fevereiro 05, 2015

"Rio em transe, Recife em ebulição" Por José Geraldo Couto

PICICA: "Em “Amor, plástico e barulho”, Renata Pinheiro mergulha no mundo brega-sexy da periferia do Recife e, embora com limites, convida a lembrar clássico “Copacabana mon amour”"

Rio em transe, Recife em ebulição


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Em “Amor, plástico e barulho”, Renata Pinheiro mergulha no mundo brega-sexy da periferia do Recife e, embora com limites, convida a lembrar clássico “Copacabana mon amour” 

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

O que aproxima e o que afasta Amor, plástico e barulho, de Renata Pinheiro, que acaba de entrar em cartaz, de Copacabana mon amour, realizado por Rogério Sganzerla em 1970 e que chega agora ao DVD em cópia restaurada?

Antes de prosseguir, cabe enfatizar que não se trata de uma comparação, no sentido de estabelecer uma hierarquia de valor. É óbvio que Amor, plástico e barulho é menor e menos fundamental do que Copacabana, mas poucos outros filmes não o seriam. Aqui, uma breve reportagem sobre o filme de Sganzerla e sua restauração:



O interesse de uma aproximação esdrúxula como essa é produzir faíscas que talvez ajudem a iluminar cada uma das obras em questão e os contextos culturais em que foram realizadas.

Comecemos pelas afinidades. Ambos os filmes operam um corajoso corpo a corpo com a chamada “realidade social” de uma geografia específica: o de Sganzerla com uma Copacabana fervilhante de contradições e em rápida transformação; o de Renata Pinheiro com a “cena brega” da periferia de Recife, com sua economia própria, seu star system, sua volatilidade vertiginosa.

Copacabana em relevo

As semelhanças terminam por aí. Se Amor, plástico e barulho imerge de cabeça em seu objeto, aderindo quase sem distanciamento a seus valores e adotando uma abordagem realista, semidocumental (com exceção da fantasiosa sequência final), Sganzerla interfere violentamente na Copacabana que retrata, mediante uma encenação antinaturalista, a independência entre imagem e som, a montagem descontínua e a própria textura da imagem, captada com câmera na mão em Cinemascope.

O procedimento fotográfico de Copacabana mon amour põe literalmente em relevo a topografia da região, contrastando morro e asfalto, do mesmo modo que sobrepõe à Copacabana mítica (da música popular e do turismo) a Copacabana real do aterro, do paredão de prédios (na época muito menos denso que hoje), dos becos e dos botecos.


Cena de Copacabana mon amour
É por esse microcosmo geográfico e social disposto em camadas que trafegam a prostituta Sonia Silk (Helena Ignez) e seu irmão Vidimar (Otoniel Serra), apaixonado pelo patrão, o Dr. Grilo (Paulo Vilaça). Figuras ambíguas e sem nome completam o quadro: uma linda mulher (Lilian Lemmertz, em caracterização que remete à Ana Karina dos filmes de Godard) com quem Sonia faz amor, um lúmpen (Guará Rodrigues) que pede money a marinheiros americanos e dedura “subversivos” à polícia.

No caleidoscópio de Sganzerla, potencializado por uma trilha sonora que une canções feitas por Gilberto Gil para o filme e clássicos da música popular carioca, tudo se ilumina de modo original: a opressão social, a ditadura política, a revolução sexual, a degradação urbana, o entrechoque de culturas (África, Oriente, América), configurando um caos fértil de onde parecia poder surgir a civilização mais avançada ou a barbárie mais devastadora. O ensandecido discurso em off vincula o local ao cósmico, o minuto à eternidade.

Amor brega no Recife

Necessariamente mais modesto, Amor, plástico e barulho é o primeiro longa dirigido pela tarimbada diretora de arte de filmes como Baixio das bestas, Hotel Atlântico e Tatuagem.


É um mergulho fascinante num universo pouco conhecido em outras regiões do pais: o mundo da música brega-sexy da periferia de Recife, com suas celebridades locais instantâneas, seus cantores e cantoras, suas bandas, seus DJs, suas pequenas gravadoras, seu circuito de bares e casas de shows. Todo um mercado, toda uma cultura que floresce à margem dos grandes meios de comunicação.
Por meio da história de duas cantoras amigas e rivais, a “veterana” Jaqueline (Maeve Jinkins) e a novata Shelly (Nash Laila), a diretora traça um quadro bastante expressivo das relações fugazes – e frequentemente vorazes – que se estabelecem nesse mundo que, como o show business em geral, alimenta-se da novidade e, ao mesmo tempo, da repetição. Autofagia é a palavra. Só que ali tudo é mais cru, quase selvagem: a rapidez do descarte, a violência da competição, a crueldade do declínio.


Cena de Amor, plástico e barulho

O grande trunfo do filme – sua imersão sem anteparos no universo que descreve – é também, de certo modo, sua maior limitação. Em sua abordagem permeável, porosa, a feiura e a sujeira entram por todos os lados. Diferentemente da saturação cromática e cenográfica controlada de uma obra como Tatuagem, aqui parece que o filme submerge no caos que pretende retratar, fica à mercê de sua estridência, de tal modo que o plástico e o ruído por pouco não soterram o amor do título.

Há que louvar, de todo modo, a coragem e a integridade da diretora, a energia da condução narrativa e a entrega de suas atrizes. Em suma, mais um título que dignifica a vigorosa cinematografia pernambucana.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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