PICICA: "Na opinião de Vittorio Spinazzola, Cardinale não desenvolveu um perfil
preciso enquanto estrela. Cresceu falando francês e árabe (seu idioma
natal não é o italiano) na Tunísia e adorava Brigitte Bardot, figura sem
equivalente no cinema italiano dos anos 1950. Embora compartilhasse uma
raiz comum, Cardinale sempre foi diferente de Lollobrigida e Loren, sua
aura de mistério tem mais a ver com Silvana Mangano. Além disso, sua
fotogenia era “muito moderna”, o que chamou atenção dos cineastas
italianos do começo dos anos 1960 focados no cinema dito “de arte”.
Apesar disso tudo, Cardinale cultivava um mistério ao insistir que seu
corpo nunca fosse exposto na tela. Seus vestidos eram longos e ela nunca
se despiu para as câmeras, o máximo que vimos foi suas costas. Mas
Cardinale teve de conviver com o desejo de seus fãs pela nudez do corpo
dela, recebendo cartas com pedidos por fotografias sem roupa. Os
estrangeiros eram mais ousados do que os italianos. Estes foram mais
impactados pelos primeiros filmes dela, onde atuava como uma mulher
idealizada e pura. De acordo com Giovanni Grazzini, que teve acesso às
cartas, o público italiano, que ainda é sensível ao culto da Virgem
Maria e a obsessão nacional com a maternidade é mais sensível aos
valores de uma feminilidade amorosa e protetora. Apesar de subestimada, a
carreira de Cardinale dura até hoje. Enquanto atrizes que emergiram
inicialmente escaladas como belezas rurais peitudas emagreceram e
lutaram para se encaixar num ideal burguês de refinamento e elegância
(equilibrando qualidades nacionais e cosmopolitas), Cardinale facilmente
preencheu a lacuna. Mas o preço não foi barato, sua própria maternidade
teve de ser escondida do público, e sublimada, de alguma forma. Como
ela mesma afirmou num documentário em 2005 (encolhendo os ombros no
final, como quem diz “não há mais nada que se possa fazer”, ou “eu não
sei”), talvez seja o destino..."
Claudia Cardinale e o Destino
“Caminhando contra o vento/Sem lenço e sem documento/
No sol de quase dezembro/Eu vou/ O sol se reparte em crimes/
Espaçonaves, guerrilhas/Em cardinales bonitas/Eu vou...”
No sol de quase dezembro/Eu vou/ O sol se reparte em crimes/
Espaçonaves, guerrilhas/Em cardinales bonitas/Eu vou...”
Caetano Veloso
Fragmento da letra de Alegria, Alegria. Música
de 1967, considerada o início da Tropicália
Visibilidade é Vida
Tendo atuado em cento e quinze filmes até o momento, pode-se concluir
que a carreira da atriz italiana Claudia Cardinale é uma das mais longas
do cinema. Nasceu na Tunísia em 1938 de pais sicilianos e sua primeira
aparição na tela de cinema não passou de uma ponta como doméstica em Goã
(Goha, le Simple, direção Jacques Baratier, 1958; lançado em 1959),
produção franco-tunisiana filmada no país natal da atriz, com Omar
Sharif no papel principal. A seguir, participa de Os Eternos Desconhecidos
(I Soliti Ignoti, direção Mario Monicelli), considerado um dos modelos
da comédia italiana. Ainda em 1958, Cardinale já será protagonista em Três Estrangeiras em Roma
(3 Straniere a Roma, direção Claudio Gora). A atriz começa a ser
considerada como a natural sucessora de Sophia Loren, na mesma época em
que esta começou a ser mais escalada para o papel de mãe do que de
mulher fatal – Loren surgiu nas telas em 1950. Em 1964, o cineasta Luigi
Comencini escala Cardinale para um papel de destaque em A Garota de Bube
(La Ragazza di Bube). Adaptação do romance homônimo de Carlo Cassola, a
temática da Resistência antifascista durante a guerra sugere um ponto
de vista neorrealista (1). Possivelmente por conta dessa tendência,
Glauber Rocha citaria Claudia Cardinale em 1977 como mais uma das
atrizes italianas lançadas pelo neorrealismo (2), apesar de geralmente
reconhecer-se que este movimento tenha e exaurido em meados da década
anterior. (imagem acima, Era Uma Vez no Oeste, 1968; abaixo, A Garota de Bube, 1964)
Alguém que desde a infância falava muito pouco, Cardinale evitou sua
entrada no cinema por um bom tempo – como ela mesma explicou, da mesma
forma que não se deveria ceder rapidamente aos galanteios de um
apaixonado. Na primavera de 1957, em Tunis, um executivo da indústria
cinematográfica italiana ficou impressionado com aquela moça de 19 anos
que se apresentava num concurso de beleza. Acreditando no potencial dela
para o cinema, o homem ofereceu à vencedora um prêmio que dava direito
há uma semana em Veneza com acompanhante – Cardinale venceu e viajou com
a mãe. Depois de algum tempo estudando no Centro Sperimentali di Cinematografia,
em Roma, Cardinale agradeceu a todos o interesse por ela e decidiu
voltar para Tunis – essa não foi uma retirada estratégica, a atriz
admitiu que estava muito assustada para continuar naquele mundo
completamente novo. Foi quando Franco Cristaldi, o produtor italiano,
enviou um funcionário a Tunis que retornou com um contrato assinado por
ela para participar de Os Eternos Desconhecidos (3). Na verdade,
num sentido bastante específico, Cardinale foi lançada por Cristaldi -
considerando que naquela época não existiam na Europa agentes para
artistas como nos Estados Unidos. Na Itália, onde o primeiro sindicato
de atores surge apenas em 1960, existiam basicamente agentes de
imprensa, ao contrário dos agentes norte-americanos (que negociavam
contratos) – de fato, veremos um deles em 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963), de Federico Fellini, trabalhando para a personagem de Claudia Cardinale.
