fevereiro 01, 2015

"Introdução ao Segundo Sexo I: Fatos e Mitos." Simone de Beauvoir.

Introdução ao Segundo Sexo I: Fatos e Mitos.

Simone de Beauvoir.*

Hesitei muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritante, principalmente para as mulheres. E não é novo. A querela do feminismo deu muito que falar: agora está mais ou menos encerrada. Não toquemos mais nisso. . . No entanto, ainda se fala dela. E não parece que as volumosas tolices que se disseram neste último século tenham realmente esclarecido a questão. Demais, haverá realmente um problema? Em que consiste? Em verdade, haverá mulher? Sem dúvida, a teoria do eterno feminino ainda tem adeptos; cochicham: “Até na Rússia elas permanecem mulheres”. Mas outras pessoas igualmente bem informadas — e por vezes as mesmas — suspiram: “A mulher se está perdendo, a mulher está perdida”. Não sabemos mais exatamente se ainda existem mulheres, se existirão sempre, se devemos ou não desejar que existam, que lugar ocupam no mundo ou deveriam ocupar”. “Onde estão as mulheres?”, indagava há pouco uma revista intermitente [1]. Mas antes de mais nada: que é uma mulher? “Tota mulier in utero: é uma matriz”, diz alguém. Entretanto, falando de certas mulheres, os conhecedores declaram: “Não são mulheres”, embora tenham um útero como as outras. Todo mundo concorda em que há fêmeas na espécie humana; constituem, hoje, como outrora, mais ou menos a metade da humanidade; e contudo dizem-nos que a feminilidade “corre perigo”; e exortam-nos: “Sejam mulheres, permaneçam mulheres, tornem-se mulheres”. Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade. Será esta secretada pelos ovários? Ou estará congelada no fundo de um céu platônico? E bastará uma saia ruge-ruge para fazê-la descer à terra? Embora certas mulheres se esforcem por encarná-lo, o modelo nunca foi registrado. Descreveram-no de bom grado em termos vagos e mirabolantes que parecem tirados de empréstimo do vocabulário das videntes.

No tempo de Sto. Tomás, ela se apresentava como uma essência tão precisamente definida quanto a virtude dormitiva da papoula. Mas o conceitualismo perdeu terreno: as ciências biológicas e sociais não acreditam mais na existência de entidades imutàvelmente fixadas, que definiriam determinados caracteres como os da mulher, do judeu ou do negro; consideram o caráter como uma reação secundária a uma situação.  Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve.   Significará isso que a palavra “mulher” não tenha nenhum conteúdo?  E o que afirmam vigorosamente os partidários da filosofia das luzes, do racionalismo, do nominalismo: as mulheres, entre os seres humanos, seriam apenas os designados arbitrariamente pela palavra “mulher”. Os norte-americanos, em particular, pensam que a mulher, como mulher, não existe mais; se uma retardada ainda se imagina mulher, as amigas aconselham-na a se fazer psicanalisar para livrar-se dessa obsessão.  A propósito de uma obra, de resto assaz irritante, intitulada Modern Woman: a lost sex, Dorothy Parker escreveu: “Não posso ser justa em relação aos livros que tratam da mulher como mulher… Minha idéia é que todos, homens e mulheres, o que quer que sejamos, devemos ser considerados seres humanos”.  Mas o nominalismo é uma doutrina um tanto limitada; e os antifeministas não têm dificuldade em demonstrar que as mulheres não são homens.    

Sem dúvida, a mulher é, como o homem, um ser humano.  Mas tal afirmação é abstrata; o fato é que todo ser humano concreto sempre se situa de um modo singular.  Recusar as noções de eterno feminino, alma negra, caráter judeu, não é negar que haja hoje judeus, negros e mulheres; a negação não representa para os interessados uma   libertação e sim uma fuga inautêntica. É claro que nenhuma mulher pode pretender sem má-fé situar-se além de seu sexo. Uma escritora conhecida recusou-se a deixar que saísse seu retrato numa série de fotografias consagradas precisamente às mulheres escritoras: queria ser incluída entre os homens, mas para obter esse privilégio utilizou a influência do marido. As mulheres que afirmam que são homens não dispensam, contudo, as delicadezas e as homenagens masculinas. Lembro-me também duma jovem trotskista em pé num estrado, no meio de um comício violento e que se dispunha a dar pancadas, apesar de sua evidente fragilidade; negava sua fraqueza feminina; mas era por amor a um militante a quem desejava ser igual.  A atitude de desafio dentro da qual se crispam   as   norte-americanas prova que são dominadas pelo   sentimento de sua feminilidade.  E, em verdade, basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupações são manifestamente diferentes: talvez essas diferenças sejam superficiais, talvez se destinem a desaparecer. O certo é que por enquanto elas existem com uma evidência total.

