PICICA: "A medida é
uma das maneiras de colocar as coisas à nossa disposição. Elas não são
problemáticas em si mesmas. O que devemos questionar é o uso destas
medidas, pois não sabemos ao certo a quê (ou a quem) elas servem. O
relógio e o calendário, tal como os conhecemos na grande cidade, estão
fundamentalmente a serviço do capital, aí reside o problema. Não há uma
só alma que tenha uma boa relação com o relógio, isto porque o uso que
fazemos dele é autoritário. Já o calendário prevê nossas misérias, ele é
misericordioso e nos presenteia com os fins de semana e feriados,
enquanto nos obriga a ser úteis nos outros dias. Pensemos seriamente por
um momento: estes instrumentos estão a nosso serviço ou nós estamos a
serviço deles?"
Ditadura do Tempo
Que é esta vida senão um moto perpetuo?
É possível questionar o caráter transitório do momento? Acontecemos no
tempo, não há dúvida. Somos, pois, seres do tempo, criações espontâneas
de um movimento contínuo. Sendo assim, importa-nos refletir sobre o
emprego deste tempo, que compartilha conosco um pouco de sua grandeza.
Fato é que o tempo nos excede, mas nos concede a lisonja de nos usarmos
dele. “O relógio é o novo senhor!” bradou alguém em algum momento. Este
texto pretende-se um grito de resposta, algo como: “Para o inferno com
tais máquinas!”. É muito interessante para alguém que carreguemos nos
bolsos o horário exato, será interessante para nós mesmos?
A medida é
uma das maneiras de colocar as coisas à nossa disposição. Elas não são
problemáticas em si mesmas. O que devemos questionar é o uso destas
medidas, pois não sabemos ao certo a quê (ou a quem) elas servem. O
relógio e o calendário, tal como os conhecemos na grande cidade, estão
fundamentalmente a serviço do capital, aí reside o problema. Não há uma
só alma que tenha uma boa relação com o relógio, isto porque o uso que
fazemos dele é autoritário. Já o calendário prevê nossas misérias, ele é
misericordioso e nos presenteia com os fins de semana e feriados,
enquanto nos obriga a ser úteis nos outros dias. Pensemos seriamente por
um momento: estes instrumentos estão a nosso serviço ou nós estamos a
serviço deles?
A resposta é obvia: estamos submissos a
eles, assim como estamos submissos à lógica perversa do mercado atual. O
que regulamenta o uso do relógio é o quanto de valor monetário nós
somos capazes de produzir, é o nosso devir-máquina, isto é, a exploração
da capacidade que o homem tem de repetir-se reproduzindo até a exaustão
alguma utilidade social. Eis o sonho capitalista: uma sociedade de
máquinas reproduzindo com regularidade cronométrica seus
serviços e bens de consumo. Esta mensura absoluta permitiria calcular
tudo com exatidão, o que é fundamental para o conservador, pois a
previsão do futuro serve justamente a ele, que quer se conservar e não
ao que quer se transformar.
Não nos interessa ser máquina. Não nos
interessa ter o coração medido em batimentos por minuto. Não nos
interessa ter o corpo organizado para a repetição. Diria Marcuse que a
sociedade industrial nos produziu em série, todos iguais, e nós, como
extensão das máquinas, reproduzimos tudo da mesma forma. Ora, não nos
interessa a reprodução, mas a criação! Não queremos ter o sono, a fome, o
desejo regulados pelo relógio. Queremos o corpo como um território
livre de organização, como um espaço autônomo de criação de si mesmo.
Interessa-nos ser Sísifo na medida em que ele pode ser artista. Antes de
tudo, queremos enxergar a pertinência daquilo que produzimos. Para
isso, não há outra opção senão entrar em combate, pois aquilo que
queremos não parece interessar aos homens deste mundo: a intensidade não
tem valor monetário.
Nesta batalha contra o tempo como
relógio, devemos buscar outros prismas para enxergá-lo, pois se olharmos
para o tempo unicamente pelos instrumentos que temos para medi-lo,
acabaremos convencidos de que ele é a medida, ou seja, de que ele nada
mais é do que um ciclo de 24 horas que se repete indefinidamente. O
relógio não nos diz muito além disso. O que pode nos mostrar outra
maneira de se relacionar com o tempo? Lewis Carrol costumava dizer que a
arte funciona como uma máquina de “esticar tempo e movimento”.
Colocando em poucas palavras: desejamos brincar com o tempo e não lutar
contra ele. O devir-criança nos interessa mais do que o devir-máquina.
Pensemos na música. Que é ela senão a
arte de construir novas durações? Nos limites da melodia, os segundos
são desprezados. O tempo da música se sobrepõe ao tempo do relógio e
cria uma nova consciência de duração. “Ouvir uma melodia é ouvir, ter
ouvido e estar prestes a ouvir, tudo ao mesmo tempo. Toda melodia nos
declara que o passado pode estar aqui sem ser lembrado, e o futuro sem
ser previsto” diz Victor Zuckerkandl. Qualquer experiência que se
fundamente no estético, na criação portanto, não terá no tempo do
relógio o alicerce de sua construção. O tempo entendido como Chronos é inútil do ponto de vista do artista, o que o interessa é o Kairos, o momento oportuno, o do acontecimento, o do encontro.
Ao tomar o tempo como o momento oportuno
da experiência, toda medida se torna trágica. Medir a intensidade da
experiência como uma grandeza comum acaba por desencantá-la. É como
querer contar ao Don Quixote que os gigantes eram na verdade moinhos de
vento. O que há de pior nesta vontade de mensura é a suposição de que
lidamos sempre com o esgotável, afinal não pode haver o infinito onde se
pretende saber a dimensão exata. Quando percebemos, estamos poupando
tempo. Que doença…
O jardineiro toma como referência o sol,
suas flores não se preocupam com os segundos. O monge toma como
referência a própria respiração, sua meditação tem períodos definidos
pelos pulmões. O pintor toma como referência a própria inspiração, seus
quadros não se importam de nascer aos fins de semana. O ritmo da
civilização ignora, atropela, dilacera todos estes andamentos paralelos e
impõe um ritmo marcado por combustões a diesel por sobre as vontades
particulares.
Projeto simples, mas nada fácil: colocar o
tempo a serviço do indivíduo. Um primeiro passo é desprezar os relógios
quando estes forem colocados acima de nós, mandá-los ao inferno como
sugerimos anteriormente. Buscar satisfazer as necessidades da melhor
maneira possível, isto é sobreviver; buscar o tempo dos artistas, o
momento oportuno, a potência em ato, isto é viver.
Fonte: Razão Inadequada
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