PICICA: "Pesa sobre Clint Eastwood um
equívoco virtualmente insolúvel. Como ele é um cidadão declaradamente
conservador (chegou a ser prefeito de Carmel, na Califórnia, pelo
Partido Republicano), seus filmes são vistos – ou antes, não vistos –
por muita gente como expressão do reacionarismo norte-americano, com
tudo o que isso implica: direitismo político, militarismo, machismo,
carolice.
Esse silogismo rasteiro funciona principalmente diante de obras que
tratam de temas ideologicamente controversos, como a biografia de J.
Edgar Hoover ou, no atual Sniper americano, a trajetória
militar do atirador de elite Chris Kyle (Bradley Cooper), sagrado herói
nacional depois de matar 160 pessoas no Iraque durante a intervenção
americana.
Felizmente, Sniper é muito mais sutil e perspicaz que seus
“críticos automáticos”. Quem acompanha a carreira de realizador de Clint
Eastwood sabe que, pelo menos desde Os imperdoáveis (1992),
ele vem problematizando certos valores centrais da cultura americana e,
em particular, a figura do herói justiceiro. Seu novo filme é um passo
adiante nesse processo."
Sniper, Velho Oeste no Oriente Médio
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 20.02.2015
Pesa sobre Clint Eastwood um
equívoco virtualmente insolúvel. Como ele é um cidadão declaradamente
conservador (chegou a ser prefeito de Carmel, na Califórnia, pelo
Partido Republicano), seus filmes são vistos – ou antes, não vistos –
por muita gente como expressão do reacionarismo norte-americano, com
tudo o que isso implica: direitismo político, militarismo, machismo,
carolice.
Esse silogismo rasteiro funciona principalmente diante de obras que tratam de temas ideologicamente controversos, como a biografia de J. Edgar Hoover ou, no atual Sniper americano, a trajetória militar do atirador de elite Chris Kyle (Bradley Cooper), sagrado herói nacional depois de matar 160 pessoas no Iraque durante a intervenção americana.
Felizmente, Sniper é muito mais sutil e perspicaz que seus “críticos automáticos”. Quem acompanha a carreira de realizador de Clint Eastwood sabe que, pelo menos desde Os imperdoáveis (1992), ele vem problematizando certos valores centrais da cultura americana e, em particular, a figura do herói justiceiro. Seu novo filme é um passo adiante nesse processo.
Protótipo do herói
De certa maneira, Sniper dialoga subterraneamente com o próprio Os imperdoáveis. Pode ser descrito como um faroeste urbano no Iraque. (Não por acaso, a certa altura do filme, ao chegar a uma cidade iraquiana particularmente conturbada, um soldado diz: “Aqui é o Velho Oeste do Oriente Médio”.) Nesta leitura, Chris Kyle seria um legítimo herdeiro ou avatar de Bill Munny, o pistoleiro condenado a matar “tudo o que anda ou rasteja” no western de 1992.
Na narrativa de Eastwood, Kyle é o protótipo do herói americano forjado na saga da conquista do Oeste: forte, corajoso, altruísta, temente a Deus, reto, íntegro. Íntegro como uma mula, na verdade. Uma espécie de autômato ou zumbi, cumprindo a missão para a qual foi programado desde a infância, desde o primeiro tiro de rifle disparado no primeiro animal, sob a supervisão severa e protetora do pai (numa das cenas iniciais do filme).
O Kyle de Sniper carrega nas costas, sem se dar conta, toda uma mitologia. Nascido no coração do Texas, queria ser um caubói, mas não há mais lugar para os caubóis, a não ser nos rodeios, e ele acaba se colocando a serviço da “defesa da pátria” contra os inimigos externos. “Defendo meu país porque é o melhor lugar do mundo”, diz ele, quando ainda não tinha sequer saído do Texas e mal sabia da existência de outros países.
A grandeza do filme de Eastwood está em mostrar a continuidade entre o culto da virilidade, a leitura moralista e normativa da Bíblia, a vocação expansionista – enfim, tudo o que caracteriza o mito do Oeste – e as apocalípticas intervenções norte-americanas atuais.
Da cavalaria à máquina de guerra
Todo o problema de Chris Kyle é encarnar o herói magnânimo e voluntarioso num contexto em que a luta entre mocinhos e bandidos complicou-se enormemente e a cavalaria transformou-se em gigantesca máquina de guerra. Neste sentido, as primeiras imagens são eloquentes: um tanque americano visto de muito perto, com todas as suas mortíferas engrenagens em ação.
Sem entender onde estão e menos ainda o que fazem ali, Kyle e seus companheiros continuam a utilizar a linguagem antiga: chamam indistintamente os iraquianos de “selvagens” e os combatentes inimigos de “bad guys”. Eastwood enfatiza o paralelo ao filmar o avanço dos comboios militares como incursão de carruagens em território indígena, e os confrontos de rua como tiroteios entre os aliados do xerife e a gangue dos malfeitores escondidos em becos e telhados.
Não falta nem mesmo o duelo final entre o mocinho e o bandido-mor, o exímio atirador Mustafa (Sammy Sheik), que o filme apresenta como “campeão olímpico de tiro”, adicionando mais uma característica central da cultura americana, a competitividade.