“Esse cenário vai bem para explicar porque tantos relacionamentos
combinando pessoal e profissional floresceram no cinema italiano do
pós-guerra entre produtor (masculino) e estrela (feminina). Apesar de
variações em seus respectivos papéis, uma lista desse tipo certamente
inclui: Carlo Ponti e Sophia Loren; Dino De Laurentiis e Silvana
Mangano; Alfredo Guarini e Isa Miranda; Franco Cristaldi e Claudia
Cardinale. Na medida em que o status de diretor pode ter
facilitado financiamento, um padrão similar de carreira pode ser notado
envolvendo diretor (masculino) e estrela (feminina). Isto de modo algum
sugere comentário em relação ao potencial da carreira e habilidades de
atrizes individuais, apenas quanto à realidade financeira da indústria
[cinematográfica] do período (...)” (4) (imagens abaixo, Os Eternos Desconhecidos, 1958)
O sucesso de Cardinale foi construído numa filmografia que se estende do
filme de arte à comédia italiana, incluindo também trabalhos em
Hollywood. Apesar disso, o ator norte-americano Charles Bronson, com
quem Cardinale contracenou em Era Uma Vez no Oeste (C’era una
Volta Il West, direção Sergio Leone, 1968), faria um comentário
desdenhoso ao afirmar que ela trabalhava bem, mas “não era nenhuma Anne
Bancroft” (5) – referência à atriz norte-americana muito conhecida por
sua atuação no então recente A Primeira Noite de um Homem (The
Graduate, direção Mike Nichols, 1967). Seja como for, Gian Piero
Brunetta nos lembra de que durante os anos 1960, especificamente no
cenário da indústria do cinema na Itália, além de Claudia Cardinale,
Stefania Sandrelli e Monica Vitti, muitas outras jovens atrizes e
vedetes buscaram a estrada para o estrelado. Virna Lisi, Catherine
Spaak, Sandra Milo e Ornella Muti combinavam beleza e talento, mas não
possuíam o “toque de Midas” (6).
“(...) Desenvolvimentos industriais nos anos 1960 [com o fim do boom
econômico do pós-guerra] explicam de certa forma o declínio no nível de
aparições de [Loren] nas telas. Em geral, as estrelas italianas
perderam a importância na indústria do cinema. Atrizes como Monica
Vitti, Claudia Cardinale e Stefania Sandrelli procuraram, com certo grau
de sucesso, sustentar uma carreira internacional de destaque. Contudo,
em nível nacional, mesmo para essas qualificadas intérpretes as
perspectivas eram bastante limitadas (...)” (7) (imagens abaixo, à
esquerda, teste no início da carreira; à direita, Rocco e Seus Irmãos, 1960)
Assim como Gina Lollobrigida e Sophia Loren, Cardinale também investiu
numa carreira em Hollywood. Contudo, Pauline Small observou que a década
de 1960 já não fazia tanta questão de beldades com seios grandes, como
na década anterior. Se por um lado o Feminismo estava na moda, por outro
os filmes de caráter popular começam a ser desafiados por um cinema
mais hermético. Brigitte Bardot perde espaço para a Monica Vitti dos
filmes de Michelangelo Antonioni e a Catherine Deneuve dos filmes de
Luis Buñuel. Mas apesar da maré de mudanças, no final dos anos 1950 a
comédia italiana oferecia às jovens atrizes, como Cardinale e Stefania
Sandrelli, papéis muito subordinados aos protagonistas masculinos, o que
gerava grandes implicações para a carreira delas. “(...) Precisamente
por que as ‘ansiedades da masculinidade’ provaram ser uma característica
tão dominante da commedia all’italiana que se seguiu é uma
questão explorada por numerosos críticos (...)” (8). Independentemente
da capacidade profissional de Cardinale, as mudanças sociais nos anos 60
talvez expliquem a variedade de filões cinematográficos explorados pela
atriz. Em sua filmografia encontramos desde papéis em filmes italianos
de Luchino Visconti como Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, 1960), O Leopardo (Il Gattopardo, 1963) e Vagas Estrelas da Ursa (Vaghe Stelle dell’Orsa, 1965), passando por clássicos de Federico Fellini como 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963), ou Valerio Zurlini, com o antológico A Moça com a Valise (La Ragazza con La Valigia, 1961), até produções norte-americanas mais comerciais como O Mundo do Circo (Circus World, direção Henry Hathaway, 1964) e A Pantera Cor de Rosa (The Pink Panther, direção Blake Edwards, 1963), dentre muitos outros. (imagem abaixo, O Magnífico Traído, 1964)
Com o tempo, Cardinale consegue passar dos
“personagens físicos” e coadjuvantes das classes
baixas sulistas aos papéis mais complexos
Na área da comédia italiana, Os Eternos Desconhecidos e Magnífico Traído
(Il Magnifico Cornuto, direção Antonio Pietrangeli, 1964) (imagem
acima) são alguns dos filmes de destaque nos quais Cardinale começa a se
tornar ainda mais visível. No primeiro exemplo, ela é Carmela, irmã de
um siciliano obcecado que a mantém trancada em casa para proteger sua
honra. No segundo caso, como Maria Grazia, ela é a esposa de um marido
ciumento convencido de que está sendo traído – embora tenha começado a