Se a função da fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusamos também explicá-la pelo “eterno feminino” e se, no entanto, admitimos, ainda que provisoriamente, que há mulheres na terra, teremos que formular a pergunta: que é uma mulher ?

O próprio enunciado do problema sugere-me uma primeira resposta. É significativo que eu coloque esse problema. Um homem não teria a idéia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade [2]. Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente a declarar: “Sou uma mulher”. Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação. Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado sexo: que seja homem é natural. É de maneira formal, nos registros dos cartórios ou nas declarações de identidade que as rubricas, masculino, feminino, aparecem como simétricas.     A relação dos dois sexos não é a das duas eletricidades, de dois pólos. O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos “os homens” para designar os seres humanos, tendo-se assimilado ao sentido singular do vocábulo vir o sentido geral da palavra homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade. Agastou-me, por vezes, no curso de conversações abstratas, ouvir os homens dizerem-se: “Você pensa assim porque é uma mulher”. Mas eu sabia que minha única defesa era responder: “penso-o porque é verdadeiro”, eliminando assim minha subjetividade. Não se tratava, em hipótese alguma, de replicar:   “E você pensa o contrário porque é um homem”, pois está subentendido que o fato de ser um homem não é uma singularidade; um homem está em seu direito sendo homem, é a mulher que está errada. Praticamente, assim como para os Antigos havia uma vertical absoluta em relação à qual se definia a oblíqua, há um tipo humano absoluto que é o masculino.  A mulher   tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade;   diz-se de bom grado que ela pensa com suas glândulas. O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e testículos.  Encara o corpo como uma relação direta e   normal com   o mundo que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão.  “A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades”, diz Aristóteles. “Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural”. E Sto. Tomás, depois dele, decreta que a mulher é um homem incompleto, um ser “ocasional”. É o que simboliza a história do Gênese em que Eva aparece como extraída, segundo Bossuet, de um “osso supranumerário” de Adão. A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a êle; ela não é considerada um ser autônomo.  “A mulher, o ser relativo…”, diz Michelet.    E é por isso que Benda afirma em Rapport d’Uriel: “O corpo do homem tem um sentido em si, abstração feita do da mulher, ao passo que este parece destituído de significação se não se evoca o macho… O homem é pensável sem a mulher.   Ela não, sem o homem”.    Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o “sexo” para dizer que ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para êle, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro [3].

A categoria do Outro é tão original quanto a própria consciência. Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias, encontra-se sempre uma dualidade que é a do Mesmo e a do Outro.   A divisão não foi estabelecida inicialmente sob o signo da divisão dos sexos, não depende de nenhum dado empírico: é o que se conclui, entre outros, dos trabalhos de Granet sobre o pensamento chinês de Dumézil sobre as índias e Roma. Nos pares Varuna-Mitra, Urano-Zeus, Sol-Lua, Dia-Noite, nenhum elemento feminino se acha implicado a princípio; nem tampouco na oposição do Bem ao Mal, dos princípios fastos e nefastos, da direita e da esquerda, de Deus e Lúcifer; a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento humano.         

Nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si. Basta três viajantes reunidos por acaso num mesmo compartimento para que todos os demais viajantes se tornem “os outros” vagamente hostis. Para os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugarejo são   “outros”‘ e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes de outro país são considerados “estrangeiros”. Os judeus são “outros” para o anti-semita, os negros para os racistas norte-americanos, os indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários.    Ao fim de um estudo aprofundado das diversas figuras das sociedades primitivas, Lévi-Strauss pôde concluir: “A passagem do estado natural ao estado cultural define-se pela aptidão por parte do homem em pensar as relações biológicas sob a forma de sistemas de oposições: a dualidade, a alternância, a oposição e a simetria, que se apresentam sob formas definidas ou formas vagas, constituem menos fenômenos que cumpre explicar que os dados fundamentais e imediatos da realidade social[4]. Tais fenômenos não se compreenderiam se a realidade humana fosse exclusivamente um mitsein baseado na solidariedade e na amizade.   Esclarece-se, ao contrário, se, segundo Hegel, descobre-se na própria consciência uma hostilidade fundamental em relação a qualquer outra consciência; o sujeito só se põe em se opondo: êle pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objeto.