Idiota rural
Mesmo depois da voltar da guerra, o protagonista – chamado de “A Lenda” pelos companheiros e pela mídia – segue sendo um idiota rural incapaz sequer de perceber que não passou incólume pela experiência de matar 160 pessoas. Sua tragédia pessoal é o descompasso entre a ideia que faz de si mesmo – um homem em paz com a consciência por ter “cumprido sua missão” – e a ruína humana em que se transformou. Por trás da aparente “saúde de vaca premiada”, para usar a expressão de Nelson Rodrigues, há um homem em frangalhos. É o que restou do mito do herói americano no mundo contemporâneo. O filme de Clint Eastwood não é um épico, mas um réquiem.
Esse silogismo rasteiro funciona principalmente diante de obras que tratam de temas ideologicamente controversos, como a biografia de J. Edgar Hoover ou, no atual Sniper americano, a trajetória militar do atirador de elite Chris Kyle (Bradley Cooper), sagrado herói nacional depois de matar 160 pessoas no Iraque durante a intervenção americana.
Felizmente, Sniper é muito mais sutil e perspicaz que seus “críticos automáticos”. Quem acompanha a carreira de realizador de Clint Eastwood sabe que, pelo menos desde Os imperdoáveis (1992), ele vem problematizando certos valores centrais da cultura americana e, em particular, a figura do herói justiceiro. Seu novo filme é um passo adiante nesse processo.
Protótipo do herói
De certa maneira, Sniper dialoga subterraneamente com o próprio Os imperdoáveis. Pode ser descrito como um faroeste urbano no Iraque. (Não por acaso, a certa altura do filme, ao chegar a uma cidade iraquiana particularmente conturbada, um soldado diz: “Aqui é o Velho Oeste do Oriente Médio”.) Nesta leitura, Chris Kyle seria um legítimo herdeiro ou avatar de Bill Munny, o pistoleiro condenado a matar “tudo o que anda ou rasteja” no western de 1992.
Na narrativa de Eastwood, Kyle é o protótipo do herói americano forjado na saga da conquista do Oeste: forte, corajoso, altruísta, temente a Deus, reto, íntegro. Íntegro como uma mula, na verdade. Uma espécie de autômato ou zumbi, cumprindo a missão para a qual foi programado desde a infância, desde o primeiro tiro de rifle disparado no primeiro animal, sob a supervisão severa e protetora do pai (numa das cenas iniciais do filme).
O Kyle de Sniper carrega nas costas, sem se dar conta, toda uma mitologia. Nascido no coração do Texas, queria ser um caubói, mas não há mais lugar para os caubóis, a não ser nos rodeios, e ele acaba se colocando a serviço da “defesa da pátria” contra os inimigos externos. “Defendo meu país porque é o melhor lugar do mundo”, diz ele, quando ainda não tinha sequer saído do Texas e mal sabia da existência de outros países.
A grandeza do filme de Eastwood está em mostrar a continuidade entre o culto da virilidade, a leitura moralista e normativa da Bíblia, a vocação expansionista – enfim, tudo o que caracteriza o mito do Oeste – e as apocalípticas intervenções norte-americanas atuais.
Da cavalaria à máquina de guerra
Todo o problema de Chris Kyle é encarnar o herói magnânimo e voluntarioso num contexto em que a luta entre mocinhos e bandidos complicou-se enormemente e a cavalaria transformou-se em gigantesca máquina de guerra. Neste sentido, as primeiras imagens são eloquentes: um tanque americano visto de muito perto, com todas as suas mortíferas engrenagens em ação.
Sem entender onde estão e menos ainda o que fazem ali, Kyle e seus companheiros continuam a utilizar a linguagem antiga: chamam indistintamente os iraquianos de “selvagens” e os combatentes inimigos de “bad guys”. Eastwood enfatiza o paralelo ao filmar o avanço dos comboios militares como incursão de carruagens em território indígena, e os confrontos de rua como tiroteios entre os aliados do xerife e a gangue dos malfeitores escondidos em becos e telhados.
Não falta nem mesmo o duelo final entre o mocinho e o bandido-mor, o exímio atirador Mustafa (Sammy Sheik), que o filme apresenta como “campeão olímpico de tiro”, adicionando mais uma característica central da cultura americana, a competitividade.
Idiota rural
Mesmo depois da voltar da guerra, o protagonista – chamado de “A Lenda” pelos companheiros e pela mídia – segue sendo um idiota rural incapaz sequer de perceber que não passou incólume pela experiência de matar 160 pessoas. Sua tragédia pessoal é o descompasso entre a ideia que faz de si mesmo – um homem em paz com a consciência por ter “cumprido sua missão” – e a ruína humana em que se transformou. Por trás da aparente “saúde de vaca premiada”, para usar a expressão de Nelson Rodrigues, há um homem em frangalhos. É o que restou do mito do herói americano no mundo contemporâneo. O filme de Clint Eastwood não é um épico, mas um réquiem.
José Geraldo Couto
Fonte: Blog do IMS
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