ter essa sensação apenas depois que ele próprio traiu a esposa. Embora
sempre se possa dizer que a comédia italiana sempre fez o que fez
visando uma crítica dos comportamentos, chega um momento que alguns se
permitem questionar até que ponto isso não é um álibi para reproduzir
mais uma vez justamente aquilo que se pretende supostamente criticar. A
própria Monica Vitti, protagonista em muitas comédias, admitiu que esse
gênero cinematográfico fosse misógino. De acordo com Patrizia Carrano,
as mulheres não existiam nem mesmo na nascente comédia italiana do final
dos anos 1960. Citando, dentre outros, Os Eternos Desconhecidos,
ela sugeriu que esse filão gira em torno de encontros e amizade entre
os homens, enquanto as mulheres são reduzidas a papéis secundários:
irmãs presas em casa por irmãos possessivos, ex-esposas indiferentes,
adolescentes maliciosas, portadoras de cintos de castidade. Para
Carrano, a comédia a beleza à italiana de suas atrizes a serviço de um
cinema que abandonou a ironia, entregando-se à farsa. As surras que os
homens dão nas mulheres nem passavam como violência, mas como direito
(9). De fato, não seria diferente quando o filão do faroeste espaguete
emergiu. O próprio cineasta Sergio Leone considerava o personagem
feminino totalmente dispensável. Como tantas antes e depois dela,
Cardinale não escaparia do clichê. Apesar de tudo, Cardinale se preocupa
com sua imagem:
“Como outras antes dela, Cardinale apareceu numa variedade de produções
internacionais e também fez vários filmes em Hollywood. Apesar de ter
sido oferecido a ela um contrato exclusivo com a Universal, a atriz só concordou em fazer um filme de cada vez [(durante as filmagens em Milão de Rocco e Seus Irmãos, por exemplo, a atriz também estava trabalhando em Os Delfins,
filmado em Ascoli Piceno, bem mais ao sul, na altura de Roma) (10)].
Ela se viu confrontada com exigências para perder peso, clarear seu
cabelo e submeter-se à cirurgia plástica. Quando rejeitou isso, lhe
foram indicadas massagens, uma dieta e maquiagem corretiva. ‘O objetivo
deles, aliás, bastante explícito, era me transformar numa atriz
americana, com cachinhos, vestido apertado e peitos achatados... Mas
depois de ser paciente com eles por algum tempo, eu disse NÃO, eu
recusei’. Como as que vieram antes, ela via essas tentativas como
contrárias a sua persona italiana ‘natural’” (11) (imagem abaixo, Os Delfins, 1960)
Estudar é Preciso?
Apenas após iniciar sua carreira no cinema é que Cardinale
foi estudar para ser atriz. Mas não se via como
uma delas, somente alguém com certa sensibilidade (12)
foi estudar para ser atriz. Mas não se via como
uma delas, somente alguém com certa sensibilidade (12)
Considerada um modelo de beleza mediterrânea, Cardinale deve seu sucesso
inicial ao interesse internacional no cinema de arte italiano a partir
da década de 60 do século passado – Monica Vitti é outra atriz italiana
cuja carreira no cinema despontou a partir do mesmo interesse. Na
opinião Stephen Gundle, ao contrário de Vitti (loura e muito branca,
apenas seus lábios grandes e olhar expressivo a aproximam do tipo
mediterrâneo), Cardinale é uma representante típica da bella italiana
mediterrânea. Sua beleza física seria explorada desde o início por seu
descobridor, o produtor italiano Franco Cristaldi (com quem esteve
casada entre 1966 e 1975), estratégia que garantiu seu sucesso (certa
vez sendo eleita a italiana mais bonita de Tunis, a capital do “quase”
país). Com o tempo, Cardinale consegue passar dos “personagens físicos” e
coadjuvantes das classes baixas sulistas aos papéis mais complexos.
Para Gundle, Cardinale era mais segura do que Loren e Gina Lollobrigida,
sentindo-se em casa nos papéis de mulheres burguesas, como em Os Indiferentes (Gli Indifferenti, direção Francesco Maselli, 1964) e Vagas Estrelas da Ursa.
De fato, a atriz era vista como maleável, porém com um estilo próprio;
voz encorpada, certa qualidade transcendental e ar melancólico (13). Na
década de 1980 a atriz encarna a dona de um bordel na Amazônia em Fitzcarraldo
(direção Werner Herzog, 1986) e novamente trabalha com Luigi Comencini,
desta vez na adaptação de um texto homônimo de Elsa Morante para a
televisão abordando mais uma vez a guerra. Em A História (La
Storia, 1986), Cardinale é Ida, que foi estuprada por um soldado alemão e
teve esse filho – uma história não muito diferente da que marca a
biografia da própria atriz. (imagem acima, Os Delfins, I Delfini, 1960)
“Ao filmar o romance de Elsa Morante, Comencini tomou uma decisão ousada
e arriscada – escalar Claudia Cardinale para o papel de Ida. Entre as
divas reinando nas telas italianas entre os anos 1960 e 1970, talvez
Cardinale tenha sido mais bem conhecida por suas atuações como a
deslumbrante e extrovertida Angélica em O Leopardo, e como Claudia, a glamorosa musa de Fellini em 8 ½, assim como Ainda, a dançarina esperta do filme que lançou seu estrelato, de Valerio Zurlini, A Moça com a Valise.