Só que a outra consciência lhe opõe uma pretensão recíproca: em viagem, o nativo percebe com espanto que há, nos países vizinhos, nativos que o encaram, eles também, como estrangeiro; entre aldeias, clãs, nações, classes, há guerras, potlatchs, tratados, lutas que tiram o sentido absoluto da idéia do Outro e descobrem-lhe a relatividade; por bem ou por mal os indivíduos e os grupos são obrigados a reconhecer a reciprocidade de suas relações. Como se entende, então, que entre os sexos essa reciprocidade não tenha sido colocada, que um dos termos se tenha imposto como o único essencial, negando toda relatividade em relação a seu correlativo, definindo este como a alteridade pura? Por que as mulheres não contestam a soberania do macho? Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro define o Um; êle é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher?

Existem outros casos em que, durante um tempo mais ou menos longo, uma categoria conseguiu dominar totalmente a outra. É muitas vezes a desigualdade numérica que confere esse privilégio: a maioria impõe sua lei à minoria ou a persegue. Mas as mulheres não são, como os negros dos Estados Unidos ou os judeus, uma minoria; há tantos homens quantas mulheres na terra. Não raro, também os dois grupos em presença foram inicialmente independentes; ignoravam-se antes ou admitiam cada qual a autonomia do outro; e foi um acontecimento histórico que subordinou o mais fraco ao mais forte: a diáspora judaica, a introdução da escravidão na América, as   conquistas coloniais são fatos precisos. Nesses casos, para os oprimidos, houve um passo à frente: têm em comum um passado, uma tradição, por vezes uma religião, uma cultura. Nesse sentido, a aproximação estabelecida por Bebei entre as mulheres e o proletariado seria mais lógica: os proletários tampouco não estão em estado de inferioridade e nunca constituíram uma coletividade separada. Entretanto, na falta de um acontecimento, é um desenvolvimento histórico que explica sua existência como classe e mostra a distribuição desses indivíduos dentro dessa classe. Nem sempre houve proletários, sempre houve mulheres.   Elas são mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica; por mais longe que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é conseqüência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu.  E, em parte, porque escapa ao caráter acidental do fato histórico que a alteridade aparece aqui como um absoluto.   Uma situação que se criou através dos tempos pode desfazer-se num dado tempo: os negros do Haiti, entre outros, bem que o provaram. Parece, ao contrário, que uma condição natural desafia qualquer mudança. Em verdade, a natureza, como a realidade histórica, não é um dado imutável. Se a mulher se enxerga como o inessencial que nunca retorna ao essencial é porque não opera, ela própria, esse retorno.  Os proletários dizem “nós”.   Os negros também.             Apresentando-se como sujeitos, eles transformam em “outros” os burgueses, os brancos. As mulheres — salvo em certos congressos que permanecem manifestações abstratas — não dizem “nós”.    Os homens dizem “as mulheres” e elas usam essas palavras para se designarem a si mesmas: mas não se põem autenticamente como Sujeito. Os proletários fizeram a revolução na Rússia, os negros no Haiti, os indo-chineses bateram-se na Indo-China: a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica; só ganharam   o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram; elas receberam (Cf. Segunda Parte, § 5).  Isso porque não têm os meios concretos de se reunir em uma unidade que se afirmaria em se opondo.   Não têm passado, não têm história, nem religião própria; não têm, como os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses; não há sequer entre elas essa promiscuidade espacial que faz dos negros dos E.U.A., dos judeus dos guetos, dos operários de Saint-Denis ou das fábricas Renault uma comunidade.  Vivem dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens — pai ou marido — mais estreitamente do que as outras mulheres. Burguesas, são solidárias dos burgueses e não das mulheres proletárias; brancas, dos homens brancos e não das mulheres pretas. O proletariado poderia propor-se o trucidamento da classe dirigente; um judeu, um negro fanático poderiam sonhar com possuir o segredo da bomba atômica e constituir uma humanidade inteiramente judaica ou inteiramente negra: mas mesmo em sonho a mulher não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro.  A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.  É no seio de um mitsein original que sua oposição se formou e ela não a destruiu. O casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte é possível na sociedade por sexos. Isso é que caracteriza fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro.

