PICICA: "O Brasil rompe o ano de 2015 dando
posse ao segundo mandato de Dilma. Em seu programa de governo para a
área de saúde, omissões e silêncios já apontavam dúvidas sobre a
intenção de defesa de um projeto mais comprometido com um modelo de
desenvolvimento pautado nos direitos sociais e menos submetido aos
interesses de acumulação privada do “mercado”."
A vaca tosse, vai para o brejo e pode atolar o SUS
Ana Maria Costa e José Antônio Sestelo | Publicado originalmente no Viomundo
O Brasil rompe o ano de 2015 dando
posse ao segundo mandato de Dilma. Em seu programa de governo para a
área de saúde, omissões e silêncios já apontavam dúvidas sobre a
intenção de defesa de um projeto mais comprometido com um modelo de
desenvolvimento pautado nos direitos sociais e menos submetido aos
interesses de acumulação privada do “mercado”.
As medidas e iniciativas governamentais
acionadas nesse primeiro trimestre, embora não se possa dizer que são
incoerentes com o programa de governo apresentado, frustram o Movimento
Sanitário – que se engajou, na sua maioria, pela reeleição – e o coloca
em posição crítica.
Para compreender de forma abrangente o
que se passa é preciso lançar um olhar panorâmico sobre diversos temas
conexos, ainda que sem o necessário aprofundamento em cada questão.
A primeira situação é quando o Governo
sanciona a mudança da Lei 8.080, descumprindo o princípio
constitucional, e passa a admitir a presença de capital estrangeiro nos
hospitais sem qualquer condicionante. Esse artigo à MP 656 é de autoria
do Deputado Manoel Júnior (PMDB da Paraíba), eleito com financiamento,
entre outras empresas, oriundo dos grupos Bradesco e BTG Pactual, banco
associado ao capital financeiro de fundos estadunidenses envolvidos com a
exploração privada de serviços de saúde no Brasil.
A abertura ao investimento
internacional, sem dúvida, favorece a ampliação do comércio de planos e
seguros privados, consolida o sentido da mercantilização da saúde e de
quebra ainda fragiliza o principio básico da saúde como direito de
cidadania decompondo o caráter público do Sistema Único de Saúde, o SUS.
Os governos, nos três níveis
federativos, têm atendido aos interesses da acumulação privada de
capital na saúde de diversos modos. Talvez o mais grave seja o recuo das
prerrogativas de intervenção estatal sobre o “mercado”, aliado à
continuidade e expansão de vantagens fiscais e subsídios direcionados
aos seus agentes.
As melhores evidências disponíveis
indicam que a prestação de serviços de saúde deve ser fortemente
regulada pelo Estado, uma vez que se trata de uma questão,
reconhecidamente, de relevância pública. Não é admissível em uma
sociedade tão marcada pela desigualdade social e de renda como a nossa,
que se condicione o acesso a serviços e produtos de saúde mediante a
capacidade de pagamento do usuário. É eticamente inaceitável e contribui
para aumentar a desigualdade.
Apostar no direito universal à saúde e
no SUS, tal como definiu a Constituição, exige a eliminação de subsídios
e incentivos que transferem recursos da esfera pública para a privada
sem garantia de contrapartida para o conjunto da sociedade. Em um
sistema tributário francamente regressivo isso significa, em outras
palavras, tirar de quem tem menos para financiar estruturas
assistenciais de uso privativo dos que têm mais recursos, reafirmando a
lógica da submissão do Estado aos agentes do “mercado” apontada por Ocké
Reis (2015):
“os incentivos expressam uma relação
estrutural marcante entre o Estado e o mercado, decorrente da lógica de
acumulação capitalista deste mercado, que pressupõe o padrão de
financiamento público, embora essa conexão ganhe novos parâmetros com a
hegemonia do capital financeiro que alavanca o processo de concentração,
centralização e internacionalização do setor”.
A “receita”
que o chamado Livro Branco da Saúde apresentou ao Governo, ainda no
período eleitoral, põe no papel os elos desta conexão. Essa publicação,
patrocinada e divulgada pela Associação Nacional de Hospitais Privados –
ANAHP foi elaborada por uma empresa espanhola de consultoria hospitalar
da Catalunha e contém o conjunto das pautas dos empresários para o
setor, inclusive a visão estratégica de um sistema de saúde pública
subordinado à lógica de interesses particulares. A visão dos principais
agentes e beneficiários da acumulação privada em saúde está distante do
SUS prescrito pela norma constitucional.Chama a atenção entre as
propostas, todas elas, essencialmente, baseadas na racionalidade
“gerencialista“, a explicitação do fortalecimento da presença dos
agentes da acumulação privada na saúde, invertendo a lógica prevista e
preconizada na CF 1988 do ordenamento do setor privado pelo público:
-Fortalecer o Sistema Único de Saúde, estimulando a coordenação e a integração entre os setores público e privado;
-Ampliar a participação do setor privado na formulação e implantação das Políticas Nacionais de Saúde;
-Incentivar o investimento privado na área da saúde;
-Desenvolver redes assistenciais integradas entre os setores público e privado.
