fevereiro 03, 2015

"“Sobre a exposição “Zona de Poesia Árida” Conversa de Véspera". Fabiane Borges e Élida Lima

PICICA: "Fabiane: Essa mostra Zona de Poesia Árida2, tal qual a Poéticas do Dissenso3 não parece ser a coisa mais tranquila do mundo. Trazer a arte política, ou a intervenção urbana pra dentro do contexto do museu, principalmente sendo ele o MAR, que tem um histórico de gentrificação e de remoção de pessoas durante sua construção, sempre provocou muitos questionamentos. Eu queria falar um pouco dessas críticas que fazem a nós, para podermos pensá-las, sem ignorá-las, muito menos nos defender delas, mas como tentativa de aprofundar esses questionamentos, essas críticas, pensar em nossa decisão, que implicações isso tem, qual o teor da nossa aposta." 

 Imagem: Ritos Baldios


“Sobre a exposição “Zona de Poesia Árida” Conversa de Véspera

Fabiane Borges e Élida Lima1

Agradecimento a Felício Sobral pelas contribuições


Fabiane: Essa mostra Zona de Poesia Árida2, tal qual a Poéticas do Dissenso3 não parece ser a coisa mais tranquila do mundo. Trazer a arte política, ou a intervenção urbana pra dentro do contexto do museu, principalmente sendo ele o MAR, que tem um histórico de gentrificação e de remoção de pessoas durante sua construção, sempre provocou muitos questionamentos. Eu queria falar um pouco dessas críticas que fazem a nós, para podermos pensá-las, sem ignorá-las, muito menos nos defender delas, mas como tentativa de aprofundar esses questionamentos, essas críticas, pensar em nossa decisão, que implicações isso tem, qual o teor da nossa aposta.


Élida: O árido não é o tranquilo. Quando se fala em arte política, imaginamos algo que precisa passar com ajuda de força, que requer uma atitude afirmativa, do que precisa implodir para construir, modificar em alguma escala. Esses grupos tem trabalhado com a escala micropolítica, subjetiva, sensível e tudo o mais o que aproxima a arte da transformação humana. Mas para ser ativista (palavra pouca, um pouco desbotada para o que esses grupos desejam inscrever no mundo), para ser ativista não é preciso ser triste. Os fascismos dos panfletos? O fascismo da militância, da mensagem? A mensagem nesse caso "deve" nunca deixar de ser pergunta. A pergunta não é tranquila.


Fabiane: E qual é a pergunta?


Élida: Cada leitor tem a sua pergunta no contato com cada obra. Cada obra suscita a sua pergunta, a pergunta do leitor. Não é uma pergunta. São várias. A obra procura saídas múltiplas. A pergunta não é tranquila porque se depara com o embate do desejo entre as amarras do mundo. O artista engajado do início do século faz as perguntas necessárias para conseguir existir em meio a tanta aridez e sufoco. E o leitor da obra de arte também procura  e talvez encontre  um espaço de respiro. A obra é o vírus multiplicador.


Fabiane: Eu lembro que uma das questões mais importantes dessa época retratada na mostra era a da urgência. Urgência do real era um conceito que usávamos muito. Essa urgência tinha a ver, no caso específico de São Paulo, com a perseguição absurda que estavam sofrendo os movimentos sociais. A expulsão dos sem tetos das ocupações, a criminalização dos movimentos, o cercamento das praças, a retirada dos moradores de rua das ruas, coisas que estão acontecendo até agora, mas que na época produzia formas de resistência nesses artistas e coletivos de arte que já estavam nas ruas, mas que aos poucos foram fazendo ações mais contundentes, ligadas as questões prementes da realidade como com o PCC (Primeiro Comando da Capital), com as ocupações como a Prestes Maia, que definitivamente foi o momento de maior encontro de todas essas urgências, devido o tamanho do prédio, a quantidade de gente envolvida, e o convite para a ocupação artística lá dentro. Desde o começo desses ajuntamentos, incluindo aqui o Mídia Tática Brasil (2003), o Arrivismo (2003), o Dissenso (2004), nunca houve consenso entre os grupos envolvidos, de modo que o terreno sempre foi árido e não consensual repetindo as características do terreno no qual atuavam. E com a entrada no museu, se evidencia mais o dissenso e a aridez. É o recorte de um processo de 15 anos de um grupo de amigos, companheiros de intervenções urbanas, artistas e coletivos de arte, que de certa forma qualifica um tempo, uma época, nomeia, sacraliza, determina algumas de suas dimensões.


Élida: Fecha em vez de abrir?