Poder-se-ia imaginar que essa reciprocidade teria facilitado a libertação; quando Hércules fia a lã aos pés de Ônfale, o desejo amarra-o: por que Ônfale não conseguiu adquirir um poder durável? Para vingar-se de Jasão, Medéia mata os filhos: essa lenda selvagem sugere que, do laço que a liga à criança, a mulher teria podido tirar uma ascendência temível. Aristófanes imaginou complacentemente, em Lisístrata, uma assembléia de mulheres em que estas tentam explorar em comum, e para fins sociais, a necessidade que os homens têm delas, mas trata-se apenas de uma comédia. A lenda que afirma que as sabinas raptadas opuseram a seus raptores uma esterilidade obstinada, conta também que, fustigando-as com chicotes de couro, os homens quebraram màgicamente essa resistência. A necessidade biológica — desejo sexual e desejo de posteridade — que coloca o macho sob a dependência da fêmea não libertou socialmente a mulher. O senhor e o escravo estão unidos por uma necessidade econômica recíproca que não liberta o escravo. É que, na relação do senhor com o escravo, o primeiro não põe a necessidade que tem do outro; êle detém o poder de satisfazer essa necessidade e não a mediatiza; ao contrário, o escravo, na dependência, esperança ou medo, interioriza a necessidade que tem do senhor; a urgência da necessidade, ainda que igual em ambos, sempre favorece o opressor contra o oprimido: é o que explica que a libertação da classe proletária, por exemplo, tenha   sido tão   lenta. Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado handicap. Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta. Economicamente, homens e mulheres constituem como que duas castas; em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores possibilidades de êxito que suas concorrentes recém-chegadas.   Ocupam na indústria, na política etc, maior número de lugares e os postos mais importantes. Além dos   podêres concretos que possuem, revestem-se de um prestígio cuja tradição a educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no passado toda a história foi feita pelos homens. No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens. Eles bem o sabem, elas mal duvidam. Recusar ser o Outro, recusar a cumplicidade com o homem seria para elas renunciar a todas as vantagens que a aliança com a casta superior pode conferir-lhes. O homem suserano protegerá materialmente a mulher vassala e se encarregará de lhe justificar a existência: com o risco econômico, ela esquiva o risco metafísico de uma liberdade que deve inventar seus fins sem auxílios. Efetivamente, ao lado da pretensão de todo indivíduo de se afirmar como sujeito, que é uma pretensão ética, há também a tentação de fugir de sua liberdade e de constituir-se em coisa. É um caminho nefasto porque passivo, alienado, perdido, e então esse indivíduo é presa de vontades estranhas, cortado de sua transcendência, frustrado de todo valor. Mas é um caminho fácil: evitam-se com ele a angústia e a tensão da existência autenticamente assumida. O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará, nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.

Mas uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, tenha sido traduzida por um conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta.   Resta explicar por que o homem venceu desde o início. Parece que as mulheres deveriam ter sido vitoriosas. Ou a luta poderia nunca ter tido solução. Por   que este mundo sempre pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar? Será um bem essa mudança? Trará ou não uma partilha igual do mundo entre homens e mulheres?