No âmbito do corpus da cinematografia italiana do Holocausto, já
havíamos visto Cardinale ostentar sua persona de tela sexualmente
extravagante em Vagas Estrelas da Ursa, de Visconti, onde o
erotismo convencional de personagens como Angélica e Claudia revela
possuir correntes subterrâneas sombrias e perigosas. Ao escalar
Cardinale no papel da deselegante, reprimida e retraída Ida em La Storia,
Comencini confronta a atriz com um desafio formidável – persuadir as
plateias a deixar de lado memórias de suas encarnações anteriores como
deusa do sexo com o dom da atividade. Parte da energia que Cardinale
coloca nessa performance é precisamente uma energia de supressão –
intuímos o esforço em mascaras sua beleza voluptuosa, a moderação de sua
presença pessoal carismática e a negação de seu fascínio sexual. O
sucesso de Cardinale em dar vida a Ida se deve, em grande parte,
[acredita Millicent Marcus], à forma através da qual a negação pela
atriz de sua persona de tela vigorosa e sensual decreta os esforços da
personagem para esconder o ‘pecado original’ de sua identidade e
proteger a criança que encarna esse segredo” (14) (imagem abaixo, O Belo Antônio, 1960)
Revendo um dos primeiros filmes da atriz, Pasolini
comentou que os olhos dela focavam apenas nos cantos (15)
comentou que os olhos dela focavam apenas nos cantos (15)
Visconti apresentou Cardinale como uma típica beleza do sul da península italiana em Rocco e seus Irmãos e O Leopardo.
Gundle explica que, apesar da fama destes dois exemplos, foram apenas
participações especiais. Contudo, insiste Gundle, embora Cardinale
raramente tenha sido a fonte principal da bilheteria de um filme, entre
1958 e 1963 ela alcançou bastante projeção, atuando em mais de vinte
filmes italianos e estrangeiros. Cardinale se destaca no drama (que
Gundle classifica como comédia social) O Belo Antônio (Il Bell’Antonio, direção Mauro Bolognini, 1960) (imagem acima), na decadência de Os Delfins
(I Delfini, direção Francesco Maselli, 1960), sem esquecer Era uma Vez
no Oeste, além de uma variedade de filmes internacionais de aventuras –
Christopher Frayling destacou o caráter excepcionalmente único que foi o
fato de Leone escalar uma mulher como personagem principal (16); de
fato, foi apenas por insistência do cineasta Bernardo Bertolucci,
responsável por um dos primeiros tratamentos de Era Uma Vez no Oeste, que Leone passou a considerar uma boa ideia. Gundle ressalta que A Moça com a Valise e A Garota de Bube
se revelaram grandes oportunidades para Cardinale. Foi apenas após
começar a atuar que ela passou a frequentar o curso de atriz no Centro Sperimentali di Cinematografia.
Mas Cardinale não se considera uma atriz, apenas uma mulher com certa
sensibilidade. Em 2005, ela comentou: “(...) A melhor parte foi essa
transformação contínua. Fui loura, morena, ruiva, cabelo longo, cabelo
curto. Eu estava sempre diferente. Isso me ajudou muito, também porque
eu conseguia ser outra diante da câmera e, assim que acabava, voltava a
ser eu mesma novamente. Isso é força interior, isto é, não misturar a
identidade” (17). (imagem abaixo, O Leopardo, 1963)
Leone, Fellini, Visconti
“Em O Leopardo, [Visconti] a encorajou a caminhar
a passos largos, tomando posse do chão com a confiança
suave porém forte que os animais possuem” (18)
a passos largos, tomando posse do chão com a confiança
suave porém forte que os animais possuem” (18)
O fato é que a atuação instintiva de Cardinale, aliada a sua presença
física e repertório emocional, formataram sua identidade na tela,
tornando-a interessante aos olhos de muitos cineastas. Eles a viam como
alguém maleável e disponível para ser moldada, um corpo no qual poderiam
ser inscritos uma variedade de significados. A atriz não se importou
quando Sergio Leone a convidou para atuar em Era Uma Vez no Oeste
sem lhe dar o roteiro: “Para mim, Sergio Leone encarnava o cinema”
(19). Ficou impressionada com a capacidade do cineasta em explicar tudo,
a ponto dela conseguir formar uma imagem do filme completo antes mesmo
de começar a filmar. Ela chegou a comparar Leone a Visconti em relação à
cena em que Jill McBain (a personagem de Cardinale) procura compreender
o mistério que encontrou (20). Durante um intervalo das filmagens,
Cardinale comenta com Gaetano Carandini: “Rocco e Seus Irmãos é
meu décimo quarto filme, e conquanto o papel de Ginetta seja secundário,
estou satisfeita por fazê-lo, porque, representando sob a direção de
Visconti, que deixa o ator muito a vontade, mas logra ao mesmo tempo
fazê-lo representar tal como ele quer, já aprendi muita coisa e penso
que posso aprender mais ainda nos próximos dias” (21). Ao justificar a
escolha de Cardinale para Era Uma Vez no Oeste, Leone sugeriu que a atriz, em certa medida, correspondia à personagem:
“No começo, Carlo Ponti desejava entrar na produção do filme. Ele me
propôs Sophia Loren para o papel. É uma atriz que aprecio muito, mas não
a vejo encarnando uma puta de Nova Orleães. Ela só poderia interpretar
uma puta napolitana! Eu preferia Claudia Cardinale. É um pé-preto de
Tunis [referência a franceses que moravam na parte da África colonizada
pela França, embora saibamos que Cardinale é de ascendência italiana].
Ela era admissível num personagem francês. Era muito ligada à realidade
americana. Na origem das grandes famílias do Oeste, certamente havia um
ancestral vindo de um bordel. Foram essas mulheres que instauraram o
nascimento do matriarcado (...)” (22) (imagem abaixo, Era Uma Vez no Oeste, 1968)
“(...) Claudia Cardinale representa a água, a promessa
do Oeste. Toda a história se articula em torno
dela, e no final ela é a única sobrevivente (...)”
do Oeste. Toda a história se articula em torno
dela, e no final ela é a única sobrevivente (...)”
