fevereiro 05, 2015

"Que disse o Papa?" Por Ariel Pennisi

PICICA: "Ariel é professor da Universidade de Avellaneda, em Buenos Aires. Em novembro do ano passado, esteve no Brasil para participar do colóquio Queremos, numa parceria entre a UniNômade e a Casa de Rui Barbosa. O editor e ensaísta comenta as palavras do papa “Francisco”, ao pronunciar-se sobre o assassinato de David Moreyra, jovem de 18 anos linchado até a morte em 2014, numa onda de linchamentos que também correu o Brasil." 

Que disse o Papa?

Por Ariel Pennisi, na Tanamericana | Trad. UniNômade

Ariel é professor da Universidade de Avellaneda, em Buenos Aires. Em novembro do ano passado, esteve no Brasil para participar do colóquio Queremos, numa parceria entre a UniNômade e a Casa de Rui Barbosa. O editor e ensaísta comenta as palavras do papa “Francisco”, ao pronunciar-se sobre o assassinato de David Moreyra, jovem de 18 anos linchado até a morte em 2014, numa onda de linchamentos que também correu o Brasil.



FUEnteovejuna


O papa não perde uma oportunidade sequer para fazer uma aparição política na Argentina. O papa é argentino, realmente, mas isto não deveria levar este país a se brandir como destinatário principal de suas declarações — se é que as declarações são realmente suas… “Francisco” parece pensar papalmente a Argentina. Sua história, seus movimentos e sua inteligência insinuam uma complexidade notável para, havendo o interesse, desta vez pensar localmente o papa. Existe qualquer coisa de estranho no fato de um papa falar de questões domésticas de um país, mesmo quando, como no caso dos recentes linchamentos, sentimos que a dimensão doméstica não deixa de ser crucial. Ao mesmo tempo, a estranheza vai dissipando-se, tornando-se familiaridade, se pensarmos nos hábitos cristãos, já que Deus, — tendo já opinado sobre tudo e de uma vez para todo o sempre, — circula por meio dos padres de todos os lugares, dirimindo cada um dos problemas e cada um dos pecados até os cantos mais remotos (Deus antecipou a biopolítica). Por isso, o que para alguns poderia parecer uma espécie de intromissão estrangeira, para outros representa uma repercussão “de luxo” da onipresença divina.

A última notícia importante protagonizada por Bergoglio antes de sua eleição a papa foi a citação judicial a que, finalmente, depois de negar-se várias vezes, teve de ceder. Tinha sido acusado pela delação presumida dos padres Jalics e Yorio [1] às mãos da ditadura de 1976. Porém, não tendo sido apresentadas provas suficientes, até agora, a citação da justiça laica o convocou apenas na qualidade de testemunha. Num gesto que o distancia muito da atual austeridade de “Francisco”, Bergoglio usou o poder que o seu cargo eclesiástico o confere, para demandar a montagem de um tribunal inteiro num salão da Arquidiocese (50 pessoas foram mobilizadas para que a diligência pudesse ser cumprida), onde a estátua da Virgem, postada às costas dos interrogadores, completava um cômodo horizonte visual. A vagueza sobre fatos concretos e nomes marcou o testemunho de Bergoglio do início ao fim. Afirmou ter ouvido que a Marinha tinha sequestrado os padres. Como ficou sabendo? “Vox populi”, disse, sentenciando ao latim uma segunda morte. Quando o advogado Luiz Zamora perguntou-lhe então pela fonte dos comentários, quer dizer, a fonte em que se fiou a ponto de motivá-lo, segundo suas próprias palavras, a visitar o almirante Massera, Bergoglio voltou a confiar na morte do latim: “se diz que vox populi vox dei”[2]. O papa pode não ser um latinista experiente, mas é um político profissional hábil, escorregadio na hora das definições e, sobretudo, conservador em seu status de dirigente.