Essas questões estão longe de ser novas; já lhes foram dadas numerosas respostas, mas o simples fato de ser a mulher o Outro contesta todas as justificações que os homens lhe puderam dar: eram-lhes evidentemente ditadas pelo interesse. “Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte”, escreveu, no século XVII, Poulain de Ia Barre, feminista pouco conhecido.  Em toda parte e em qualquer época, os homens exibiram a satisfação que tiveram de se sentirem os reis da criação. “Bendito seja Deus nosso Senhor e o Senhor de todos os mundos por não me ter feito mulher”, dizem os judeus nas suas preces matinais, enquanto suas esposas murmuram com resignação: “Bendito seja o Senhor que me criou segundo a sua vontade”. Entre as mercês que Platão agradecia aos deuses, a maior se lhe afigurava o fato de ter sido criado livre e não escravo e, a seguir, o de ser homem e não mulher. Mas os homens não poderiam gozar plenamente esse privilégio, se não o houvessem considerado alicerçado no absoluto e na eternidade: de sua supremacia procuraram fazer um direito. “Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios”, diz ainda Poulain de Ia Barre. Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à terra. As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a teologia a serviço   de seus desígnios, como   vimos   pelas frases citadas de Aristóteles e Sto. Tomás. Desde a Antigüidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das fraquezas femininas. Conhecem-se os violentos requisitórios que contra elas se escreveram através de toda a literatura francesa: Montherlant reata, com   menor brilho, a tradição de   Jean de Meung. Essa hostilidade parece, algumas vezes, justificável, mas na maior parte dos casos é gratuita.  Na realidade, recobre uma vontade de autojustificação mais ou menos habilmente mascarada. “E mais fácil acusar um sexo do que desculpar o outro”, diz Montaigne. Em certos casos, o processo é evidente.   É impressionante, por exemplo, que o código romano, a fim de restringir os direitos das mulheres, invoque “a imbecilidade, a fragilidade do sexo” no momento em que, pelo enfraquecimento da família, ela se torna um perigo para os herdeiros masculinos. É impressionante que no século XVI, a fim de manter a mulher casada sob tutela, apele-se para a autoridade de Santo Agostinho, declarando que “a mulher é um animal que não é nem firme nem estável”, enquanto à celibatária se reconhece o direito de gerir seus bens.  Montaigne compreendeu muito bem a arbitrariedade e a injustiça do destino imposto à mulher: “Não carecem de razão as mulheres quando recusam as regras que se introduziram no mundo, tanto mais quando foram os homens que as fizeram sem elas. Há, naturalmente, desentendimentos e disputas entre elas e nós”; mas êle não chega a defendê-las verdadeiramente. É somente no século XVIII que homens profundamente democratas encaram a questão com objetividade.     

Diderot, entre outros, esforça-se por demonstrar que a mulher é, como o homem, um ser humano. Um pouco mais tarde, Stuart Mill defende-a com ardor. Mas esses filósofos são de uma imparcialidade excepcional. No século XIX, a querela do feminismo torna-se novamente uma querela de sectários; uma das conseqüências da revolução industrial é a participação da mulher no trabalho produtor: nesse momento as reivindicações feministas saem do terreno teórico, encontram fundamentos econômicos; seus adversários fazem-se mais agressivos. Embora os bens de raiz se achem em parte abalados, a burguesia apega-se à velha moral que vê, na solidez da família, a garantia da propriedade privada: exige a presença da mulher no lar tanto mais vigorosamente quanto sua emancipação torna-se uma verdadeira ameaça; mesmo dentro da classe operária os homens tentaram frear essa libertação, porque as mulheres são encaradas como perigosas concorrentes, habituadas que estavam a trabalhar por salários mais baixos [5]. A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc.   Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo “a igualdade dentro da diferença”. Essa fórmula, que fêz fortuna, é muito significativa: é exatamente a que utilizam em relação aos negros dos E.U.A. as leis Jim Crow; ora, essa segregação, pretensamente igualitária, só serviu para introduzir as mais extremas discriminações.        

Esse encontro nada tem de ocasional: quer se trate de uma raça, de uma casta, de uma classe, de um sexo reduzidos a uma condição inferior, o processo de justificação é o mesmo.  O “eterno feminino” é o homólogo da “alma negra” e do “caráter judeu”. O problema judaico é, de resto, em conjunto, muito diferente dos dois outros: o judeu para o anti-semita é menos um inferior do que um inimigo e não se lhe reconhece neste mundo nenhum lugar próprio: o que se deseja é aniquilá-lo. Mas há profundas analogias entre a situação das mulheres e a dos negros: umas e outros emancipam-se hoje de um mesmo paternalismo e a casta anteriormente dominadora quer mantê-los “em seu lugar”, isto é, no lugar que escolheu para eles; em ambos os casos, ela se expande em elogios mais ou menos sinceros às virtudes do “bom negro”, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, da mulher “realmente mulher”, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem. Em ambos os casos, tira seus argumentos do estado de fato que ela criou. Conhece-se o dito de Bernard Shaw: “O americano branco relega o negro ao nível do engraxate; e concluí daí que só pode servir para engraxar sapatos”. Encontra-se esse círculo vicioso em todas as circunstâncias análogas: quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido numa situação de inferioridade, êle é de fato inferior; mas é sobre o alcance da palavra ser que precisamos entender-nos; a má-fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeliano: ser é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve perpetuar-se.