Sergio Leone definindo o simbolismo do papel do
personagem de Cardinale em Era Uma Vez no Oeste (23)
Cardinale trabalhou com uma grande variedade de cineastas, tendo sido a
única atriz nos anos 1960 a ser escalada tanto por Visconti quanto
Federico Fellini, considerados polos opostos em termos de estilo,
valores e abordagem em relação ao cinema enquanto atividade comercial.
Fellini reservou para Cardinale, em 8 ½, nada menos do que o
papel da mulher perfeita, chegando a declarar numa entrevista em 4 de
fevereiro de 1963 (o filme seria lançado na Itália no dia 15): “(...)
Claudia Cardinale foi tão importante para mim como a fada dos cabelos
turquesa foi para Pinóquio (...)” (24). Para alguém como Fellini,
acostumado a enaltecer as mulheres publicamente e em seus próprios
filmes, indicando Cardinale para mulher ideal, excita a curiosidade
saber que a única vez que o cineasta sonhou (ou registrou seu sonho) com
a atriz, ela estava acompanhada de seu primeiro marido, Franco
Cristaldi. Podemos apenas especular, inclusive não sabemos se Fellini
estava a par do sacrifício (que por si só parece roteiro de filme)
imposto à Cardinale por Cristaldi para que ela fosse lançada no cinema
(esconder uma gravidez fruto de estupro, dar a luz em segredo e
apresentar o filho como se fosse seu irmão) (25). No ano seguinte ao
sonho de Fellini, o casal viria a se divorciar. No sonho, datado de 15
de novembro de 1974, Fellini reclama com um garçom porque seu
apartamento estar cheio de mesas. Num canto da sala Cristaldi, de costas
fingindo não ver o cineasta (mas Fellini sabe que o viu), está abraçado
com Cardinale. No sonho, o apartamento é uma suíte de hotel (26).
(imagens abaixo, O Leopardo, 1963)
A futura cineasta Lina Wertmüller foi assistente de Fellini por três meses durante a produção de 8 ½.
Ela contou que lhe deram uma fotografia do tamanho de um selo postal e a
mandaram por toda a Itália à procura de uma desconhecida que se
parecesse com Claudia Cardinale. De acordo com Wertmüller Fellini não
acreditava que Cristaldi liberaria sua esposa para trabalhar com ele.
Nos anúncios de jornais perguntava-se, “você tem quadris do tamanho
certo?”, “você se reconhece nesse tipo de beleza?”. Centenas, dos 12 aos
80 anos, responderam ao chamado. Apesar da descrição física que
acompanhava o anúncio, a maioria era completamente diferente. Admirada
com o otimismo das concorrentes, Wertmüller e a equipe sentiam-se como
um bando de ciganos a procura de uma beleza da Renascença no meio de um
zoológico. Quando encontraram alguém, era uma moça considerada perfeita,
parecia com a Cardinale mais do que Cardinale. Mas Fellini ainda não
sabia da descoberta de Wertmüller, e acabou fazendo o convite a ela, que
aceitou imediatamente o papel. Fellini também queria fazer um filme com
o personagem Mandrake, o Mágico, com Mastroianni no papel principal e
Cardinale como Narda, sua namorada. Mas esse projeto foi abandonado,
principalmente depois que o ator insistiu para que Catherine Deneuve,
então sua esposa, fizesse o papel de Narda (27) – em Entrevista
(Intervista, 1987), na homenagem que presta a Anita Ekberg, finalmente
Fellini escala Mastroianni como Mandrake. (imagem abaixo, Cardinale e
Brigitte Bardot em As Petroleiras, Les Pétroleuses, 1971)
“(...) Cardinale contribuiu para a consolidação da ideia de que a beleza
feminina foi um recurso ilimitado da Itália, que o cinema italiano estava
especialmente qualificado para descobrir e apresentar (...)” (28)
Nos primeiros minutos de 8 ½, o cineasta Guido, personagem de
Mastroianni, sai voando de um engarrafamento direto para seus delírios,
mas logo será puxado para a terra por ordem de um homem a cavalo que
descobriremos ser agente de imprensa (a quem Guido chama de
“super-tarzan”) de Claudia Cardinale (uma das atrizes que Guido deseja
incluir em seu filme, mas não envie o roteiro para ela). Posteriormente,
Guido está na sala de projeção escolhendo intérpretes quando Cardinale
chega pela porta. É a atriz que chega em “carne e osso”, mas é já também
a moça da fonte de água medicinal. Mais tarde, Guido procura fazê-la
compreender sua personagem, mas ela não entende e recusa o papel. Assim,
Fellini criou uma imagem em espelho, um duplo da atriz, assim como
Guido é um duplo de si mesmo, personagem de seu próprio filme. Contudo,
na hora de elogiar, Cardinale foi enfática ao detalhar a extensão da
importância de Visconti, não de Fellini, em sua vida profissional:
“Dentre todas as coisas que ele me ensinou encontra-se a consciência de
meu corpo, minhas pernas, meus ombros, meus braços, meu queixo e meus
olhos. Ele me ensinou a guiar meu corpo e não permitir que eu seja
guiada cegamente por ele. [Visconti] devolveu a mim, se posso colocar as
coisas dessa maneira, um olhar e um sorriso. Hoje, sou mais do que
nunca unida a ele. É [Visconti] que eu continuo a referir sempre que
falo, penso, choro ou dou risada em frente a uma câmera” (29). Cardinale
chegou a explicitar diferenças entre Visconti e Fellini:
“8 ½ foi a primeira vez que utilizei minha própria voz na tela,
não tendo sido dublada por alguma outra pessoa depois. Muito antes de
começarmos a filmar, Fellini me ligou e me fez falar longamente a
respeito de meu personagem. Apenas quando começamos a filmar foi que eu
percebi que as coisas que havia dito no telefone se transformaram em meu
diálogo... Ele fez tudo parecer como se fosse por acaso. Era
absolutamente o oposto de trabalhar com Visconti, aonde tudo foi
planejado até o mínimo detalhe” (30) (imagem abaixo, 8 ½, 1963)
O que Pode um Corpo (Coberto)?