Esses antecedentes dão a medida de uma forma de viver a relação entre palavra e fatos. É certo que palavra e coisa não existem uma sem a outra, mas não é menos certo que, entre o que se diz e o que se faz — e entre eles abre-se um abismo — se desdobra uma ética possível. Evitar dizer os nomes numa declaração deste gênero tem por correlato prático a ocultação de parte da trama concreta de relações, do mapa de vínculos que, materialmente, fora necessário para levar adiante o sequestro sistemático de pessoas, assassinatos e outras atrocidades perpetradas pelo governo, realmente, com a cumplicidade absoluta da Igreja Católica argentina. O sequestro de padres fazia parte de um expurgo interno que o próprio Bergoglio soube reproduzir, em menor teor, na Universidade de Salvador [NT. universidade privada católica de Buenos Aires]. Esta menção muito breve dá conta do valor que a palavra tem pra Bergoglio e, mais ainda, da ação dissolvente de tramas concretas de relação que pode ter, — visto que, para ele, dá no mesmo dizer um nome a não dizê-lo, especificar uma responsabilidade a não fazê-lo. A religião católica ingressa na vida contemporânea com seu esplêndido novo papa, sintonizando uma espiritualidade tão abstrata e voluntarista quanto negadora das relações de força, cooperação e sujeição existentes.

Do Cristo que morre combatendo, junto a ladrões e prostitutas, entre outros seres; ao Império Romano e a reinterpretação de um Cristo que morre para purgar os pecados dos súditos — ainda que o seu legado projete a centralidade dessa purgação e a obediência ao princípio da autoridade. Hoje se pode matar uma pessoa sob o rótulo de ladrão ou vagabundo em nome do mesmíssimo Cristo, sob a forma da “ausência de estado”, quer dizer, como reivindicação do princípio nu da autoridade. Os cordeirinhos do Senhor exclamam: “queremos seguir obedecendo, que não se ponham em nosso caminho”. Essas ovelhas com caninos são capazes de matar para defender a sua moralidade. Toda palavra misericordiosa sempre se dá post festum. Se o estado passa a impressão de garantir os direitos, então bem vindo ao golpe de estado, se o estado se recompõe na sua primitiva e constitutiva função policial, então bem vindo à democracia. O ministro da educação, Alberto Sileoni se equivoca, apesar das boas intenções, quando declara: “Temos que deixar clara a nossa negativa absoluta de que a sociedade faça justiça pelas próprias mãos” e, sobretudo, se equivoca quando se refere a fatos ocorridos em “tempos pré-estatais”. Não se trata, pois, de uma instância posterior à capacidade do estado de direito de inscrever sentido nos corpos? Parece que esta é uma situação histórica em que os atores fazem o processo inverso ao da serpente, deixando pra trás o seu esqueleto de cidadãos para ficar com a pele fria e escamosa, o refúgio provisório de sua subjetividade… justamente, esse “ninho de víboras”, como o chamava o filósofo León Rozitchner. É certo que, às vezes, as etapas “pós” se parecem com os momentos “pré”, mas neste caso a fraqueza da análise junta sua cota de terra molhada a um campo mais que lamacento.

Os linchamentos não nos mostram simplesmente cidadãos de saco cheio, dispostos a fazer a “justiça pelas próprias mãos”, mas sim, em vez disso, personagens que se definem pela concentração de energias colocadas à disposição da demanda de um agente externo, casualmente, que se chama “estado” [3], ainda homologado na sua pura função policial. No limite, são consumidores de sua própria demanda. Por isso, não podemos afirmar o retorno da “sociedade de consumo”, esta época definida pela voracidade consumista de cidadãos, senão, melhor do que isso, intuir uma posição consumidora que parece forjar a própria subjetividade. O consumo do consumo.

O papa foi consultado, ou pediu para ser consultado, sobre a raiz dos linchamentos. Referiu-se especificamente ao assassinato de David Moreyra [4], ainda que o papa não tenha pronunciado o seu nome na declaração midiática que proferiu. Os ditos que circularam nos meios de comunicação, ante a complacente visada de todos os jornalistas, foi o seguinte:
“Me doeu a cena.  Fuenteovejuna, me disse. Sentia as pancadas na alma. Não era um marciano, era um garoto de nosso povo; é verdade, um delinquente. E eu me lembrei de Jesus: que diria se estivesse como árbitro ali? Quem nunca pecou que dê o primeiro golpe. 