Fabiane: As críticas que eu ouço, que mais me inquietam são relativas a apropriação feita pelos artistas em cima dos movimentos sociais, ou em cima da pobreza (estética da miséria) ou ainda em cima dos outros artistas (não representados na exposição). Sendo que o material com que a gente lida é a sociedade, são os abismos sociais, e nossa crítica é de certa forma agressiva contra as instituições e aos circuitos de arte, parece ser uma incoerência tentar fazer isso congelar numa representação dentro de um museu. Estaríamos como que repetindo idiossincrasias de poder com essa conivência?


Élida: Os grupos "representados" por essa exposição não são miseráveis. Por vezes são pessoas expostas a situações de miséria. Essa causa não é de um grupo, é de um mundo, onde a produção das subjetividades do seu tempo faz avançar uma geração inteira. Sobre a conivência com os nãorepresentados, a arte, mesmo a política, não é o lugar de representação, não deve agir aí os interesses pelo reconhecimento, mas a produção de um dispositivo potente gerador de perguntas diversas.


Fabiane: Outra crítica que ouço muito é sobre os modos que representamos toda essa saga lá dentro. Uma arte sem linguagem de arte, uma arte de registro, que mostra o artista agindo mas não tem profundidade na linguagem estética em si mesmo, ou seja, ouço dizer que nossas exposições são panfletárias, óbvias, que são feitas mesmo para a rua e não para um museu.


Élida: Uma arte de linguagem extrema. Uma arte do extremo da linguagem. Uma arte das bordas da linguagem, que não precisa se apegar ao formato de museu para continuar criando. As transformações de conceitos, na arte política, são mais orgânicas e velozes do que as da instituição. E isso não é nada óbvio. Quando certas intervenções "se repetem", elas se repetem para gerar a sua exceção. Quando elas escorregam pelo mundo, queimam as pernas das regras. Aí é aquela conversa se pode-se chamar de registro certas peças dessa coleção, agora museológica. Pergunta para pensar esse dilema: de dentro do museu, ela continuará ativando a voz das ruas?


Fabiane: Eu gosto dessa sua ideia da continuidade, quando você fala que ela se repete para gerar sua exceção. Acho que o fato dela ser chamada de panfletária por alguns críticos de arte, não impede que tenha uma força simbólica de longo alcance. Me parece que o grande alcance é exatamente o fato de mostrar um certo fazer artístico que tira o artista de dentro do atelier lidando com as questões de sua própria estética, e em seu lugar mostra esses coletivos se organizando, fazendo coisas conjuntamente, utilizando o espaço das ruas para produzirem essas premências, dialogando incisivamente com o espaço público, numa época em que o público nos é tirado, onde a sociedade de controle e os projetos urbanistas nos privatizam cada vez mais. Talvez essas exposições sejam uma pequena mostra de um modo de existência da própria arte  - enquanto possibilidade.


Élida: A força simbólica das artes de rua é ainda maior do que das artes de regra. Arte de rua? Arte ativismo? Arte engajada? Arte como toda arte, fruto do combate do artista com o mundo para criar interferências na identidade do seu tempo. Ao criar interferências na identidade do seu tempo, o artista é extremamente simbólico, extremamente estético.


Fabiane: Isso é uma coisa que ficou claro para mim só depois de muito tempo, mas que confunde as pessoas até hoje. Desde o início da configuração desses coletivos, a questão da arte era explícita. Para além do ativismo político, do engajamento, da resistência, existia uma preocupação iminente de produzir as ações sempre relacionadas à estética e à história da arte. Não eram ativistas em seu termo específico, mas artistas que atuavam a partir de leituras e intervenções estéticas no espaço público, e isso implicava encontrar o que esse espaço público oferecia de mais terrível, mais injusto, mais relevante. Era e é um movimento de arte, não um movimento de base política partidária ou anarquista. Isso é importante de ser frisado para que não se confunda o ponto de vista, a perspectiva de onde se via todas aquelas chacinas, despejos, expulsões, etc.


Élida: Quando o museu compra essa coleção e a legitima, finalmente, como arte, ela continua engajada?