Muitos homens o desejam: nem todos se desarmaram ainda. A burguesia conservadora continua a ver na emancipação da mulher um perigo que lhe ameaça a moral e os interesses. Certos homens temem a concorrência feminina. No Hebdo-Latin um estudante declarava há dias: “Toda estudante que consegue uma posição de médico ou de advogado rouba-nos um lugar”. Esse rapaz não duvidava, um só instante, de seus próprios direitos sobre o mundo. Não são somente os interesses econômicos que importam. Um dos benefícios que a opressão assegura aos opressores é de o mais humilde destes se sentir superior: um “pobre branco” do sul dos E.U.A. tem o consolo de dizer que não é “um negro imundo” e os brancos mais ricos exploram habilmente esse orgulho. Assim também, o mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres. Era muito mais fácil a Montherlant julgar-se um herói quando se confrontava com mulheres (escolhidas, de resto, a dedo) do que quando teve de desempenhar seu papel de homem entre os homens: papel que muitas mulheres desempenharam melhor do que êle. É assim que, em setembro de 1948, em um de seus artigos do Vigoro Littéraire, o Sr. Claude Mauriac — cuja forte originalidade todos admiram — pôde escrever [6]: “Nós ouvimos numa atitude (sic!) de indiferença cortês… a mais brilhante dentre elas, sabendo muito bem que seu espírito reflete, de maneira mais ou menos brilhante, idéias que vêm de nós”. Não são evidentemente as idéias do próprio Sr. C. Mauriac que sua interlocutora reflete, dado que êle não tem nenhuma; que ela reflita idéias que vêm dos homens é possível: entre os homens mais de um considera suas muitas opiniões que não inventou; pode-se indagar se o Sr. Claude Mauriac não teria interesse em entreter-se com um bom reflexo de Descartes, de Marx, de Gide, de preferência a entreter-se consigo próprio. O que é notável é que mediante o equívoco do nós identifica-se êle com São Paulo, Hegel, Lênin, Nietzsche e do alto da grandeza deles considera com desdém o rebanho de mulheres que ousam falar-lhe em pé de igualdade. Para dizer a verdade, conheço muitas que não teriam a paciência de conceder ao Sr. Mauriac “uma atitude de indiferença cortês”.

Insisti nesse exemplo porque nele a ingenuidade masculina é desarmante. Há muitas outras maneiras mais sutis mediante as quais os homens tiram proveito da alteridade da mulher. Para todos os que sofrem de complexo de inferioridade, há nisso um linimento milagroso: ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade. Os que não se intimidam com seus semelhantes mostram-se também muito mais dispostos a reconhecer na mulher um semelhante. Mesmo a esses, entretanto, o mito da Mulher, o Outro, é caro por muitas razões [7]; não há como censurá-los por não sacrificarem   de bom grado todas as vantagens que tiram disso; sabem o que perdem, renunciando à mulher tal qual a sonham, ignoram o que lhe trará a mulher tal qual ela será amanhã. É preciso muita abnegação para se recusar a apresentar-se como o Sujeito único e absoluto.