Me doía todo, me doía o corpo do moleque, me doía o coração dos que o golpeavam. Pensei que este menino o fizemos nós, cresceu entre nós, se educou entre nós. 

O que deu errado? O pior que nos pode passar é esquecer a cena. E que o Senhor nos dê a graça de poder chorar… chorar pelo garoto delinquente, chorar também por nós mesmos.”

A declaração sugere vários níveis. Vale a pena concentrar, pelo menos, em dois pontos relevantes. Por um lado, o uso da “alma” como categoria e a evocação de um “corpo” passível de transitividade (e as consequentes misericórdia e culpa) e classificação; por outro lado, o recurso à história de Fuenteovejuna, a história que Lope de Vega converteu em obra.

1. A alma e o corpo.


“Sentia as pancadas na alma”, disse. É curioso que essa figura ambígua da alma, já esvaziada de sua velha eficácia conceitual, apareça como figura sentimental na boca do papa criollo. Hoje em dia, a dor da alma parece não passar de impostura. No lugar enunciativo de onde ele busca interpelação, um espaço de sentido comum pronto para uso que, nas mãos da hierarquia papal, mistura de autoridade eclesiástica e máquina comunicativa, tem garantido o seu êxito… comunicativo. Se da alma se trata, antes que de redes efetivas de relações, por meio das quais, em níveis distintos e sob distintos modos, poderia ser descrita, pelo menos parcialmente, a rota dos linchamentos. Mas a porta fechada à interrogação é porta aberta para uma liturgia cristã limpa. Não esqueçamos que, no fundo, para o cristianismo institucional, se trata sempre da salvação da alma individual, em detrimento da matéria sensível que se mancomuna com os corpos.

Quando Rozitchner se refere às Confissões de são Agostinho ele entrevê, instalado na lógica interna da obra agostianiana, que somente se é misericordioso “de alma à alma”. O filósofo argentino comenta um episódio em que Agostinho expressa seu temor por ter sentido certo gozo diante da dor do outro, para depois alertar sobre o transbordamento emocional que se produz quando não estamos “curados” de nossas paixões. Se o gozo perdido do outro pode originar um gozo próprio (conceda o ligeiro deslocamento terminológico), a operação “curativa” será aquela capaz de separá-los: se antes o sofrimento do outro estava ligado a um obstáculo ante sua condição desejante e, portanto, a comiseração corria o risco de reavivar o desejo, quer dizer, acompanhar o outro na possibilidade de evitar o que lhe é obstáculo; com Agostinho (ou pelo menos, no argumento de Rozitchner), a misericórdia terá por objeto o gozo “equivocado” do outro, esse que se produz quando o outro em questão desfruta ao fazer mal a alguém: neste caso, está em causa o perdão abstrato a um personagem considerado nefasto. Mas também se comisera a dor do outro por deserção, porém nunca enquanto agente de fruição, corpo vivo, projeto impedido por uma força opressora… Rozitchner ironiza em primeira pessoa: “Necessito, para ser verdadeiramente misericordioso, estar a mil léguas do outro sofredor, cortar toda semelhança a fim de anular qualquer sentimento libidinal que possa aparecer entre meu corpo e o seu. O outro, quanto mais vivo, imaginativo, gozoso e dolorosamente vivo, tanto mais compromete o meu próprio gozo sensual reprimido ao compadecer-lhe.” [5] Assim, o “dolorismo cristiano” alcança o máximo de afastamento entre os corpos justamente quando se pretende íntimo em seu sentimento. Distância gélida, a respeito da realidade sensível do outro que sofre, e desconhecimento das causas materiais do sofrimento dele. Não que seja alguma coisa que tenhamos a ver…

