PICICA: "Leopoldo foi apenas uma das milhares de
coisas que ajudaram a construir a supremacia branca, tanto como uma
narrativa ideológica quanto como uma realidade material. Eu não pretendo
dizer que ele foi a fonte de todo o mal no Congo. Ele teve generais,
soldados rasos e gerentes que fizeram sua vontade e reforçaram suas
leis. Ele era a cabeça de um sistema. Mas isso não nega a necessidade de
falar sobre os indivíduos que são simbólicos do sistema."
Quando você mata dez milhões de africanos, você não é chamado de “Hitler”
O seguinte texto foi escrito por Liam O’Ceallaigh para a página Diary of a Walking Butterfly, em dezembro de 2010. O original pode ser acessado aqui.
O texto foi retirado e traduzido por http://muitoalemdoceu.wordpress.com/.
Leopoldo II foi Rei da Bélgica de
1865 a 1909, data de sua morte. Ele comandou o Congo de 1885 a 1908,
quando cedeu o controle do país ao parlamento belga, após pressões
internas e internacionais.
Olhe para essa foto. Você sabe quem é?
A maioria das pessoas não ouviu falar dele.
Mas você deveria. Quando você vê seu
rosto ou ouve seu nome, você deveria sentir um enjoo no estômago assim
como quando você lê sobre Mussolini ou Hitler, ou vê uma de suas fotos.
Sabe, ele matou mais de 10 milhões de pessoas no Congo.
Seu nome é Rei Leopoldo II da Bélgica.
Ele foi “dono” do Congo durante
seu reinado como monarca constitucional da Bélgica. Após várias
tentativas coloniais frustradas na Ásia e na África, ele se instalou no
Congo. Ele o “comprou” e escravizou seu povo, transformando o país
inteiro em sua plantação pessoal com escravos. Ele disfarçou suas
transações comerciais como medidas “filantrópicas” e “científicas” sob o
nome da Associação Internacional Africana. Ele usou o trabalho escravo
para extrair recursos e serviços congoleses. Seu reinado foi mantido
através de campos de trabalho, mutilações corporais, torturas, execuções
e de seu próprio exército privado.
A maioria de nós não é ensinada sobre ele
na escola. Não ouvimos sobre ele na mídia. Ele não é parte da narrativa
de opressão repetida amplamente (que inclui coisas como o Holocausto
durante a Segunda Guerra Mundial). Ele é parte da longa história de
colonialismo, imperialismo, escravidão e genocídio na África que se
chocaria com a construção social da narrativa de supremacia branca em
nossas escolas. Isso não se encaixa bem nos currículos escolares em uma
sociedade capitalista. Fazer comentários fortemente racistas recebe
(geralmente) um olhar de reprovação na sociedade “educada”; mas não
falar sobre genocídios na África cometidos por monarcas capitalistas
europeus está tudo bem.
Mark Twain escreveu uma sátira sobre Leopoldo chamada “King Leopold’s Soliloquy; A Defense of His Congo Rule”
[Solilóquio do Rei Leopoldo; Uma defesa de seu mando no Congo], onde
ele ridiculariza a defesa do Rei sobre seu reinado de terror,
principalmente através das próprias palavras de Leopoldo. É uma leitura
simples de 49 páginas e Mark Twain é um autor popular nas escolas
públicas americanas. Mas como acontece com a maioria dos autores
politizados, nós geralmente lemos alguns de seus escritos menos
políticos ou os lemos sem aprender por que é que o autor os escreveu. A Revolução dos Bichos de
Orwell, por exemplo, serve para reforçar a propaganda anti-socialista
americana de que sociedades igualitárias estão fadadas a se tornar o seu
oposto distópico. Mas Orwell era um revolucionário anti-capitalista de
outro tipo – um defensor da democracia operária desde baixo – e isso
nunca é lembrado. Nós podemos ler sobre Huck Finn e Tom Sawyer, mas King Leopold’s Soliloquy não
faz parte da lista de leituras. Isso não é por acidente. Listas de
leitura são criadas por conselhos de educação para preparar estudantes a
seguir ordens e suportar o tédio. Do ponto de vista do Departamento de
Educação, os africanos não têm história.
Quando aprendemos sobre a África,
aprendemos sobre um Egito caricatural, sobre a epidemia de HIV (mas
nunca suas causas), sobre os efeitos superficiais do tráfico de
escravos, e talvez sobre o apartheid sul-africano (cujos efeitos, nos
ensinam, há muito estão superados). Nós também vemos muitas fotos de
crianças famintas nos comerciais dos Missionários Cistãos, nós vemos
safáris em programas de animais, e vemos imagens de desertos em filmes.
Mas nós não aprendemos sobre a Grande Guerra Africana ou o reinado de
terror de Leopoldo durante do Genocídio Congolês. Tampouco aprendemos
sobre o que os Estados Unidos fizeram no Iraque e Afeganistão, matando
milhões de pessoas através de bombas, sanções, doença e fome. Números de
mortos são importantes. Mas o governo dos Estados Unidos não conta as
pessoas afegãs, iraquianas ou congolesas.
Embora o Genocídio Congolês não esteja
incluído na página “Genocídios da História” na Wikipédia, ela ainda
menciona o Congo. O que é hoje chamado de República Democrática do Congo
é listado em referência à Segunda Guerra do Congo (também chamada de
Guerra Mundial Africana e Grande Guerra da África), onde ambos os lados
do conflito regional caçaram o povo Bambenga – um grupo étnico local – e
os escravizaram e canibalizaram. Canibalismo e escravidão são males
terríveis que certamente devem entrar para a história, mas eu não pude
deixar de pensar sobre que interesses foram atendidos quando a única
menção ao Congo na página era em referência a incidentes regionais, onde
uma pequena minoria das pessoas na África estava comendo umas às outras
(completamente desprovida das condições que criaram o conflito, e das
pessoas e instituições que são responsáveis por essas condições).
Histórias que sustentam a narrativa de supremacia branca, sobre a
inumanidade das pessoas na África, são permitidas a entrar nos registros
históricos. O homem branco que transformou o Congo em sua plantação
pessoal, campo de concentração e ministério cristão – matando de 10 a 15
milhões de pessoas congolesas no processo – não entra na seleção.
Sabe, quando você mata dez milhões de
africanos, você não é chamado de “Hitler”. Isto é, seu nome não passa a
simbolizar a encarnação viva do mal. Seu nome e sua imagem não produzem
medo, ódio ou remorso. Não se fala sobre suas vítimas e seu nome não é
lembrado.
Leopoldo foi apenas uma das milhares de
coisas que ajudaram a construir a supremacia branca, tanto como uma
narrativa ideológica quanto como uma realidade material. Eu não pretendo
dizer que ele foi a fonte de todo o mal no Congo. Ele teve generais,
soldados rasos e gerentes que fizeram sua vontade e reforçaram suas
leis. Ele era a cabeça de um sistema. Mas isso não nega a necessidade de
falar sobre os indivíduos que são simbólicos do sistema. Mas nós nem
mesmo chegamos a isso. E como isso não é mencionado, o que o capitalismo
fez à África e todo o privilégio que as pessoas brancas ricas receberam
do genocídio congolês permanecem escondidos. As vítimas do
imperialismo, como costuma acontecer, são invizibilizadas.
Fonte: Encruzilhadas do Labirinto
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