Em 8 ½, o personagem de Cardinale, que se
chama Claudia, representa a mulher perfeita,
ideal inacessível da beleza quase divina
ideal inacessível da beleza quase divina
O corpo de Cardinale foi o elemento fundamental de seu encanto
individual, mas também italiano. A atriz não parece ter problemas em
admitir a importância que suas curvas tiveram na formação de sua
identidade na tela: “eu tenho seios atraentes, eu sei; eles sempre foram
assim. Eles são uma parte de meu corpo que nunca foi um problema, e eu
agradeço à Mãe Natureza – o mérito é todo dela. Foi também a Mãe
Natureza que me presenteou com um corpo que, felizmente, não é um tronco
de árvore. Sempre tive essa cintura fina, quadris redondos e um busto
que me permite vestir qualquer espécie de decote” (31). Contudo, a atriz
nunca sucumbiu à quase exigência de nudez na tela, tendência que
criticou em 1977 chamando de “forma de prostituição do celuloide” (32) –
especialmente em função da tendência patriarcal correspondente que
impede e/ou desvaloriza a publicidade ao nu masculino (33). Nessa mesma
tela, Cardinale foi muitos tipos de mulher. Nos filmes de Mauro
Bolognini ela foi de camponesa do sul da Itália a mulher sedutora e
cruel. Mas Cardinale também representou a mulher executiva no universo
empresarial, assim como mulheres burguesas e, acima de tudo, o “objeto
maravilhoso”. Em Os Carbonários (Nell’anno del Signore, direção
Luigi Magni, 1969), a beleza da personagem de Cardinale é elogiada por
um cardeal católico que comenta: “que pecado: tão bela, tão judia!”
(34). Na opinião de Gundle, havia um padrão na tensão entre a
personalidade fechada e agressiva de Cardinale e a convidativa
tranquilidade de suas curvas suaves e aparência feminina. Esse caráter
“fechado e rebelde” era sua marca, colocando-a em sintonia com os anos
1960, além de conferir-lhe autonomia e complexidade. Cardinale era ao
mesmo tempo tradicional e contemporânea (35). (imagens abaixo, Vagas Estrelas da Ursa, 1965)
“Para escolher esta profissão deves ser muito forte
por dentro, senão é canibalismo - as pessoas te comem.
Se acredita nos jornais quando te dizem elogios ou
coisas assim [...], você está perdida. Eu não acredito nunca”
por dentro, senão é canibalismo - as pessoas te comem.
Se acredita nos jornais quando te dizem elogios ou
coisas assim [...], você está perdida. Eu não acredito nunca”
Claudia Cardinale (36)
A adaptabilidade de Cardinale aos muitos papéis que representou seria
ilustrada por uma entrevista com o escritor Alberto Moravia (1907-1990),
baseada na premissa de que ela foi “um objeto”. Ele definiu o movimento
do cabelo da atriz como um elemento em perfeita correspondência com “as
curvas do corpo dela”. Seu busto era “muito evidente e cheio”, sua pele
“sempre marrom, como se estivesse sempre bronzeada pelo sol”, seus
olhos “muito escuros, mas muito brilhantes e muito luminosos”. Para o
escritor, a boca dela possuía uma expressão dura e cruzada, “um pouco
rústica, um pouco rural”. Era a boca que se imaginaria “no ato de morder
uma fruta ou cuspir uma semente, ou marcar uma folha de grama”. Quando
Cardinale ria, seus olhos “se tornavam duas aberturas escuras,
cintilantes, com uma qualidade sulista maliciosa, e intensa”. Mas Gundle
explicou que essa coisificação não significava que o escritor estava no
controle. Recordando essa entrevista em sua autobiografia, Cardinale
não se opôs a ser considerada como um corpo, já que ele era a ferramenta
de seu trabalho como atriz. “Eu me diverti um pouquinho fazendo-o se
sentir pouco a vontade, por compreendia que minha presença física o
envergonhava bastante. Fisicamente, de fato, eu estava muito próxima de
seu mundo, de seus personagens femininos, como ele os pensava e os
descrevia. De certa forma, eu era parte de seus escritos, uma vez que
era, e parecia ser tão cruel, temperamental, argumentativa e também um
pouco indiferente a ele” (37). (imagem abaixo, 8 ½, 1963)
Os fãs italianos se contentavam com uma Cardinale idealizada,
mulher doce, de cabelos marrons e beleza de pele escura. Já os
estrangeiros eram mais diretos, queriam ver seu corpo nu
Jacques Aumont fala de uma derrota do rosto em Visconti, citando como exemplo o papel de Cardinale como Sandra em Vagas Estrelas da Ursa (38). Neste filme, sugeriu Aumont, o plano geral (long shot)
faz com que os rostos escapem de qualquer fotogenia, de toda beleza,
ou, pelo menos, de toda beleza clássica. A propósito deste filme,
Visconti se refere a uma “animalidade” de Cardinale, de seu rosto
“etrusco”, em referência ao povo que vivia na península itálica antes do
Império Romano surgir. Quanto aos tiros de zooms que, a partir
deste filme, Visconti utilizará frequentemente, na verdade seriam, de
forma ainda mais brutal, golpes contra a integridade do rosto. Para Jean
Collet, “encontramos ao longo de todo o filme esses travellings
para frente, sobre o rosto de Claudia Cardinale. Acreditamos nos
aproximar de um ser, apenas para descobrir que ele não está lá, que seu
corpo é um envelope vazio. Talvez devêssemos ver aqui o segredo da
soberba sensualidade que Visconti soube comunicar à sua interprete. A
carne está presente, mil vezes mais presente quando o espírito está em
outro lugar, quando as pálpebras pesam sobre um olhar perdido” (39). Na
opinião de Aumont, o poder do desconforto gerado pelo filme não está na
loucura dos personagens, mas na opacidade, tanto do significado dos
rostos de Cardinale e Jean Sorel (cujos personagens são irmãos
incestuosos), quanto entre a pele lisa e fosca dela e a pele branca e
porosa do marido dela (na cena do quarto, onde ela está seminua).