As implicações coletivas, o seu caráter conflitivo, as contradições da ordem vigente, a rebeldia e a indocilidade têm, segundo Rozitchner, uma âncora histórica: “É a transformação eclesiástica paulina que reescreve a história no Novo testamento e transforma o enfrentamento político, social e coletivo, que haviam mantido os judeus antes de ser exterminados pelo Império Romano; e que converte uma rebelião coletiva numa solução religiosa, individual e subjetiva, depois se transformando no esquema maior da submissão.”[6]

O recurso à “alma” e a menção ao “corpo do menino” absorvido na primeira pessoa (“me doía o corpo do menino”) percorrem o eixo material do problema e fazem sobressair o plano abstrato, de onde todos podem pronunciar-se e coincidir com ele, sem questionar-se minimamente sobre os princípios materiais de funcionamento implicados nos linchamentos, e muito menos a respeito das consequências de seus enunciados. Palavras que patinam sobre a abstração como numa pista de gelo, sem passado nem futuro, porque o que permanece congelado é o tempo histórico, o tempo que honra e putrefaz os  corpos, que torna irreversíveis seus atos e necessários seus questionamentos.

A misericórdia parece eximir o papa, — que com sua potência comunicativa propõe massivamente a mesma eximição aos fieis e seguidores virtuais e midiáticos, — de deter-se no que é o mais concreto, quer dizer, nas tramas que o dispositivo “linchamento” oferece (discursivas, históricas, anímicas, libidinais, institucionais etc). Como no interrogatório do sequestro dos padres Jalics e Yorio, fica habilitada a possibilidade impune de não termos que dar os nomes, de não termos que arriscar algum nome do real. Se é fundamental nomear as vítimas dos linchamentos, tanto o assassinado quanto os feridos, também resulta urgente conhecer os nomes dos linchadores e tentar estabelecer a sua responsabilidade com precisão, de maneira pública e aberta. Porque aquele que se aventura no roubo sabe que algum tipo de represália pode tocá-lo: tiros, prisão e, em última instância, linchamentos. É parte de seu desafio, é uma aposta de custo alto e bastante concreto. Mas qual pode ser a consequência comprometedora que haveria de afrontar a igreja ou qualquer bom cristão linchador, mediante o perdão ou a misericórdia?

Deus como patrão abstrato do equivalente geral das almas. Não é necessária uma trajetória cristã para se ver atravessado por essa racionalidade suportada na aceitação da distribuição das forças tal qual está dada. Basta o prolongamento da matriz subjetiva cristã nas relações capitalistas, para assim substituir o fundamento sensível que nos lança à vida subjetiva, pela lei do sacrifício vestida de moralidade, encarnada numa boa vontade individual e protegida por um princípio de autoridade devidamente interiorizado. Rozitchner insiste na figura da mãe, além de todo psicologismo, porque interessa a ele nomear o “a priori afetivo e material de toda relação humana” [7]. Esse é seu materialismo, que hoje reivindicamos como chave de leitura do que nos acontece.

Se “o corpo da Virgem Maria é a primeira máquina social abstrata, produtora de corpos atraídos pela morte” [8], o corpo do menino, transformado em moleque-vagabundo, é abstrato na hora de comover-nos, porque a materialidade do linchamento não assume um lugar prioritário no gesto misericordioso; inclusive, nos discursos linchadores, ela aparece como um mero acessório, parte de um tipo de visão de mundo. Dos chutes concretos contra um corpo caído no chão, do assassino linchador que vive nas nuvens de suas preocupações — ainda esmagado pelo metrô ou no ônibus — à pancada da alma, forma abstrata midiático-religiosa que defere ao papa a redenção de todos por igual: a coincidência da própria carne formada com o divino ser eterno, ou com a lei abstrata do capital, supõe em ambos os casos um desastre subjetivo. Para Rozitchner, o drama histórico da substituição do mais íntimo, a sensibilidade materna ou a doação corporal da natureza, pela abstração de um padre idealizado Deus desloca, não sem uma luta permanente, o espaço de sentido em que justificamos as nossas vidas. Inclina-se dessa maneira a instalar-se o  juízo bom desde uma racionalidade calculadora e obediente, como ponto de vista do sentido comum. Algo da eternidade abstrata é transferida ao corpo como culpa concreta. Nascemos pecadores ou devedores. E se somos pecadores de nascença… por que tanto alarde por umas pancadinhas de castigo contra quem se comportou mal?

