fevereiro 18, 2015

“Tiroteio”: Violência de Estado e Subjetividade Insurgente" (REAJA NAS RUAS)

PICICA: "Em uma região de Salvador da Bahia, conhecida como Cidade Baixa, há uma aprazível vizinhança à beira-mar. Cercada por comunidades empobrecidas, é a praia da Ribeira. Jovens das redondezas se reúnem às noites de domingo para dançar no meio da rua ao som do gênero musical mais popular e odiado da cidade. O pagode. A música do gueto e da favela. E também da licenciosidade desbragada. Ultrajante. Meus colegas na universidade odeiam pagode. Feministas aprovaram uma lei estadual que visa limitar o seu alcance. Para a polícia, os jovens pagodeiros da Ribeira são bandidos. A festa é “fugitiva”2 e ocorre de improviso nas ruas. O som dos carros em alto volume. Adolescentes de ambos os sexos agitam pornográfica, todo o corpo ritmadamente. A rua está lotada. A música é muitas vezes sensual, dizem alguns. Mas também é a “voz do gueto”, que exalta a identidade da favela, denuncia a violência policial e o preconceito. “Vai começar o tiroteio, vai começar. Clack, Clack. Bum. Clack, Clack, Bum”. Berra, no alto-falante do carro, o cantor Ed City. Em intervalos regulares o carro da polícia dobra silenciosamente a esquina e atravessa a multidão, repentinamente imobilizada. A música cessa. Ninguém mais dança. Até que o carro dobre a esquina novamente e tudo recomeça."

Black subjectivity is a crossroads where vertigo meet, the intersection of performative and structural violence.1
Frank Wilderson, III, The Vengeance of Vertigo, 2011.



Em uma região de Salvador da Bahia, conhecida como Cidade Baixa, há uma aprazível vizinhança à beira-mar. Cercada por comunidades empobrecidas, é a praia da Ribeira. Jovens das redondezas se reúnem às noites de domingo para dançar no meio da rua ao som do gênero musical mais popular e odiado da cidade. O pagode. A música do gueto e da favela. E também da licenciosidade desbragada. Ultrajante. Meus colegas na universidade odeiam pagode. Feministas aprovaram uma lei estadual que visa limitar o seu alcance. Para a polícia, os jovens pagodeiros da Ribeira são bandidos. A festa é “fugitiva”2 e ocorre de improviso nas ruas. O som dos carros em alto volume. Adolescentes de ambos os sexos agitam pornográfica, todo o corpo ritmadamente. A rua está lotada. A música é muitas vezes sensual, dizem alguns. Mas também é a “voz do gueto”, que exalta a identidade da favela, denuncia a violência policial e o preconceito. “Vai começar o tiroteio, vai começar. Clack, Clack. Bum. Clack, Clack, Bum”. Berra, no alto-falante do carro, o cantor Ed City. Em intervalos regulares o carro da polícia dobra silenciosamente a esquina e atravessa a multidão, repentinamente imobilizada. A música cessa. Ninguém mais dança. Até que o carro dobre a esquina novamente e tudo recomeça.

O sujeito negro, na modernidade que nos martiriza, encontra a si mesmo em meio à violência, e a violência, em muitos sentidos, é o principal elemento, espelho estilhaçado, onde nos reconhecemos. Bem conhecido fato histórico de que sob a escravidão, no Brasil e nos Estados Unidos, a personalidade jurídica e civil do escravo precisava ser negada, como elemento estruturante da fantasia de Estado legítimo, com uma única exceção, o direito penal. O escravo, e por extensão e in-corporação, todos nós, não poderia ter propriedades, nem assumir direitos políticos, ou testemunhar em um processo, mas poderia ser julgado e condenado por um crime. Na verdade como demonstram, com estilos e recursos diferentes, Saidiya Hartman e Ana Flauzina, todo o aparato jurídico e penal dos Estados escravocratas está mobilizado para produzir o sujeito negro como objeto da criminalização e extermínio3. O negro, esse “inimigo inconciliável”4. A polícia do Estado, e o Estado
Policial, instâncias estruturais do processo de interpelação que produz os sujeitos, como atores encarnados em um drama interposto; como vozes codificadas em um discurso da violência e do medo; como subjetividades, acossadas pelo “fato da negritude”. Sempre o fato da negritude. “... Sentei ao sol para escrever. A filha da Silva, uma menina de seis anos, passava e dizia: - está escrevendo, negra fedida!”.5

