fevereiro 12, 2015

"A Bahia está mergulhada num mar de sangue", por Douglas Belchior

PICICA: "A História do Brasil tem a marca fundametal do genocídio. O genocídio da população originária, indígena; O genocídio dos povos africanos escravizados e de seus descendentes. Um genocídio continuado e permanente." 

A Bahia está mergulhada num mar de sangue



foto-lena-azevedo2
Postura radical é inaceitável para policiais acostumados a chutar negros

A História do Brasil tem a marca fundametal do genocídio. O genocídio da população originária, indígena; O genocídio dos povos africanos escravizados e de seus descendentes. Um genocídio continuado e permanente.

por Douglas Belchior no 

O Estado da Bahia e a cidade de Salvador, a maior metrópole negra do mundo fora do continente africano, são hoje símbolo de um território devastado pela violência racista. O massacre do Cabula e a postura cínica de seu governador ultrapassam todos os limites.

Mas a resistência sempre foi, é e será proporcional à dor. E se a Bahia e o Brasil estão mergulhados num mar de sangue, é verdade também que há quem luta para mudar essa realidade. Recupero aqui a entrevista com Hamilton Borges, fundador da Campanha Reaja ou será morta, reaja ou será morto! 

E entenda a desgraça anunciada.

Por Paula Farias, Jorge Américo e Douglas Belchior

Em entrevista exclusiva, Hamilton Borges comenta as perseguições sofridas após a realização da II Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro. Reação contra o racismo e a violência estatal virou incômodo para o Estado.

Desde o dia 22 de agosto de 2014 ficou mais difícil ao Estado brasileiro esconder os mortos e encarcerados que antes não passavam de números para as organizações de direitos humanos e para os institutos de pesquisas. Esta é a avaliação de Hamilton Borges, um dos organizadores da II Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro, que colocou mais de 60 mil pessoas nas ruas para denunciar o racismo e a violência estatal que fazem milhares de vítimas todos os anos.

Nesta entrevista concedida ao blog Negro Belchior, da revista Carta Capital e ao jornal Brasil de Fato, Hamilton denuncia as perseguições sofridas por adotar uma postura intransigente no combate à violência policial. Ele se orgulha de ter crescido no Curuzu, em Salvador (BA), “o bairro mais negro do mundo depois do Harlem”, em Nova Iorque. A inspiração para a luta veio da convivência com mulheres que cuidavam da família.

Hamilton não tem dúvidas de que “o genocídio é um fato no Brasil, um crime de lesa humanidade praticado contra um povo que construiu essa nação e vive cercado de morte, terror estatal e encarceramento em massa”. O militante negro não tem receio em anunciar que “a Bahia está mergulhada num mar de sangue”. Hamilton revela não ter se surpreendido com as ameaças, pois “essa performance radical é muito para a cabeça dos policiais acostumados a nos chutar todos os dias desconsiderando nossa humanidade”. Participaram da entrevista Paula Farias, Jorge Américo e Douglas Belchior.

 PF, JA e DB: Como você iniciou sua militância no movimento negro e como surgiu o Quilombo X e a campanha do Reaja?

Hamilton Borges: Iniciei de verdade minha militância, com os exemplos de minha mãe, avó e minha tia que me criaram, cresci vendo mulheres cuidando da família. Elas me deram exemplo de solidariedade africana, no bairro mais negro do mundo depois do Harlem: o Curuzu, onde foi fundado o Bloco afro Ilê Aiyê. Depois entrei no MNU, Movimento Negro Unificado, que colocou, desde as escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, passando por todo o país, o racismo na agenda nacional sem tréguas ou concessões. Depois em 2005 retomamos a Quilombo Xis – Ação Cultural Comunitária, que foi criada em 2001 em BH, como uma organização cultural, mas que se transformou  em uma organização política para impulsionar a “Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto”.

A Campanha Reaja surgiu em 2005 aqui em Salvador, depois de darmos um basta em contar nossos mortos pela violência racial, pela violência estatal, pelos grupos de extermínio e grupos paramilitares que a polícia legitima, retroalimenta e fortalece, seja pela ação (quando seus agentes públicos também são integrantes desses grupos) ou por omissão (quando sabe que há grupos atuando, mas não atua para impedi-lo). Ocupamos as escadarias da Secretaria de Segurança Pública com gente vinda de todo lugar da cidade e começamos a politizar nossa morte, chorar nossos mortos que não passavam de números para as organizações de direitos humanos e para os institutos de pesquisas, ONGs e toda sorte de organização de rapina. Começamos a dar nome aos mortos e evidenciar o caráter genocida neles contido.