O papa não se contenta com a redenção express e insinua um interesse sociológico: “Esse menino o fizemos nós próprios…”. Novamente, o ponto de vista do juízo bom se impõe: evidentemente, o papa não fala desde um emaranhado enunciativo corporal, nem desde um comum sensível que inclua “este menino”. Por outro lado, quem é o “nós” a que ele se refere? Não se pergunta pelos assassinos concretos no caso pontual referido: quem os fez tão covardes e impunes? perguntaríamos nós. Imediatamente, o papa reforça o esquema: “Chorar pelo menino delinquente, chorar também por nós”, um nós que retorna, seletivo, e distingue dois tipos de seres. É a própria norma, o bem confundido com um grupo social. “Gente de bem” (como dizem alguns dos comentários nas redes, comemorando os linchamentos) e “garoto delinquente” (a versão politicamente correta de “moleque-vagabundo”, “negro de merda” etc). O que reúne os linchadores como passageiros ou transeuntes, como vizinhos ou trabalhadores, como cristãos, é o gozo de estar na vereda correta. Essa posição reproduzida por um papa que enxerga com as mesmas categorias que os apreciadores dos linchamentos, dá a eles consistência, com o que se fecha o círculo do sacrifício, lhe conferindo algo de sentido, à tarefa cotidiana de “se arrebentar todo”, esse sentido da vida que, segundo o humor, soa à reivindicação ou à resignação. O convencimento de que “se arrebentar todo” seja a única opção é a fonte de energia assassina que, também, em grupo, se torna capaz de liberar. Não há, nessa maneira de distribuir aos outros e a nós, uma experiência real do outro. A realidade se cifra, então, em dois tempos: uma percepção que elucida a ameaça no momento de maior tensão, primeiro, e prepara a misericórdia durante a distensão impune, segundo.

A Igreja, primeiro meio de comunicação, a televisão, último meio de evangelização. A fusão final nos converte todos em nanicos preconceituosos, seguros de sua posição miserável no mundo, onde desconfiamos a torto e a direito dos outros. A opinião é já juízo, a favor ou contra, culpável ou inocente, bom ou mal, sempre desde fora [9].

Há um tempo se chegou a opinar que a igreja católica vivia alienada da realidade, por sinal, os jornalistas vinham animando-se em publicar casos numerosos de pedofilia e não se necessitava de uma trajetória anticlerical para brandir críticas contundentes. Hoje, o consenso sobre a virada da igreja a partir da eleição de Bergoglio como papa é tão esmagador que, até o pai do assassinado David Moreyra suspira de alívio graças que o papa “respondeu” ao seu chamado. Parece que se o problema do par legitimidade/legalidade que toca às instituições forjou como gesto histórico a renúncia de Ratzinger — como sustenta Agamben [10]–, a invenção de Francisco reverte drasticamente a situação desde o ponto de vista da imagem, mas nos deixa incertos na hora de perguntarmos ao que exatamente poderíamos chamar de espiritualidade ou legitimidade. O atual papa parece inquestionável, é a música bem sucedida de vários canais de televisão e a fonte de consulta dos temas os mais variados. Demasiado próximo de realizar a onipresença divina, essa que não poucos, por consciência ou indiferença, haviam conseguido expulsar de seus corpos. É o coquetel subjetivo de nosso tempo e não exclui, senão o supõe e o assimila, o linchamento como parte de um teatro convertido numa tragédia limpa: o delinquente, o vizinho cansado de ser roubado, os noticiários e os funcionários que completam o arco opinativo desde o mais reacionário até a mais impudica correção política e, como coroação dessa cena das cenas: o papa Francisco, argentino, peronista, voz oficial do bom sentido, que vem habilitar o perdão para todos e todas, cristãos e não cristãos, crentes, de todas maneiras, na imagem papal.