“O busto desnudo de Sandra é a imagem mais difundida do filme de Luchino Visconti, Vagas Estrelas da Ursa. Na capa dos Cahiers du Cinéma
de dezembro de 1965, a jovem mulher está deitada na cama na hora da
sesta com seu marido [sentado numa poltrona por trás dela], no palácio
de Volterra, enquanto [na revista] Positif do mesmo mês escolheu
apresentar uma vista das costas de Sandra nessa mesma cena. A respeito
de Claudia Cardinale, Visconti declarou que ‘às vezes apresenta uma
impressão estática, mas é para me permitir explorar seu rosto, sua pele,
seu olho... seu olhar, seu sorriso’; mas ao mesmo tempo ela tem ‘essa
espécie de beleza um pouco pesada, um pouco animal, que me agrada para
esse papel’. Portanto, o corpo nu de Sandra remete à estatuária pelo
aspecto massivo de seu dorso, por sua ‘beleza um pouco pesada’, mas
também por certos traços de seu rosto que evoca as mulheres etruscas, de
terracota ou alabastro, das urnas funerárias do museu de Guarnacci”
(40) (imagem abaixo, Vagas Estrelas da Ursa, 1965)
Geralmente se comenta a respeito da influência da literatura no cinema,
mas no caso de Giuseppe Tomasi di Lampedusa aconteceu o oposto.
Publicado postumamente em 1959, o livro aborda a delicada questão da
transição da aristocracia feudal siciliana para a nova ordem burguesa.
Contudo, de acordo com Gundle, o tema da beleza da mulher não é de forma
alguma um elemento secundário no livro. Angélica, a filha do novo rico
da cidade, é o símbolo dessa nova ordem. No livro, a beleza dessa mulher
será descrita em detalhes por Lampedusa, um interesse muito distante de
outros romancistas anteriores que abordaram o tema do Risorgimento.
Em nenhum deles a bela pele escura daquela mulher (em contraste com a
pele branca da mulher com quem Tancredi originalmente iria se casar) é
usada para simbolizar a vitalidade da nova classe. “(...) O escritor não
era um admirador de concursos de beleza, todavia, passava as noites de
verão assistindo a competição de Miss Itália em Mondello. Ele
também era um frequentador de cinema muito interessado. Há poucas
dúvidas de que quando Lampedusa compôs a figura de Angélica ele tinha a
atrizes como Lollobrigida e Loren em mente. Elas encarnam o deslocamento
da aristocracia pelo culto de uma celebridade popular e simbolizam a
nova era democrática” (41). Visconti não escolheria nenhuma das duas
para o papel, mas a novata de pele escura Claudia Cardinale, que já
havia chegado há algum tempo para destronar as duas divas. A atriz não
se cansa de enfatizar a qualidade do aprendizado em função do trabalho
com o cineasta, vale lembrar que em 1963 (ano de lançamento de O Leopardo) Cardinale completava meros cinco anos em sua carreira:
“(...) Cada piscada, cada gesto era calculado e decidido com o diretor. Ele me dizia coisas muito importantes. Ele me ensinou muita coisa. Por exemplo: ‘Quando entrar, não dê passos muito pequenos. Você tem que tomar posse do espaço’. E me disse outras coisas: ‘Lembre-se que os olhos dizem o que a boca não diz; isto é, o contraste entre o olhar e a boca, as palavras’(...)” (42)
“(...) Cada piscada, cada gesto era calculado e decidido com o diretor. Ele me dizia coisas muito importantes. Ele me ensinou muita coisa. Por exemplo: ‘Quando entrar, não dê passos muito pequenos. Você tem que tomar posse do espaço’. E me disse outras coisas: ‘Lembre-se que os olhos dizem o que a boca não diz; isto é, o contraste entre o olhar e a boca, as palavras’(...)” (42)
Deve Haver Algum Sentido
Na opinião de Vittorio Spinazzola, Cardinale não desenvolveu um perfil
preciso enquanto estrela. Cresceu falando francês e árabe (seu idioma
natal não é o italiano) na Tunísia e adorava Brigitte Bardot, figura sem
equivalente no cinema italiano dos anos 1950. Embora compartilhasse uma
raiz comum, Cardinale sempre foi diferente de Lollobrigida e Loren, sua
aura de mistério tem mais a ver com Silvana Mangano. Além disso, sua
fotogenia era “muito moderna”, o que chamou atenção dos cineastas
italianos do começo dos anos 1960 focados no cinema dito “de arte”.