Aliás, a grande maioria dos homens não assume explicitamente essa pretensão. Eles não colocam a mulher como uma inferior; estão hoje demasiado compenetrados do ideal democrático para não reconhecer todos os seres humanos como iguais. No seio da família, a mulher apresenta-se à criança e ao jovem revestida da mesma dignidade social   dos adultos masculinos; mais tarde êle sente no desejo e no amor a resistência, a independência, da mulher desejada e amada; casado, êle respeita na mulher a esposa, a mãe, e na experiência concreta da vida conjugai ela se afirma em face dele como uma liberdade. O homem pode, pois, persuadir-se de que não existe mais hierarquia social entre os sexos e de que, grosso modo, através das diferenças, a mulher é sua igual.   Como observa, entretanto, algumas inferioridades — das quais a mais importante é a incapacidade profissional — êle as atribui à natureza. Quando tem para com a mulher uma atitude de colaboração e benevolência, êle tematiza o princípio da igualdade abstrata; e a desigualdade concreta que verifica, não a põe. Mas, logo que entra em conflito com a mulher, a situação se inverte: êle tematiza a desigualdade concreta e dela tira autoridade para negar a igualdade abstrata[8].   Assim é que muitos homens afirmam quase com boa-fé que as mulheres são iguais aos homens e nada têm a reivindicar, e, ao mesmo tempo, que as mulheres nunca poderão ser iguais aos homens e que suas reivindicações são vãs. É que é difícil para o homem medir a extrema importância de discriminações sociais que parecem insignificantes de fora e cujas repercussões morais e intelectuais são tão profundas na mulher que podem parecer ter suas raízes numa natureza   original [9]. Mesmo o homem mais simpático à mulher nunca lhe conhece bem a situação concreta.    Por isso não há como acreditar nos homens quando se esforçam por defender privilégios cujo alcance não medem. Não nos deixaremos, portanto, intimidar pelo número e pela violência dos ataques dirigidos contra a mulher, nem nos impressionar com os elogios interesseiros que se fazem à “verdadeira mulher”; nem nos contaminar pelo entusiasmo que seu destino suscita entre os homens que por nada no mundo desejariam compartilhá-lo.

Entretanto, não devemos ponderar com menos desconfiança os argumentos dos feministas: muitas vezes, a preocupação polêmica tira-lhes todo valor. Se a “questão feminina” é tão absurda é porque a arrogância masculina fêz dela uma “querela” e quando as pessoas querelam não raciocinam bem. O que se procurou infatigavelmente provar foi que a mulher é superior, inferior ou igual ao homem. Criada depois de Adão, é evidentemente um ser secundário, dizem uns; ao contrário, dizem outros, Adão era apenas um   esboço e Deus alcançou   a perfeição do ser humano quando criou Eva; seu cérebro é o menor, mas é relativamente o maior; e se Cristo se fêz homem foi possivelmente por humildade. Cada argumento sugere imediatamente seu contrário e não raro ambos são falhos… Se quisermos ver com clareza devemos sair desses trilhos; precisamos recusar as noções vagas de superioridade, inferioridade, igualdade que desvirtuam todas as discussões e reiniciar do começo.
Como poremos então a questão? E, antes de mais nada, quem somos nós para apresentá-la? Os homens são parte e juiz; as mulheres também. Onde encontrar um anjo? Em verdade, um anjo seria mal indicado para falar, ignoraria todos os dados do problema; quanto ao hermafrodita, é um caso demasiado singular: não é homem e mulher ao mesmo tempo, mas antes nem homem nem mulher. Creio que para elucidar a situação da mulher são ainda certas mulheres as mais indicadas. É um sofisma encerrar Epimênides no conceito de cretense e os cretenses no de mentiroso: não é uma essência misteriosa que determina a boa ou a má-fé nos homens e nas mulheres; é a situação deles que os predispõem mais ou menos à procura da verdade. Muitas mulheres de hoje, que tiveram   a sorte de ver-lhes restituídos todos os privilégios do ser humano, podem dar-se ao luxo da imparcialidade; sentimos até a necessidade desse luxo. Não somos mais como nossas predecessoras: combatentes. De maneira global ganhamos a partida. Nas últimas discussões acerca do estatuto da mulher, a O.N.U. não cessou de exigir que a igualdade dos sexos se realizasse completamente e muitas de nós já não vêem em sua feminilidade um embaraço ou um obstáculo; muitos outros problemas nos parecem mais essenciais do que os que nos dizem particularmente respeito; e esse próprio desinteresse permite-nos esperar que nossa atitude será objetiva. Entretanto, conhecemos mais intimamente do que os homens o mundo feminino, porque nele temos nossas raízes; apreendemos mais imediatamente o que significa para um ser humano o fato de pertencer ao sexo feminino e preocupamo-nos mais com o saber. Disse que havia problemas mais essenciais,   o que   não impede que esse conserve a nossos olhos alguma importância: em que o fato de sermos mulheres terá afetado a nossa vida? Que possibilidades nos foram oferecidas, exatamente, e quais nos foram recusadas?   Que destino podem esperar nossas irmãs mais jovens e em que sentido convém orientá-las? E impressionante que em seu conjunto a literatura feminina seja menos animada em nossos dias por uma vontade de reivindicação do que por um esforço de lucidez; ao sair de uma era de polêmicas desordenadas, este livro é uma tentativa, entre outros, de verificar em que pé se encontra a questão.