O corpo místico, burocrático e racional da Igreja forma sinergia com o calhamaço emotivo de um papa comunicacional. Racionalidade da lei e sentimentalismo comunicativo se dão em torno de um conservadorismo popular que banha a região com perspectivas de médio e longo prazo. Uma operação que interpela ao próprio eclesiástico, tal como a renúncia de Ratzinger sucedeu, por meio de uma estruturação sensível que pode recodificar o campo do conflito nos anos vindouros.

2. Fuenteovejuna.


A citação do papa merece uma atenção particular, não necessariamente a partir da pesquisa erudita. Mas, sim, desde o interesse que qualquer um poderia encontrar em valer-se de elementos históricos para dirimir algum sentido em nosso presente, a partir da evocação de uma obra clássica. Sobretudo, levando em conta que alguns meios internacionais reproduziram acriticamente o exemplo dado pelo papa.

O caso teatralizado por Lope de Vega em sua Fuenteovejuna (publicada em 1618), data de 1476, ano em que teve lugar a revolta da vila de Fuenteovejuna. A rebelião dos habitantes daquele lugar é caracterizada por distintas fontes como uma resposta popular ante os abusos de autoridade do comendador da Ordem da Calatrava, Fernán Gómez de Guzmán, finalmente justiçado [11]. Apenas a crônica de Alonso Palencia, contemporâneo e afim do comendador, relativiza a sua atuação e aponta para outro tipo de circunstâncias como deflagradores de fato. É certo que, desde as disputas entre personagens poderosos dos territórios, desde as lutas interreligiosas, passando pelas dificuldades de quem se encontrava em posição desvantajosa, vão se formando as condições históricas para explicar a questão. O conflito bélico enfrentado pelos Reis Católicos com Juana Beltraneja e as idas e vindas às cidades e vilas de seus avatares jurisdicionais configuram o pano de fundo. Depois da revolta, a cidade de Córdoba anexou Fuenteovejuna — até então pertencente à Calatrava — esta jurisdição e os Reis Católicos capitalizaram a situação.

Mas que é um contexto sem um instante selvagem? A obra de Lope trata, justamente, do instante em que o próprio princípio de autoridade entra em crise. O justiçamento coletivo se leva adiante depois de uma deliberação intensa dos colonizadores e é continuado como coro ante o inquérito ordenado pelos reis depois de sua consumação: quando perguntam a eles pelo responsável pelo assassinato de Guzmán, a resposta é unânime: “Fuenteovejuna, señor”. O regime monárquico se mantém e, de fato, os reis contam com poder de fogo capaz de controlar uma pequena vila como Fuenteovejuna, mas a rebelião marca o território dentro das possibilidades reais de sua força. Isto é, passa do domínio imaginário do princípio de autoridade que os submetia, a uma relação à medida de suas condições reais de produção e convivência. Nesse sentido, Fuenteovejuna é uma obra de teatro, um texto literário, um registro histórico e jornalístico, um pouco de tudo isso, organizada no calor de uma instância profundamente política, quando foi colocado para agir e levado a seu limite o problema da vida em comum, mediante a alteração de uma forma de hierarquização em nascimento, que punha os vilões (habitantes das vilas) à margem das decisões. Despojados de bens e razões, desprestigiados por sua existência simples, a eles chamavam “vilões” [12].