Apesar disso tudo, Cardinale cultivava um mistério ao insistir que seu
corpo nunca fosse exposto na tela. Seus vestidos eram longos e ela nunca
se despiu para as câmeras, o máximo que vimos foi suas costas. Mas
Cardinale teve de conviver com o desejo de seus fãs pela nudez do corpo
dela, recebendo cartas com pedidos por fotografias sem roupa. Os
estrangeiros eram mais ousados do que os italianos. Estes foram mais
impactados pelos primeiros filmes dela, onde atuava como uma mulher
idealizada e pura. De acordo com Giovanni Grazzini, que teve acesso às
cartas, o público italiano, que ainda é sensível ao culto da Virgem
Maria e a obsessão nacional com a maternidade é mais sensível aos
valores de uma feminilidade amorosa e protetora. Apesar de subestimada, a
carreira de Cardinale dura até hoje. Enquanto atrizes que emergiram
inicialmente escaladas como belezas rurais peitudas emagreceram e
lutaram para se encaixar num ideal burguês de refinamento e elegância
(equilibrando qualidades nacionais e cosmopolitas), Cardinale facilmente
preencheu a lacuna. Mas o preço não foi barato, sua própria maternidade
teve de ser escondida do público, e sublimada, de alguma forma. Como
ela mesma afirmou num documentário em 2005 (encolhendo os ombros no
final, como quem diz “não há mais nada que se possa fazer”, ou “eu não
sei”), talvez seja o destino...
“(...) Eu acredito no destino, no sentido de que tudo está escrito. Se
você fez alguma coisa é porque devia fazer, e ponto final. É claro que
cometi erros. Mas se fiz é porque devia fazer, e foi necessário para que
fizesse alguma outra coisa. Eu realmente acredito no destino. Quando as
coisas acontecem, era para acontecer. Não tenho remorso. Não tenho... O
passado ficou para trás. Eu sempre olho para frente” (43)
Notas:
1. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. P. 42.
2. ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Pp. 259, 392.
3. MORDINI, Stefano. Essere Claudia Cardinale. Documentário, no Brasil recebeu o título Claudia Cardinale - A Diva Italiana. Felix Film, 2005.
4. SMALL, Pauline. Sophia Loren. Moulding Star. Chicago: University of Chicago Press, 2009. P. 23.
5. FRAYLING, Christopher. Il Était Une Fois en Italie. Les Westerns de Sergio Leone. Paris: Éditions de La Martinière, 2005. Catálogo de exposição. P. 202.
6. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 196.
7. SMALL, Pauline. Op. cit., p. 110.
8. Idem, p. 99.
9. CARRANO, Patrizia. Malafemmina. La Donna nel Cinema Italiano. Firenze: Guaraldi Editore S.p.A., 1977. P. 75.
10. CARANCINI, Gaetano. O Cinema e os Milaneses. In: VISCONTI, Luchino. Rocco e Seus Irmãos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967. P. 298.
11. GUNDLE, Stephen. Bellissima. Feminine Beauty and the Idea of Italy. New Haven/London: Yale University Press, 2007. Pp. 189-190.
12. Idem, p. 186.
13. Ibidem, pp. 185-188.
14. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. Pp. 68-9.
15. GUNDLE, Stephen. Op. cit., p. 188.
16. FRAYLING, Christopher. Op. cit., p. 19.
17. MORDINI, Stefano. Essere Claudia Cardinale. Documentário, op. cit.
18. GUNDLE, Stephen. Op. cit., p. 188.
19. FRAYLING, Christopher. Op. cit., 120.
20. Idem, p. 119.
21. CARANCINI, Gaetano. Procura-se um Substituto. In: VISCONTI, Luchino. Op. cit., p. 334.
22. SIMSOLO, Noël. Conversation Avec Sergio Leone. Paris: Cahiers du Cinéma, 3ª ed., 2006. P. 132.
23. FRAYLING, Christopher. Op. cit., p. 78.
24. CALIL, Carlos Augusto (Org.). Tradução Hildegard Feist. Fellini Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. P. 146.
25. MORDINI, Stefano. Essere Claudia Cardinale. Documentário, op. cit.
26. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (Eds.). Federico Fellini. The Book of Dreams. New York: Rizzoli, 2008. P. 522.
27. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 242, 376-7.
28. GUNDLE, Stephen. Op. cit., p. 186.
29. Idem, p. 188.
30. DEWEY, Donald. Marcello Mastroianni. His Life and Art. New York: Carol Publishing Group, 1993. P. 150.
31. GUNDLE, Stephen. Op. cit., p. 188.
32. CARRANO, Patrizia. Op. cit., p. 146.
33. Idem, p. 147.
34. DI BIAGI, Flaminio. Il Cinema a Roma. Guida alla storia e ai luoghi del cinema nella capitale. Roma: Palombi Editori, 2010. P. 124.
35. GUNDLE, Stephen. Op. cit., pp. 188-190.
36. MORDINI, Stefano. Essere Claudia Cardinale. Documentário, op. cit.
37. GUNDLE, Stephen. Op. cit., pp. 188-190.
38. AUMONT, Jacques. Du Visage au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1992. Pp. 158-9.
39. Idem, p. 158.
40. LIANDRAT-GUIGUES, Suzanne. Vaghe Stelle dell’Ursa. In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (Orgs). Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. 1991. P. 386.
41. GUNDLE, Stephen. Op. cit., p. 167.
42. Comentário de Cardinale no Making of de O Leopardo, no DVD de extras da versão completa restaurada, lançada no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo, 2004.
43. MORDINI, Stefano. Essere Claudia Cardinale. Documentário, op. cit.
43. MORDINI, Stefano. Essere Claudia Cardinale. Documentário, op. cit.
Fonte: Cinema Italiano
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