O livro seria apenas um ensaio nebuloso
carente de fundamentação plausível não fosse a expressão visível de uma
estratégia maior e bem articulada entre agentes estrangeiros
interessados na venda de serviços de saúde no Brasil, apoiados por
parlamentares brasileiros, imprensa e agentes públicos com função de
governo.
Em um cenário político desfavorável aos
direitos sociais, a sociedade brasileira elegeu para o Congresso
Nacional um conjunto de parlamentares ainda mais conservador que o
anterior e claramente atrelado aos interesses de grupos empresariais. O
sítio do Estadão exibe um panorama sobre quem manda e orienta a produção
legislativa para o setor da saúde hoje.
Estes dados mostram ainda o tamanho e a
força da resistência a uma eventual reforma política para restringir o
financiamento empresarial das campanhas eleitorais. O indigesto prato
seguinte a ser servido pelo Congresso Nacional será a aprovação da PEC
358 que constitucionaliza o subfinanciamento do SUS, instituindo o
orçamento impositivo diminuindo a transferência dos recursos federais
para o SUS.
O anúncio do ministro Chioro, veiculado
na imprensa, sobre o interesse do governo em ampliar o mercado dos
planos privados individuais é sintomático. O objetivo subjacente é,
obviamente, flexibilizar as regras de reajuste definidas pela ANS para
expandir a carteira das empresas que vendem planos aos segmentos C e D.
Essa é a pauta antiga dos empresários
que está sendo assumida integralmente agora pelo governo junto com a
abertura ao capital estrangeiro e linhas de financiamento a juros
subsidiado no BNDES, que poderão eventualmente ser redirecionadas para
os investidores internacionais, já que não existem restrições explícitas
na nova Lei. Só falta a redução do rol de procedimentos e a
customização dos pacotes de planos.
Existe ainda a meta de aumentar a
cobertura proporcional dos planos dos 25% atuais para 50% da população.
Essa meta foi traçada, também, fora do Brasil, quando os fundos de
Private Equity convenciam seus clientes sobre as perspectivas de
rentabilidade futura do nosso país. São posições vendidas, e serão
cobradas. Isto reduziria o nosso Sistema Único de Saúde universal a um
sistema público de atendimento aos que não podem conquistar a
assistência à saúde pelo comércio privado de produtos e serviços de
relevância pública. Talvez por isso alguns agentes públicos do setor já
antecipem novos conceitos embutidos na renomeação do Sistema Nacional de
Saúde, diluindo toda a conquista da Carta Magna para a saúde.
O que fica evidente hoje para o
Movimento de Reforma Sanitária (MRS) é que se trata de um processo que
vem sendo costurado há algum tempo por dentro do governo. A Presidenta
tem ouvido os empresários em vários momentos ao longo do último ano, mas
nunca abre as portas ao movimento sanitário, àqueles que estudam o
setor e são comprometidos com o direito universal à saúde. Ao contrário,
esses segmentos são desqualificados nos debates com representantes do
governo e o discurso das mudanças do capitalismo brasileiro em relação
aos tempos da constituinte são frases de efeito frequentes entre estes
gestores públicos do SUS.
A falta de leitos de obstetrícia
verificada em hospitais da rede privada é um sinal claro e atual do que
está por vir. Todos os espaços no ambiente hospitalar deverão ser, ao
que tudo indica, ocupados por práticas que assegurem as margens mínimas
de 15% esperadas pelos investidores e leito de obstetrícia não dá lucro.
O escândalo das comissões para
intermediários na venda de órteses, próteses e materiais especiais
também fica mais fácil de entender quando sabemos que os hospitais
tendem a se tornar espaço de comércio para venda dessas mercadorias
altamente lucrativas, tenha o paciente necessidade delas ou não.
A vaca tossiu, foi para o brejo e está atolada. Trata-se de um momento de definição política importante.
Só a mobilização da sociedade correndo
atrás dos prejuízos das perdas de direitos sociais pode ainda salvar
essa vaca do atoleiro.
Ana Maria Costa é médica, professora de Medicina da Escola Superior
de Ciências da Saúde (ESCS), do Distrito Federal, coordenadora geral da
Associação Latino Americana de Medicina Social e Saúde Coletiva (Alames)
e presidente do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes).
e José Antônio Sestelo é médico e integrante do núcleo do Cebes na Bahia.
Imagem: Pavel
Fonte: Cebes
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