A gota que transborda o copo da história em questão foi o sequestro de Laurencia e Frondoso, os prometidos que experimentaram desafiar o comendador. Fuenteovejuna inteira formou uma assembleia para tomar o assunto em suas próprias mãos. Juan Rojo, um lavrador, tio de Laurencia, pergunta retoricamente: “Que queres tu que o povo tente”, ao que Regidor responde já sem tom retórico: “Morrer ou matar os tiranos, pois somos muitos, e eles pouca gente”. Juan se entusiasma: “As casas e vinhas nos abrasam; são tiranos. À vingança, vamos! [13] “O momento mais intenso da obra parece ser a exortação da Laurencia recém-liberada aos homens em assembleia. Ela não somente trata o povo inteiro de rebanho manso, submisso até em seu próprio nome — “Fuente Ovejuna”, ressalta o autor —, como também manifesta a sua decisão irreversível de pegar em armas invocando a figura mítica das mulheres guerreiras: “e eu me amotino em meio aos homens, que fique sem mulheres esta vila honrada, e retorne aquele século de amazonas, eterno espanto do orbe.” [14] Se o honrado não remove o valente, o desenfreio não nega certa consciência das próprias razões. Ao passar, com estratégia, se jactam os vilões de dar vivas ao rei, a quem de todo modo não poderiam ter enfrentado. Mas na hora de organizarem-se não repetem para dentro a ordem vigente e as relações hierárquicas que padecem fora: “Nomeemos um capitão”, diz Pascuala; “Isso não!”, responde enérgica Laurencia; “Por quê?” (Pascuala), “Porque onde assiste o meu grande valor, não há Cides nem Rodamontes.” (Laurencia)

O justiçamento de Fuenteovejuna não é um linchamento, é parte de uma trama bem diferente da nossa. Aparece como a consumação de uma insurreição coletiva surgida da aposta em comum de quem se sabe “muitos” e, já não mais dispostos a tolerar a dominação dos “poucos”, questionam um modo de relação e assumem as consequências de sua ação. Os linchamentos de rua e midiático-virtuais de nosso contexto parecem inverter essa relação dos “muitos” e “poucos”. Desta vez, muita televisão e redes sociais e pouca literatura. Agora são “muitos” os trabalhadores honestos, vizinhos de bem e obedientes, enquanto que são excepcionais os ladrões, perturbadores e ruidosos frente à continuidade sem poréns das rotinas cotidianas. Novamente, “muitos” não define necessariamente uma quantidade, senão uma forma de relação, desta vez, considerada a própria normalidade (a tirania da normalidade) ante esses “poucos” indóceis que, no cume das inversões, se multiplicam na rua, nas telas e na fofoca dos vizinhos. São demasiados os “poucos” e isso os faz reagir aos “muitos”. Dizer que há muitos roubos apesar de que a maioria esteja formada por uma cidadania honesta e pacífica — disposta a cantar o hino a cada vez que acontece algo que não goste — pode resultar tranquilizador, ainda que esse argumento rupestre difundido por quase “todos” nos deixe sem a menor das condições necessárias para tentar explicar o intranquilizante: os linchamentos.

De modo que, reinterpretar o justiçamento de Fuenteovejuna à luz dos linchamentos atuais não é um gesto menor. Os rebeldes de ontem aparecem na insinuação do papa, no lugar dos obedientes de hoje. A ruptura com a tirania da época é permutada pelo reforço da autoridade hoje vigorante. A valentia dos vilões espanhóis é atraída no lugar da covardia de nossos linchadores. É um e mesmo povo, esse que sempre tem razão, e que se nos oferece como ator principal de relatos históricos tão heterogêneos. Fuenteovejuna tem o valor de apresentar um processo singular a partir do que esse coletivo de vilões se torna povo ao sublevar-se, isto é, não se curvando a valores prévios — nem muito menos eternos —, senão inventando um porvir.

A redistribuição da cena de Fuenteovejuna que o papa propôs sem explicar-se chama a atenção pelo forçamento que supõe no interior de uma “simples” declaração midiática. Não reescreveu a peça de Lope de Vega, nem ensaiou a sua própria, o papa permutou a literatura de livro, historiografia teatral, por uma frase midiática, virtual e global. Será essa, finalmente, a sua arte mais consolidada? Como colocará no tabuleiro errático das forças sociais os desapreciados de sempre, os linchados de amanhã que fervilham como imagem nas cabeças meio curvadas do transeunte de hoje? Que porção de seu slogan “hagan lío” [façam bagunça] corresponderá aos vilões-favelados que ousam ocupar cenas que lhe são negadas? Um leitor qualquer não muda de lugar as máscaras da história, à vista de todos, e mantém a própria limpa de culpa e carga e lista, até a sua próxima operação.