Fabiane: Pois é… O modo como o museu percebe isso, ou seja, o modo como a gente congela, como trata-se todo um modo de atuação horizontal, colaborativo de forma burocrática, com suas hierarquias, seus controles, impede qualquer tipo de ocupação no museu, ou algum vazamento (vazadores4) ou infiltração externa (abertura para o acompanhamento do processo ou auto-gestão, não temos abertura para os nossos  próprios modos de ação, nossos processos de produção, é dificultada a entrada dos próprios artistas na sala de montagem, como aconteceu comigo, operando, muitas vezes, por meio de constrangimentos, é no mínimo deflagrador. Quando olho para essa relação artista e museu, penso que não conseguimos transformar nenhuma estrutura, ao contrário, parece que nos estacionam, nos imprimem nas paredes de forma dura, nosso pequeno recorte de arte urbana de São Paulo, os representantes de uma geração bem maior do que a representada. Ou seja, no final das contas não conseguimos ainda produzir um trabalho de crítica institucional, fomos engolfados por uma máquina acostumada a tratar os artistas como se fizessem um favor a eles, não permitindo que suas salas, suas paredes, seus recursos sejam  utilizados para potencializar a mostra, como uma intervenção mesmo. A censura de trabalhos que não convém à instituição e suas estruturas cristalizadas, ainda não foram dissolvidas. Refiro-me como exemplo, à censura de um
4 Texto Vazadores - https://catahistorias.wordpress.com/2012/08/11/vazadores-os-ladroes-da-galeria/
trabalho meu (a Ópera da Cassandra), que por conter linguagem dada como erótica foi restringida. É o que eu sempre falo sobre a arte e a mendicância. O sistema da arte, o modo como ela é promovida é um modo de opressão, não dá para esquecer disso.


Élida: É importante, sim, lembrar os fascismos dos recortes, que essa amostra não é a arte política, não é a arte de rua, que essa arte sempre estará para fora, para adiante, que não deve jamais cristalizar-se ali, sob o julgo de certo recorte. A função do museu é, sim, preservar a memória, entendamos que é a preservação de uma parte da memória, assim como outros momentos em que essas obras aconteceram no mundo das mais abertas formas. As portas fechadas do museu são motivo de atenção. Claro que na negociação com a instituição, os artistas e propositores perdem muitas batalhas, onde processos se operam sem o espírito mesmo que criou essas produções, de coletividade e de encontro. Também, onde se ganha? Onde se fura o museu?


Fabiane: A arte é um dispositivo. Esse tipo de coisa aconteceu com vários grupos na história. Aconteceu com praticamente todos os movimentos de vanguarda. Os dadaístas pararam no museu, os surrealistas, os beatniks ficaram famosos e pararam nas grandes editoras, os happenings, as performances, os tropicalistas. De certa forma é esperado que aconteça essa aderência. O que sobra depois disso é acreditar ou não acreditar na força do dispositivo uma vez colocado lá dentro. Se encerramos nosso trabalho, enterrando-o no mausoléu branco, o que esperamos é que esses fantasmas atordoem as novas gerações e as impregnem de inspiração e desassossego. Essa é minha aposta pelo menos, eu não nego que houve sim uma espécie de traição, ao que não pode entrar no museu gentrificado, burocrático e hierárquico, mas a aposta é no produto que a gente colocou lá dentro.
 

Élida: Dentro e fora. Há trabalhos potentes que questionam as estruturas simbólicas do museu, do que é e do que pode vir a ser um museu. Um dos trabalhos especialmente impactantes é a bandeira da Frente 3 de Fevereiro na fachada do prédio antigo e tradicional na Praça Mauá com a pergunta gigantesca: Onde estãos os negros? Essa obra, aberta para a rua, rasgada para o porto, já começou a se mostrar um produto de desassossego. Desde o dia em que foi montada, houve alguém olhando para a bandeira e houve um outro, desassossegado, em busca de diálogo: O que é isso? O que quer dizer essa frase? Há moradores de rua que, sabendo que ali é um museu, o acusam de racista, transeuntes respondem "eu estou aqui!", carros de polícia que param para inquirir que negro é esse [será o Amarildo?!], garis que recitam Nietzsche, personagens tantas vezes invisíveis que, a partir do contato com a obra, entram nela e a ativam, a tiram da categoria de registro (o poema, uma vez feito por seu autor, é um registro de sua inspiração?) e a promovem à categoria de obra aberta, destinada para muito além das paredes da instituição. Outro trabalho que tem sido atualizado como símbolo de luta pelo transporte público no Brasil é o Programa para Descatracatização da Própria Vida, do grupo Contrafilé. Ainda atual também a luta por moradia, deflagrada por obras como a Ocupação Guapira, o vídeo em que tu começas a colocar as crianças dentro de caixas de mudança e levar para o caminhão por ocasião do despejo da ocupação Comunas Urbanas no Tucuruvi, mostrando que os móveis tinham para onde ir enquanto as crianças não. Obras como essa, furam, de certa forma, as práticas museológicas. Existe uma tentativa em ativar com o estático do museu também quando a exposição incorpora uma biblioteca focada nos temas afins da arte e do ativismo, procurando abrir para a crítica e buscando o diálogo com o público, mais uma vez temos a obra não como algo dado, fechado, mas como uma abertura para novos agenciamentos. Estamos falando de uma exposição antes mesmo dela inaugurar. O que ela pode ser? Ela deixa espaço para o leitor? Outra obra bastante emblemática, do Esqueleto Coletivo, está exposta na porta fechada da sala e a transforma em um portão virtual infinitamente se abrindo…

Fabiane: Essa coisa que tu falava antes, de memória, é interessante retomar. Porque a gente vive numa era de pouca memória, e a internet, os sistemas de busca ou as redes sociais, contribuem para essa falta de densidade do que se lembra. É bem verdade que as coisas que estão representadas ali dentro tem força sim. Foram anos de engajamento, de intervenção, de situação de risco, de prisões, de pressão psicológica, de apreensão de equipamentos. As respostas estéticas, midiáticas, performáticas, ou o que seja, vão se perdendo, literalmente estragando em blogs perdidos, muitos fora do ar, ou esquecidas em servidores que já não existem. Os blogs, sites, ou posts no facebook e no twitter não dão conta da dimensão dessas experiências. Foi isso que pensamos ao fazer parte da coleção, a de resguardar, mesmo que em pequena escala esses retratos, esses vídeos, essas publicações, essas imagens que foi produzida em zonas áridas, em plena guerra social, em pleno processo de gentrificação. Eu também acho que são potentes os trabalhos que estão lá. Parece que a memória tem um preço, e o meu preço pessoal, foi ter que ter encarado os ativistas em frente ao museu no dia da sua inauguração, quando fizemos a instalação audiovisual “Poéticas do Dissenso”. Parecia uma incoerência, um paradoxo, uma contradição. Estávamos dentro e fora do museu naquele momento, e a única coisa que tínhamos para colocar para jogo era a força das obras, a memória dessas ações. Para gente como nós, que gosta das coisas abertas, livres, rueiras, realmente é perturbador passar por situações onde os ativistas, o povo que grita e resiste está do outro lado, do que o que a gente está. Mas existe um investimento no tempo, na memória, na recuperação dessa memória, no fortalecimento da rede, que talvez responda, no tempo, a esse conflito. Ou seja, como eu disse acima, a aderência dos grupos de vanguarda (e aqui não estou complexificando o que essa palavra significa, mas poderia), aos sistemas de inscrição no sócius, seja lá o que isso queira dizer, talvez um alcance específico, ou simplesmente mais alcance do que a intervenção em si mesma. Eu realmente acredito que esse processo vivido por uma rede de companheiros de estrada, esses anos todos dedicados a rua, deve ser preservado em algum lugar, se esse lugar é o MAR, que seja, nada pode nos paralisar, ou pelo menos não deveria.


Élida: Guardar e historicizar esse tipo de produção é também uma mudança do tratamento da história da arte por parte dos museus. Assim como outras instituições, que necessitam se desvencilhar do hermetismo, o museu começa a mudar as suas práticas de colecionismo, ou deveria. Ao mesmo tempo em que se exacerbam certos discursos fascistas no mundo, há outras forças novas e potentes em jogo que dizem respeito à efetivação do desejo frente ao intolerável. O Museu de Arte do Rio, mesmo preso em suas amarras institucionais, está dando visibilidade aos atores de um jogo que joga, que não está de bobeira. É bom lembrar de que lado estamos. Estamos sempre mais à esquerda.


1Fabiane Borges é psicóloga, ensaísta, artista integrante da coleção Zona de Poesia Árida, autora dos livros: Domínios do Demasiado (Hucitec 2010) e Breviário de Pornografia Esquizotrans (Ex. Libris 2010). Élida Lima é escritora próxima dos coletivos, editora e crítica literária, mestre pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUCSPP, autora de "Cartas ao Max: limiar afetivo da obra de Max Martins" (Invisíveis Produções, 2013).

2 “Zona de Poesia Árida” é uma exposição em exibição de 27/01 a 31/05/2015 no Museu de Arte do Rio, que traça um panorama do intenso papel de ativismo assumido pela arte a partir dos anos 2000. As obras pertencem à Coleção MAR, formada por meio da 6a edição do Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça. Com curadoria de Daniel Lima e Tulio Tavares, a mostra reúne 55 trabalhos de 16 coletivos de arte de São Paulo, entre vídeos, fotografias, gravuras, intervenções e performances.
 

3 “Poéticas do Dissenso” foi uma instalação audiovisual dentro da exposição “O Abrigo e o Terreno” feita no Museu de Arte do Rio, por ocasião da sua abertura em 02/02/2013 sobre o encontro dos Coletivos de Arte com a Ocupação Prestes Maia do Movimento dos Sem Teto do Centro de São Paulo. Curadoria de Túlio Tavares, Rodrigo Araújo e Eduardo Verderame.

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Fonte: Fabi Borges

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