia Eller não tem: não tem explicação psicológica nem lição de moral; não tem música emotiva adicional nem “câmera caça-lágrima” (aquela que dá um zoom nos olhos do entrevistado nos momentos de comoção); não tem contextualização didática com imagens do que “estava acontecendo no Brasil e no mundo”; não tem conversa jogada fora nem depoimentos de Nelson Motta e Caetano Veloso. Ufa.
À parte isso, tem de tudo: entrevistas da cantora, imagens de bastidores e de turnês, fragmentos de home movies, notícias de jornal, depoimentos de parentes, amigos e parceiros profissionais, e sobretudo trechos de shows, muitos shows.
Informação e poesia
Todos os depoimentos colhidos para o documentário são pertinentes, e editados com precisão cirúrgica, de modo que não se perde o foco e o ritmo nem por um momento – com exceção talvez dos minutos finais, em que o filme parece relutar em terminar, em dizer adeus à personagem. Mas a essa altura o espectador também lamenta deixá-la, quer adiar a despedida.
Uma qualidade de Fontenelle, que já aparecia em Loki – Arnaldo Baptista (2008) e que o distancia dos fabricantes de prosaicos documentários televisivos, é o fato de valorizar cada imagem não apenas pelo que traz de informação mas também pelo seu peso estético, dramático e rítmico intrínseco. Parece fácil, mas, no mar de registros audiovisuais existentes, pinçar os momentos mais expressivos e ordená-los numa narrativa que busque fazer jus à riqueza contraditória da personagem não é para qualquer um. Requer inteligência, persistência e sensibilidade.
Há em Cássia Eller imagens preciosas por sua comovente singeleza, como as dos showzinhos quase clandestinos que ela, já famosa nacionalmente, fazia com um grupo de amigos em clubes de cidades do interior, escondida do empresário. Seu prazer de cantar, de estar no palco – fosse o do Rock in Rio ou de um salão paroquial – é algo que transborda da tela a cada momento.
Inserção torta na indústria
A imprensa explorou à exaustão alguns aparentes paradoxos de Cássia Eller: a homossexualidade e a maternidade; o repertório heterodoxo que ia de Nirvana a Edith Piaf, passando por Riachão e Nando Reis; as transgressões libertárias e o pendor doméstico; a ferocidade e a ternura. Tudo isso está no filme, claro.
Mas o drama central da vida da cantora talvez seja o contraste entre a exposição despudorada nos shows e a timidez no convívio social, entre a vocação para brilhar e o incômodo com a condição de celebridade. E é esse, a meu ver, o eixo narrativo do filme. Em outras palavras, seu objeto é a inserção enviesada, torta, de uma artista de talento singular no mundo codificado e opressivo da indústria cultural (o que inclui a estupidez corrupta e moralista da mídia).
De certo modo, esse também era o cerne de Loki. Cássia Eller e Arnaldo Baptista não cabem no show business, ou melhor, não saem ilesos dele. Só cabem ali à custa de muito sofrimento e, no limite, da autodestruição. Para quem quiser conferir o citado Loki, ele está disponível na íntegra no Youtube. Vale a pena cotejar os dois filmes.
Entre as breves cenas que se repetem em Cássia Eller, quase como pontuações rítmicas, há uma que me parece particularmente expressiva: ela vai entrar no palco com Roberto e Erasmo Carlos; os três vêm em direção à câmera, Roberto e Erasmo atrás, meio mumificados, verdadeiras instituições ambulantes; à frente deles, Cássia soca e chuta o ar, como um lutador prestes a subir ao ringue. É essa energia incontida, indomável, que o filme nos oferece. Uma flor selvagem com espinhos e tudo.
Fonte: BLOG DO IMS
Ao tratar de uma biografia assim, de carga dramática já por si tão intensa, e dispondo de uma abundância de material audiovisual, tão importante quanto saber o que colocar na tela é decidir o que deixar de fora.
Comecemos então pelo que Cássia Eller não tem: não tem explicação psicológica nem lição de moral; não tem música emotiva adicional nem “câmera caça-lágrima” (aquela que dá um zoom nos olhos do entrevistado nos momentos de comoção); não tem contextualização didática com imagens do que “estava acontecendo no Brasil e no mundo”; não tem conversa jogada fora nem depoimentos de Nelson Motta e Caetano Veloso. Ufa.
À parte isso, tem de tudo: entrevistas da cantora, imagens de bastidores e de turnês, fragmentos de home movies, notícias de jornal, depoimentos de parentes, amigos e parceiros profissionais, e sobretudo trechos de shows, muitos shows.
Informação e poesia
Todos os depoimentos colhidos para o documentário são pertinentes, e editados com precisão cirúrgica, de modo que não se perde o foco e o ritmo nem por um momento – com exceção talvez dos minutos finais, em que o filme parece relutar em terminar, em dizer adeus à personagem. Mas a essa altura o espectador também lamenta deixá-la, quer adiar a despedida.
Uma qualidade de Fontenelle, que já aparecia em Loki – Arnaldo Baptista (2008) e que o distancia dos fabricantes de prosaicos documentários televisivos, é o fato de valorizar cada imagem não apenas pelo que traz de informação mas também pelo seu peso estético, dramático e rítmico intrínseco. Parece fácil, mas, no mar de registros audiovisuais existentes, pinçar os momentos mais expressivos e ordená-los numa narrativa que busque fazer jus à riqueza contraditória da personagem não é para qualquer um. Requer inteligência, persistência e sensibilidade.
Há em Cássia Eller imagens preciosas por sua comovente singeleza, como as dos showzinhos quase clandestinos que ela, já famosa nacionalmente, fazia com um grupo de amigos em clubes de cidades do interior, escondida do empresário. Seu prazer de cantar, de estar no palco – fosse o do Rock in Rio ou de um salão paroquial – é algo que transborda da tela a cada momento.
Inserção torta na indústria
A imprensa explorou à exaustão alguns aparentes paradoxos de Cássia Eller: a homossexualidade e a maternidade; o repertório heterodoxo que ia de Nirvana a Edith Piaf, passando por Riachão e Nando Reis; as transgressões libertárias e o pendor doméstico; a ferocidade e a ternura. Tudo isso está no filme, claro.
Mas o drama central da vida da cantora talvez seja o contraste entre a exposição despudorada nos shows e a timidez no convívio social, entre a vocação para brilhar e o incômodo com a condição de celebridade. E é esse, a meu ver, o eixo narrativo do filme. Em outras palavras, seu objeto é a inserção enviesada, torta, de uma artista de talento singular no mundo codificado e opressivo da indústria cultural (o que inclui a estupidez corrupta e moralista da mídia).
De certo modo, esse também era o cerne de Loki. Cássia Eller e Arnaldo Baptista não cabem no show business, ou melhor, não saem ilesos dele. Só cabem ali à custa de muito sofrimento e, no limite, da autodestruição. Para quem quiser conferir o citado Loki, ele está disponível na íntegra no Youtube. Vale a pena cotejar os dois filmes.
Entre as breves cenas que se repetem em Cássia Eller, quase como pontuações rítmicas, há uma que me parece particularmente expressiva: ela vai entrar no palco com Roberto e Erasmo Carlos; os três vêm em direção à câmera, Roberto e Erasmo atrás, meio mumificados, verdadeiras instituições ambulantes; à frente deles, Cássia soca e chuta o ar, como um lutador prestes a subir ao ringue. É essa energia incontida, indomável, que o filme nos oferece. Uma flor selvagem com espinhos e tudo.
Fonte: BLOG DO IMS
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