PF, JA e DB: Em todos esses anos dedicados ao movimento negro, você sempre conviveu com intimidações, mas nos últimos tempos a situação piorou. Você acha que isso é um reflexo da Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro, que vem crescendo a cada ano?

Hamilton Borges: Desde o primeiro momento que a Reaja tomou a rua já foi um processo tenso. Negras e Negros de favelas e periferias tomando sua voz, não permitindo mediação de parlamentares ou especialistas bem pagos, isso já criou um ranço, estava demonstrada a ruptura, não queríamos fazer concessões com nossa desgraça – e a enfrentaríamos até as últimas consequências. Aí a Polícia, os Governos, eles olharam para nós como uma ameaça a sua cultura de medo e silêncio e nos trataram como criminosos. Sentimos na pele esse processo de criminalização, prisões sem fundamentos, retaliações, acusações infundadas, ameaças, foi então que procuramos criar nossas formas de fortalecimento, redes de proteção fora do Estado, fora do país, pautando a ONU, a OEA, buscando apoio da Justiça Global, da Anistia internacional, da imprensa séria.

Claro que a Marcha só poderia resultar em retaliação. No plano internacional nós revelamos ao mundo que o Genocídio é um fato no Brasil, um crime de lesa humanidade praticado contra um povo que construiu essa nação e vive cercado de morte, terror estatal e encarceramento em massa. Depois no plano nacional chamamos o movimento negro em especial e o movimento social de um modo geral a reagir, sair para a rua, sem bandeira de partido, sem dinheiro de governo, sem reivindicação eleitoral. Foi muita ousadia, ainda mais vindo de um grupo que em sua base e em seu comando tem mulheres, mulheres de presos, ex-presos, desempregados, gente de favela, gente do mato (a Reaja é Coordenada por um comitê de mulheres, Dra Andreia , Aline Santos , Jamile , Elaine, Fabia). Os caras disseram aos nossos amigos do exterior que perderam o controle da Marcha, esses caras são os garotos de recado dos governos com seus diplomas e MBA e sua mentalidade de capacho esperando que o país mude a lógica racista com programinhas e projetos e a gente dizendo que só muda com outro modelo de Estado, outra nação e não essa dos brancos.

E no plano doméstico, na Bahia, enfrentar os políticos que defendem pena de morte e prisão perpétua, como Oto Alencar, enfrentar a polícia matando nossa gente (30 em um mês no bairro da Suburbana, 21 no Bairro do Engenho Velho de Brotas, 16 no Bairro do Nordeste de Amaralina), enfrentar os cabos eleitorais com suas promessas de cooptação, e irmos para frente do Quartel mais antigo da Policia Militar do Brasil, aflitos  e dizer que queremos o fim da polícia militar, a desmilitarização da segurança pública, justiça para os mortos e que naquele dia, 22 de agosto de 2014, eles não matariam nenhum negro ou negra, essa performance radical é muito para a cabeça dos policiais acostumados a nos chutar todos os dias desconsiderando nossa humanidade.

PF, JA e DB: Nesses casos de perseguição, ameaças, invasão a sua casa, como você tem lidado com isso? Qual a posição das autoridades políticas e das lideranças dos grupos de outros movimentos negros diante desses fatos? Você se sente respaldado por eles?

Hamilton Borges: Olha tem uma coisa de ano eleitoral que cala a boca de muita gente boa. Tem muita gente boa que foi para o governo e não pode contrariar quem lhe paga o salário, temos apoio dos movimentos independentes, apoio do exterior, na Espanha  nossa Irmã, a FOJA, articula em toda Europa uma campanha “Somos todos Hamilton Borges”, dos Estados Unidos a força vem do Texas, vem de São Paulo (Posse Haussa, Uneafro, Quilombagem, Estudantes Negros da USP, Douglas Belchior, CRP-SP, Afropress), do Rio de Janeiro (Justiça Global, Anistia Internacional, Coletivo Das Lutas), vem da Reaja de João Pessoa, aqui na Bahia sai das comunidades, das vilas, favelas, cadeia. Mas entendemos esse sequestro da solidariedade de certos movimentos, eles estão num tipo de pragmatismo eleitoral que tem que fechar os olhos para certas coisas e nós somos o oposto disso: nós somos o combate.

O Governo Estadual já está sabendo, a Anistia e a Justiça Global enviaram ofícios para  a SSP-BA (Secretaria de Segurança Pública da Bahia) e para a SJDH (Secretaria de Justiça e Direitos Humanos). Nós comunicamos por e-mail à SEPROMI (Secretaria de Promoção da Igualdade), que “deve cuidar das questões dos negros”, como eles dizem, mas até agora só houve silêncio do governo, o mesmo silêncio ocorrido quando policiais tentaram invadir minha casa depois da Marcha de 2013.
Nós da Campanha Reaja nos sentimos respaldados pela solidariedade que vem dos nossos primeiramente, como Lázaro Ramos que conversou conosco, tirou foto, nos apoiou, coisa que pode parecer simples, mas faz a maior diferença.