Ariel Pennisi

Tradutor: Bruno Cava



NOTAS

[1] No momento do sequestro, ambos dependiam de Bergoglio, que desempenhava como autoridade da região, pela Companhia de Jesus.

[2] Ao consumar-se a ditadura militar, os integrantes de uma Guardia de Hierro [Guarda de Ferro] autodissolvida depois da morte  de Perón, em que militava Bergoglio, asseguram a sua relação com a Marinha, encabeçada por Emilio Massera — que havia sido nomeado pelo próprio Perón. Segundo Alejandro Terruella, autor de Guardia de Hierro. De Perón a Kirchner, em 1977 o capitão de Marinha Carlos Bruzzone funciona de fato como chefe do grupo. O mesmo ano em que a Universidade de Salvador, sob a égide da Companhia de Jesus conduzida por Bergoglio, outorgou a Massera o título de honoris causa.

[3] Recomendamos, para seguir a linha deste raciocínio, a série que se arma com os seguintes livros, entre outros: Sucesos argentinos (Ignacio Lewkowicz & compañía); Pensar sin Estado (Ignacio Lewkowicz); Pedagogía del aburrido (Cristina Corea, Ignacio Lewkowicz); El Estado posnacional (Pablo Hupert).

[4] David tinha 18 anos e era o mais velho de três irmãos. Trabalhava como peão de obra e não tinha antecedentes penais. A mãe declarou: “Jamais imaginei vê-lo assim… meu marido o reconheceu por uma tatuagem que fez no tornozelo quando completou 18 anos, com as iniciais de seus irmãos. E assim, foi embora de mim um anjo, da pior maneira, um menino a quem encantava ajudar a todos, conhecidos ou não. Não sabia dizer não e se via alguém sem calçados, era capaz de dar-lhes os seus… por isso, optei por doar seus órgãos: para que siga ajudando… a sete pessoas na lista de espera. Pois ele queria assim.”

[5] Rozitchner L. La Cosa y la Cruz. Cristianismo y capitalismo (en torno a las Confesiones de san Agustín). Buenos Aires: Losada, 1997. (p. 127)

[6] Rozitchner L. Op. cit., p. 51.

[7] Rozitchner L. Op. cit., p. 141.

[8] Rozitchner L. Op. cit., p. 12.

[9] Num quadro do programa humorístico Cha Cha Cha, faz cerca de 20 anos, Alfredo Casero, como condutor de “Julguemos aos outros”, depois da exposição de um caso entre ridículo e traumático, chama a sua audiência para julgar a convidada do dia. Remata: “E isto nunca vai acontecer a vocês” (http://www.youtube.com/watch?v=QA8qDQagnIA)

[10] Agamben G. El misterio del mal. Benedicto XVI y el fin de los tiempos. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2013. Agamben abre outra discussão que aporta outra chave para tentar pensar, ainda na extrema proximidade temporal com que se nos apresenta, a figura de Francisco.

[11] De fato, o termo “linchamento” não é pertinente para o exemplo de Fuenteovejuna, já que sua genealogia remete aos Estados Unidos de meados do século 18 (Charles Lynch) e se define por uma situação de guerra civil primeiro e, finalmente, por um momento histórico prolongado de estigmatização e perseguição de uma minoria.

[12] Não podemos evitar a tentação de pensar na cristalização estigmatizante de que foi objeto a palavra “vilão” em nosso tempo, ainda que caiba cautela ante a possibilidade de uma transposição apressada.

[13] Lope de Vega, Fuenteovejuna; Buenos Aires: Gradifco, 2010. (pp. 87-88)

[14] Op. cit., p. 90.

Fonte: Uninômade Brasil

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