A ambiência de medo, abuso, despossessão e violência é dessa forma a matriz histórica e a forma estrutural da relação de negros e negras com o Estado, sob a ordem consumada da supremacia branca global. Ora, isso significa que somos feito daquela matéria de que são feitos os pesadelos. A “qualidade alucinatória”6 que a realidade adquire sob o peso do genocídio e da miséria cotidiana, é o parâmetro de uma existência precária suspensa entre a abjeção e o fascínio mórbido. “Blackness is fantasy in the hold”.7 Porque apesar da maquina mortífera do Estado, reluz transplandecente a revolta, a imaginação, a insurgência. Nos dizem: sois réus, criminosos, bandidos, imorais, para-humanos. Todavia, a mesma máquina interpelante que produz a nossa subjetividade (sujeição) produz a nós mesmos como agentes, desafio perturbador para as “corporal anxieties of the liberal order”8. Todas as contradições da sociedade racializada explodem em nossa consciência como um cataclismo de medo, frustração, revolta. E como repertórios corporais e psíquicos de uma impossibilidade e incongruência que busca finalmente expressão. O poder que nos constitui, paradoxalmente é fonte de nosso próprio poder de desconstrução. “Power is both external to the subject and the very venue of the subject”.9

A cultura popular na Diáspora, como forma expressiva historicamente transfigurada, é lugar privilegiado da agência negra. Onde podemos des-fazer e re-fazer a nós mesmo como sujeitos. Tornamo-nos objetos para nós mesmos, sujeitos de nossa própria (auto)consciência e emancipação. Com todo o ruído, “som e fúria”, que está presente nas articulações estruturais e históricas da supremacia branca e do capitalismo global. Huey P. Newton, define com peculiar brilhantismo e concisão: “O negro dos estratos inferiores é um homem de confusão”10. O que ele faz dessa confusão é o que o constitui, ou não, como um agente.

O que um jornalista11 chamou de “Gangsta Axé”, desconhecendo a riqueza e complexidade das formas expressivas da cultura negra na Bahia, é mais uma instância de elaboração performada de inconformismo e insubmissão, contradição, medo e dúvida. O som e a fúria nas quebradas da cidade, onde nos equilibramos buscando construir sentido e horizonte de subjetivação entre a vertigem e o tiroteio que o Estado arma para nós. “Toque de recolher, pra não sobrar pra você / Os guerreiros estão chegando e não querem nem saber”12 .



Osmundo Pinho
Antropólogo, professor na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em Cachoeira.
Frente ao Genocídio do Povo Negro, Nenhum Passo Atrás!

*1 “A subjetividade negra é uma encruzilhada onde a vertigem se encontra, intersecção do performativo e violência estrutural”. (todas as traduções são do autor).
2 MOTEN, Fred & HARNEY, Stefano. The Undercommons – Fugitive Panning and Black Study. 2013.
3 Na verdade, eu diria, as alternativas seriam extermínio ou canibalização (alguns diriam antropofagia).
4 FLAUZINA, Ana. Corpo Negro Caído no Chão. O Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. 2008.
5 JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo. Diário de uma Favelada. 1960.
6 TAUSSIG, Michael. Xamanismo, Colonialismo e Homem Selvagem. Um Estudo Sobre o Terror e a Cura. 1993
7 “Negritude é fantasia no porão”. MOTEN, Fred & HARNEY, Stefano...
8 “Ansiedade corporais da ordem liberal”. HARTMAN, Saidyia V. Scenes of Subjection. Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. 1997.
9 “O Poder é tanto externo ao sujeito quanto é sua própria sede”. BUTLER, Judith. The Psychic Life of Power. Theories of Subjection. 1997.
10NEWTON, Huey P. “Medo e Dúvida”. 1967. http://www.scribd.com/doc/220177893/Medo-e-Duvida.

Fonte: Reaja nas Ruas

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