fevereiro 16, 2015

"Ditadura do Tempo", por Rafael Lauro

PICICA: "A medida é uma das maneiras de colocar as coisas à nossa disposição. Elas não são problemáticas em si mesmas. O que devemos questionar é o uso destas medidas, pois não sabemos ao certo a quê (ou a quem) elas servem. O relógio e o calendário, tal como os conhecemos na grande cidade, estão fundamentalmente a serviço do capital, aí reside o problema. Não há uma só alma que tenha uma boa relação com o relógio, isto porque o uso que fazemos dele é autoritário. Já o calendário prevê nossas misérias, ele é misericordioso e nos presenteia com os fins de semana e feriados, enquanto nos obriga a ser úteis nos outros dias. Pensemos seriamente por um momento: estes instrumentos estão a nosso serviço ou nós estamos a serviço deles?"

Ditadura do Tempo

 

Que é esta vida senão um moto perpetuo? É possível questionar o caráter transitório do momento? Acontecemos no tempo, não há dúvida. Somos, pois, seres do tempo, criações espontâneas de um movimento contínuo. Sendo assim, importa-nos refletir sobre o emprego deste tempo, que compartilha conosco um pouco de sua grandeza. Fato é que o tempo nos excede, mas nos concede a lisonja de nos usarmos dele. “O relógio é o novo senhor!” bradou alguém em algum momento. Este texto pretende-se um grito de resposta, algo como: “Para o inferno com tais máquinas!”. É muito interessante para alguém que carreguemos nos bolsos o horário exato, será interessante para nós mesmos?

A persistência da memória, Salvador Dali
A persistência da memória, Salvador Dali

A medida é uma das maneiras de colocar as coisas à nossa disposição. Elas não são problemáticas em si mesmas. O que devemos questionar é o uso destas medidas, pois não sabemos ao certo a quê (ou a quem) elas servem. O relógio e o calendário, tal como os conhecemos na grande cidade, estão fundamentalmente a serviço do capital, aí reside o problema. Não há uma só alma que tenha uma boa relação com o relógio, isto porque o uso que fazemos dele é autoritário. Já o calendário prevê nossas misérias, ele é misericordioso e nos presenteia com os fins de semana e feriados, enquanto nos obriga a ser úteis nos outros dias. Pensemos seriamente por um momento: estes instrumentos estão a nosso serviço ou nós estamos a serviço deles?


A resposta é obvia: estamos submissos a eles, assim como estamos submissos à lógica perversa do mercado atual. O que regulamenta o uso do relógio é o quanto de valor monetário nós somos capazes de produzir, é o nosso devir-máquina, isto é, a exploração da capacidade que o homem tem de repetir-se reproduzindo até a exaustão alguma utilidade social. Eis o sonho capitalista: uma sociedade de máquinas reproduzindo com regularidade cronométrica seus serviços e bens de consumo. Esta mensura absoluta permitiria calcular tudo com exatidão, o que é fundamental para o conservador, pois a previsão do futuro serve justamente a ele, que quer se conservar e não ao que quer se transformar.


Não nos interessa ser máquina. Não nos interessa ter o coração medido em batimentos por minuto. Não nos interessa ter o corpo organizado para a repetição. Diria Marcuse que a sociedade industrial nos produziu em série, todos iguais, e nós, como extensão das máquinas, reproduzimos tudo da mesma forma. Ora, não nos interessa a reprodução, mas a criação! Não queremos ter o sono, a fome, o desejo regulados pelo relógio. Queremos o corpo como um território livre de organização, como um espaço autônomo de criação de si mesmo. Interessa-nos ser Sísifo na medida em que ele pode ser artista. Antes de tudo, queremos enxergar a pertinência daquilo que produzimos. Para isso, não há outra opção senão entrar em combate, pois aquilo que queremos não parece interessar aos homens deste mundo: a intensidade não tem valor monetário.


Nesta batalha contra o tempo como relógio, devemos buscar outros prismas para enxergá-lo, pois se olharmos para o tempo unicamente pelos instrumentos que temos para medi-lo, acabaremos convencidos de que ele é a medida, ou seja, de que ele nada mais é do que um ciclo de 24 horas que se repete indefinidamente. O relógio não nos diz muito além disso. O que pode nos mostrar outra maneira de se relacionar com o tempo?  Lewis Carrol costumava dizer que a arte funciona como uma máquina de “esticar tempo e movimento”. Colocando em poucas palavras: desejamos brincar com o tempo e não lutar contra ele. O devir-criança nos interessa mais do que o devir-máquina.


Pensemos na música. Que é ela senão a arte de construir novas durações? Nos limites da melodia, os segundos são desprezados. O tempo da música se sobrepõe ao tempo do relógio e cria uma nova consciência de duração. “Ouvir uma melodia é ouvir, ter ouvido e estar prestes a ouvir, tudo ao mesmo tempo. Toda melodia nos declara que o passado pode estar aqui sem ser lembrado, e o futuro sem ser previsto” diz Victor Zuckerkandl. Qualquer experiência que se fundamente no estético, na criação portanto, não terá no tempo do relógio o alicerce de sua construção. O tempo entendido como Chronos é inútil do ponto de vista do artista, o que o interessa é o Kairos, o momento oportuno, o do acontecimento, o do encontro.


Ao tomar o tempo como o momento oportuno da experiência, toda medida se torna trágica. Medir a intensidade da experiência como uma grandeza comum acaba por desencantá-la. É como querer contar ao Don Quixote que os gigantes eram na verdade moinhos de vento.  O que há de pior nesta vontade de mensura é a suposição de que lidamos sempre com o esgotável, afinal não pode haver o infinito onde se pretende saber a dimensão exata. Quando percebemos, estamos poupando tempo. Que doença…

Don Quixote e os Moinhos de Vento, Salvador Dali
Don Quixote e os Moinhos de Vento, Salvador Dali

O jardineiro toma como referência o sol, suas flores não se preocupam com os segundos. O monge toma como referência a própria respiração, sua meditação tem períodos definidos pelos pulmões. O pintor toma como referência a própria inspiração, seus quadros não se importam de nascer aos fins de semana. O ritmo da civilização ignora, atropela, dilacera todos estes andamentos paralelos e impõe um ritmo marcado por combustões a diesel por sobre as vontades particulares.


Projeto simples, mas nada fácil: colocar o tempo a serviço do indivíduo. Um primeiro passo é desprezar os relógios quando estes forem colocados acima de nós, mandá-los ao inferno como sugerimos anteriormente. Buscar satisfazer as necessidades da melhor maneira possível, isto é sobreviver; buscar o tempo dos artistas, o momento oportuno, a potência em ato, isto é viver.

A desintegração da persistência da memória, Salvador Dali
A desintegração da persistência da memória, Salvador Dali

Fonte: Razão Inadequada

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