PF, JA e DB: Houve algum posicionamento por parte do governo frente às denúncias de abuso de autoridade?

Hamilton Borges: Até agora nada. A Bahia está mergulhada num mar de sangue, atos de terror praticado por policiais e bandos criminosos de extermínio, e o governo não fala uma palavra, nossa vida não tem valor para essa agenda. Se morresse um jovem branco de classe média eles escreveriam um tratado pela vida – e isso são todos os candidatos, com exceção do único candidato negro ao Senado que tem feito um debate solitário sobre direitos humanos e racismo.

PF, JA e DB: Qual a importância da Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro, essa articulação entre vários companheiros de luta de diversos estados?

Hamilton Borges: Na verdade são diversos Estados e vários Países. Demos um passo de unidade internacional. Saímos da condição de mendigar espaço na agenda de organizações que nos colocam como assessório, despertamos a agenda do genocídio como motor da luta negra e podemos construir grandes pontes para repensar a sociedade do ponto de vista das negras e dos negros, sem precisar entregar nossos símbolos sagrados (como uma conta de orixá) a um salvador ou salvadora que pouco se importa com nossa vida desprotegida. O recado que demos é que podemos nos organizar sem pedir migalhas.

PF, JA e DB: Fazendo uma reflexão sobre a campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, quais foram os avanços?  E como tem sido a participação dos jovens nessa luta?

Hamilton Borges: Nossa Campanha não é geracional, mas evidente que os jovens cumprem um papel importante e elas e eles tem enfrentado bem esse debate, feito avançar. Nós colocamos várias agendas em foco, sempre afirmando a centralidade do racismo. Nós popularizamos o debate sobre encarceramento em massa, a revista vexatória e o fortalecimento dos familiares na luta pela memória de seus entes.Nós provocamos o governo a criar um programa para enfrentar a morte de jovens negros, mas como sempre o governo federal tem “pudores” em pronunciar a palavra negro e não coloca orçamento necessário para a boa política (daí a coisa  fica focada em encontros e seminários). Mas, sobretudo demos uma arma a nosso povo, somos continuidade de nossos mais velhos, muitas e muitos ainda vivos, que disseram que não podíamos negociar o racismo, mas combatê-lo. Quem quer promover igualdade tem que ir à porta ao lado, a Reaja é outra coisa, é Quilombismo.
PF, JA e DB: Neste ano de eleição como o movimento tem se posicionado? Qual análise fazem das candidaturas à Presidência da República? Vocês têm alguma esperança em fazer avançar a pauta do combate ao racismo e ao genocídio em alguma das candidaturas colocadas?

Hamilton Borges: Nós da Reaja não falamos por ninguém, mas não vemos alternativa para nosso povo com o que tem aí. Vá na Favela do Moinho e pergunte ao povo o que eles acham, e ali é a cidade mais rica do Brasil – São Paulo. O povo vai te dizer que o Estado não existe. Nenhum desses três candidatos mais bem colocados,  em seus debates falam uma linha sobre o racismo ou os direitos humanos ou a situação carcerária. As eleições se tornaram um trabalho subalterno para negros e negras com bandeiras e faixas nos faróis, os palanques lotados de brancos e empresários. Para nós a aposta é na organização para a autonomia comunitária e pressão sobre nossos inimigos.

PF, JA e DB: Diante dos assustadores números de assassinatos de negros, como mostrou o Mapa da Violência 2014, e da negligência por parte do Estado, quais os próximos passos para esse enfrentamento?

Hamilton Borges: Temos que cada vez mais internacionalizar o debate e a organização e ao mesmo tempo internalizar, chamar para dentro para o interior, para  as comunidades, levar a mensagem e o método de solidariedade e autonomia, criar uma organização horizontal, baseada na vida real, criar instrumentos de pressão e ao invés de seguirmos com pires nas mãos, enfrentar  as oligarquias, os racistas, sexistas e homofônicos com força negra de todas as camadas conscientes e fortalecidas. O próximo passo é a III Marcha, cuja preparação já começamos desde o dia 23 de agosto de 2014.

PF, JA e DB: Faça, por fim, as considerações que achar necessárias.

Hamilton Borges: Precisamos de outro modelo de nação que seja realmente inclusivo e isso não conquistaremos com arranjos, com remendos, precisamos de outra política, outro Estado que vamos conquistar com luta e solidariedade.


Fonte: Geledés

Nenhum comentário: