PICICA: "Como deve ser uma prisão?
Se retornarmos ao início do século 19, uma prisão deveria ser aquele
lugar onde as condições de vida precisariam ser piores do que a pior
condição de um homem livre. A intenção era desencorajar as pessoas, por
mais pobres que fossem, de cometer algum delito que as levasse para lá.
E, ao mesmo tempo, responder aos que acusavam o Estado de oferecer
melhor atendimento a um criminoso do que a um “pobre honesto”.
Bastaria pensar nas condições de trabalho desses “pobres honestos” durante a revolução industrial para imaginar a situação.
Quem tem um mínimo de intimidade com o direito penal ou a criminologia
conhece esse princípio da “menor elegibilidade”. Porque, é claro, a
prisão sempre foi pensada para o controle social dos trabalhadores e dos
pobres e marginalizados de modo geral. Daí a correlação entre punição e
estrutura social, apontada na obra clássica de Georg Rusche e Otto
Kirchheimer, publicada originalmente em 1939 e só traduzida no Brasil
sessenta anos mais tarde, ou entre cárcere e fábrica, outro clássico,
dos italianos Dario Melossi e Massimo Pavarini, escrito em 1977 e também
tardiamente editado em português, quase trinta anos depois.
Pensemos então em altos funcionários, acostumados ao luxo e a todas as
mordomias que o dinheiro pode comprar: não poderia ser nada menos que
chocante o relato de Mônica Bergamo, em página inteira na Folha de S.Paulo
de domingo (22/2), sobre as condições em que se encontram, há três
meses, no cárcere da Polícia Federal do Paraná, os executivos presos na
Operação Lava Jato."
OPERAÇÃO LAVA JATO
O perverso prazer diante da humilhação alheia
Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 24/02/2015 na edição 839
Como deve ser uma prisão?
Se retornarmos ao início do século 19, uma prisão deveria ser aquele lugar onde as condições de vida precisariam ser piores do que a pior condição de um homem livre. A intenção era desencorajar as pessoas, por mais pobres que fossem, de cometer algum delito que as levasse para lá. E, ao mesmo tempo, responder aos que acusavam o Estado de oferecer melhor atendimento a um criminoso do que a um “pobre honesto”.
Bastaria pensar nas condições de trabalho desses “pobres honestos” durante a revolução industrial para imaginar a situação.
Quem tem um mínimo de intimidade com o direito penal ou a criminologia conhece esse princípio da “menor elegibilidade”. Porque, é claro, a prisão sempre foi pensada para o controle social dos trabalhadores e dos pobres e marginalizados de modo geral. Daí a correlação entre punição e estrutura social, apontada na obra clássica de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, publicada originalmente em 1939 e só traduzida no Brasil sessenta anos mais tarde, ou entre cárcere e fábrica, outro clássico, dos italianos Dario Melossi e Massimo Pavarini, escrito em 1977 e também tardiamente editado em português, quase trinta anos depois.
Pensemos então em altos funcionários, acostumados ao luxo e a todas as mordomias que o dinheiro pode comprar: não poderia ser nada menos que chocante o relato de Mônica Bergamo, em página inteira na Folha de S.Paulo de domingo (22/2), sobre as condições em que se encontram, há três meses, no cárcere da Polícia Federal do Paraná, os executivos presos na Operação Lava Jato.
Degradação
“Passam o dia em cubículos onde dividem a mesma latrina e às vezes são obrigados a comer com as mãos”, pois recebem talheres de plástico e a faca não corta o pedaço de carne ou frango servido nas refeições. “Nada separa a latrina do restante do espaço. A pessoa tem que ir ao banheiro na frente de todos os outros que estão presos ali”, relata um dos executivos que já saiu da cadeia. Só têm direito a duas horas de sol. No início, não tinham noção do tempo, até que a PF autorizou a instalação de um relógio numa das celas. Não recebem visitas íntimas, porque as condições locais não permitem um mínimo de privacidade.
Ora, do que reclamam? Não estão pior do que as piores condições dos mais pobres, esses que nem têm onde morar e se ajeitam debaixo de viadutos e marquises com seus papelões e cobertores imundos, não têm o conforto de uma latrina e perambulam implorando por sobras de comida. Não é?
É assim que reagem os que gozam com o espetáculo da degradação alheia, sobretudo num caso como este, que envolve colarinhos brancos. Entre esses, alguns de sólida formação de esquerda, que se enquadram perfeitamente no que a juíza Maria Lúcia Karam, há quase vinte anos, chamou de “esquerda punitiva”: essa que, em vez de se insurgir contra a iniquidade da pena de prisão – porque a privação da liberdade envolve necessariamente um ritual de desumanização –, pretende “democratizá-la” e levá-la a alcançar os mais altos estratos da sociedade. O resultado seria a transformação do país num “arquipélago carcerário”, como observou, mais recentemente, o jurista
Juarez Cirino dos Santos.
Questão de classe
Não. Mesmo que não queiramos enfrentar a urgente discussão sobre a necessidade da prisão, o mínimo que deveríamos fazer – sob pena de continuarmos a viver no século 21 com o discurso do início do século 19 – seria exigir que o Estado garantisse ao preso, de qualquer extração social, um mínimo de dignidade em sua rotina. O que, inversamente, seria uma forma de confrontar o Estado diante de sua responsabilidade em relação aos mais pobres, de modo que o princípio da “menor elegibilidade” não tivesse como parâmetro o sem-teto miserável que perambula pelas ruas, porque toda pessoa já teria direito a condições básicas de sobrevivência, o que inclui o direito a um lar.
Porque trata de altos executivos subitamente expostos a tais condições, o relato de Mônica Bergamo também chama a atenção pela questão de classe. Como observou o colunista Ricardo Melo, na edição de segunda-feira (23/2) da Folha:
Serve também para a repetição de comentários sobre os providenciais
protestos diante da arbitrariedade que atinge pessoas desse status,
quando arbitrariedades iguais ou piores ocorrem diariamente e não
despertam a indignação de advogados de renome, supostamente preocupados
apenas com os honorários que lhes rendem seus clientes endinheirados.
Embora perfeitamente assimilado ao senso comum, este é um raciocínio
absolutamente falso, que ignora a história de décadas de militância de
vários desses advogados em defesa dos direitos humanos e suas crescentes
iniciativas no campo da criminologia crítica: a criação de
organizações, publicações e promoção de debates voltados às denúncias
contra as prisões temporárias, contra as condições aviltantes dos
cárceres, em favor da adoção de penas alternativas e, no limite, do
abolicionismo penal.
Mas o senso comum não ignora essas iniciativas por acaso, e tampouco é por acaso que raramente alguma delas se torne notícia. Como disse certa vez o sociólogo Loïc Wacquant, “tudo aquilo que rompe o ronron dessa politologia flácida que serve [aos jornalistas] de instrumento de apreensão da sociedade tem todas as chances de ser percebido como uma agressão ou de simplesmente não ser percebido”.
Por isso a reportagem de Mônica Bergamo é tão relevante: porque abre uma brecha para pensar no que rotineiramente não se pensa.
A violência do Estado
“Há relatos de esgotamento emocional de alguns presos, que imaginavam que passariam pouco tempo na cadeia”, diz o texto.
O passar do tempo começa a sugerir uma tática incompatível com os princípios do Estado de direito: prolongar a prisão desses executivos como forma de coagi-los a aceitar o que deveria ser voluntário – a famosa delação premiada, em si já objeto de muita polêmica nos meios jurídico e jornalístico.
A propósito, o jurista Miguel Reale Jr., ex-ministro da justiça de Fernando Henrique Cardoso, já se havia pronunciado há mais de dois meses, em artigo também publicado na Folha (8/12/2014), no qual reiterava a então recente manifestação do Conselho Federal da OAB:
É oportuno recordar esses argumentos, por mais que o público em geral –
isso que costumamos chamar de senso comum – e mesmo alguns intelectuais
de prestígio só os considerem casuisticamente, e tendam a desprezá-los
em casos como o dessa investigação que envolve altos funcionários até
então intocáveis. Porque nunca é demais lembrar que há princípios
universais a serem respeitados. E porque regozijar-se com o sofrimento
alheio é um sentimento perverso, incompatível com o legítimo desejo de
justiça.
***
Se retornarmos ao início do século 19, uma prisão deveria ser aquele lugar onde as condições de vida precisariam ser piores do que a pior condição de um homem livre. A intenção era desencorajar as pessoas, por mais pobres que fossem, de cometer algum delito que as levasse para lá. E, ao mesmo tempo, responder aos que acusavam o Estado de oferecer melhor atendimento a um criminoso do que a um “pobre honesto”.
Bastaria pensar nas condições de trabalho desses “pobres honestos” durante a revolução industrial para imaginar a situação.
Quem tem um mínimo de intimidade com o direito penal ou a criminologia conhece esse princípio da “menor elegibilidade”. Porque, é claro, a prisão sempre foi pensada para o controle social dos trabalhadores e dos pobres e marginalizados de modo geral. Daí a correlação entre punição e estrutura social, apontada na obra clássica de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, publicada originalmente em 1939 e só traduzida no Brasil sessenta anos mais tarde, ou entre cárcere e fábrica, outro clássico, dos italianos Dario Melossi e Massimo Pavarini, escrito em 1977 e também tardiamente editado em português, quase trinta anos depois.
Pensemos então em altos funcionários, acostumados ao luxo e a todas as mordomias que o dinheiro pode comprar: não poderia ser nada menos que chocante o relato de Mônica Bergamo, em página inteira na Folha de S.Paulo de domingo (22/2), sobre as condições em que se encontram, há três meses, no cárcere da Polícia Federal do Paraná, os executivos presos na Operação Lava Jato.
Degradação
“Passam o dia em cubículos onde dividem a mesma latrina e às vezes são obrigados a comer com as mãos”, pois recebem talheres de plástico e a faca não corta o pedaço de carne ou frango servido nas refeições. “Nada separa a latrina do restante do espaço. A pessoa tem que ir ao banheiro na frente de todos os outros que estão presos ali”, relata um dos executivos que já saiu da cadeia. Só têm direito a duas horas de sol. No início, não tinham noção do tempo, até que a PF autorizou a instalação de um relógio numa das celas. Não recebem visitas íntimas, porque as condições locais não permitem um mínimo de privacidade.
Ora, do que reclamam? Não estão pior do que as piores condições dos mais pobres, esses que nem têm onde morar e se ajeitam debaixo de viadutos e marquises com seus papelões e cobertores imundos, não têm o conforto de uma latrina e perambulam implorando por sobras de comida. Não é?
É assim que reagem os que gozam com o espetáculo da degradação alheia, sobretudo num caso como este, que envolve colarinhos brancos. Entre esses, alguns de sólida formação de esquerda, que se enquadram perfeitamente no que a juíza Maria Lúcia Karam, há quase vinte anos, chamou de “esquerda punitiva”: essa que, em vez de se insurgir contra a iniquidade da pena de prisão – porque a privação da liberdade envolve necessariamente um ritual de desumanização –, pretende “democratizá-la” e levá-la a alcançar os mais altos estratos da sociedade. O resultado seria a transformação do país num “arquipélago carcerário”, como observou, mais recentemente, o jurista
Juarez Cirino dos Santos.
Questão de classe
Não. Mesmo que não queiramos enfrentar a urgente discussão sobre a necessidade da prisão, o mínimo que deveríamos fazer – sob pena de continuarmos a viver no século 21 com o discurso do início do século 19 – seria exigir que o Estado garantisse ao preso, de qualquer extração social, um mínimo de dignidade em sua rotina. O que, inversamente, seria uma forma de confrontar o Estado diante de sua responsabilidade em relação aos mais pobres, de modo que o princípio da “menor elegibilidade” não tivesse como parâmetro o sem-teto miserável que perambula pelas ruas, porque toda pessoa já teria direito a condições básicas de sobrevivência, o que inclui o direito a um lar.
Porque trata de altos executivos subitamente expostos a tais condições, o relato de Mônica Bergamo também chama a atenção pela questão de classe. Como observou o colunista Ricardo Melo, na edição de segunda-feira (23/2) da Folha:
“Os métodos humilhantes impostos pelo juiz Moro a acusados chamam a
atenção por atingirem figurões. Mais grave: perto de que passam as
dezenas de milhares de presos sem culpa ou condenação, o ambiente em que
estão os empresários equivale a uma suíte premium de hotel. O paralelo,
antes de mais nada, serve sobretudo para escancarar a indigência da
Justiça e do sistema carcerário” (íntegra aqui).
Mas o senso comum não ignora essas iniciativas por acaso, e tampouco é por acaso que raramente alguma delas se torne notícia. Como disse certa vez o sociólogo Loïc Wacquant, “tudo aquilo que rompe o ronron dessa politologia flácida que serve [aos jornalistas] de instrumento de apreensão da sociedade tem todas as chances de ser percebido como uma agressão ou de simplesmente não ser percebido”.
Por isso a reportagem de Mônica Bergamo é tão relevante: porque abre uma brecha para pensar no que rotineiramente não se pensa.
A violência do Estado
“Há relatos de esgotamento emocional de alguns presos, que imaginavam que passariam pouco tempo na cadeia”, diz o texto.
O passar do tempo começa a sugerir uma tática incompatível com os princípios do Estado de direito: prolongar a prisão desses executivos como forma de coagi-los a aceitar o que deveria ser voluntário – a famosa delação premiada, em si já objeto de muita polêmica nos meios jurídico e jornalístico.
A propósito, o jurista Miguel Reale Jr., ex-ministro da justiça de Fernando Henrique Cardoso, já se havia pronunciado há mais de dois meses, em artigo também publicado na Folha (8/12/2014), no qual reiterava a então recente manifestação do Conselho Federal da OAB:
“A prisão antes da sentença condenatória, todavia, é medida
excepcional, cabível apenas em vista do interesse de preservação da
prova, da considerável probabilidade de reiteração delituosa ou de fuga
do investigado. Só é de se admitir a prisão preventiva quando a
liberdade do investigado constitua um perigo para o processo, um risco
para a apuração dos fatos e para a garantia de aplicação futura da lei
penal.
“Transformar a prisão, sem culpa reconhecida na sentença, em
instrumento de constrangimento para forçar a delação é uma proposta que
repugna ao Estado de Direito: ou o acusado confessa e entrega seus
cúmplices, ou permanece preso à espera do julgamento, com a
possibilidade de condenação, mas passível de uma grande redução da pena
se colaborar com as investigações.
“Evidentemente, não se compadece com o regime democrático que o Estado valha-se do uso da violência para extrair confissões”.
***
P.S. – Na tarde de segunda-feira (23/2), a Folha
publicou em seu site matéria na qual o juiz da Operação Lava Jato
pergunta se os presos “preferem ser transferidos para o sistema
prisional estadual” (ver aqui).
Para quem lê nas entrelinhas (e nesse caso nem é preciso ser muito
inteligente), o juiz, à parte a ironia, acaba de confirmar que o
recolhimento a um presídio significa uma pena muito maior do que a perda
da liberdade.
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
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