Mas é sem dúvida impossível tratar qualquer problema humano sem preconceito: a própria maneira de pôr as questões, as perspectivas adotadas pressupõem uma hierarquia de interesses: toda qualidade envolve valores. Não há descrição, dita objetiva, que não se erga sobre um fundo ético. Ao invés de tentar dissimular os princípios que se subentendem mais ou menos explicitamente, cumpre examiná-los. Desse modo, não somos obrigadas a precisar em cada página que sentido se dá às palavras superior, inferior, melhor, pior, progresso, retrocesso etc. Se passamos em revista algumas dessas obras consagradas à mulher, vemos que um dos pontos de vista mais amiúde adotados é o do bem público, do interesse geral; em verdade, cada um entende, com isso, o interesse da sociedade tal qual deseja manter ou estabelecer. Quanto a nós, estimamos que não há outro bem público senão o que assegura o bem individual dos cidadãos. É do ponto de vista das oportunidades concretas dadas aos indivíduos que julgamos as instituições. Mas não confundimos tampouco a idéia de interesse privado com a de felicidade, ponto de vista que se encontra freqüentemente. As mulheres de harém não são mais felizes do que uma eleitora? Não é a dona de casa mais feliz do que a operária?   Não se sabe muito precisamente o que significa a palavra felicidade, nem que valores autênticos ela envolve. Não há nenhuma possibilidade de medir a felicidade de outrem e é sempre fácil declarar feliz a situação que se lhe quer impor. Os que condenamos à estagnação, nós os declaramos felizes sob o pretexto de que a felicidade é a imobilidade. É, portanto, uma noção a que não nos referimos. A perspectiva que adotamos é a da moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência; só alcança sua liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência cai na imanência, há degradação da existência em “em si”, da liberdade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se consentida pelo sujeito. Se lhe é inflingida, assume o aspecto de frustração ou opressão.   Em ambos os casos, é um mal absoluto. Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição   do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpètuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial.  Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? Que caminhos lhe são abertos? Quais conduzem a um beco sem saída? Como encontrar a independência no seio da dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais pode ela superar? São essas algumas questões fundamentais que desejaríamos elucidar. Isso quer dizer que, interessando-nos pelas oportunidades dos indivíduos, não as definiremos em termos de felicidade e sim em termos de liberdade.

É evidente que esse problema não teria nenhum sentido se supuséssemos que pesa sobre a mulher um destino fisiológico, psicológico ou econômico. Por isso, começaremos por discutir os pontos de vista da biologia, da psicanálise e do materialismo histórico acerca da mulher. Tentaremos mostrar, em seguida, que a mulher foi definida como o Outro e quais foram as conseqüências do ponto de vista masculino. Descreveremos então, do ponto de vista das mulheres, o mundo que lhes é proposto [10]; e poderemos compreender contra que dificuldades se chocam no momento em que, procurando evadir-se da esfera que lhes foi assinalada até o presente, elas pretendem participar do mitsein humano.

Notas

[1] Não se publica mais: chamava-se Franchise.
[2] O relatório Kinsey, por exemplo, limita-se a definir as características sexuais do homem norte-americano, o que é muito diferente.
[3] Essa idéia foi expressa em sua forma mais explícita por E. Levinas em seu   ensaio sobre Le Temps et l’Autre. Assim   se   exprime êle: “Não haveria uma situação em que a alteridade definiria um ser de maneira positiva, como essência? Qual é a alteridade que não entra pura e simplesmente na oposição das duas espécies do mesmo gênero? Penso que o contrário absolutamente contrário, cuja contrariedade não é em nada afetada pela relação que se pode estabelecer entre si e seu correlativo, a contrariedade que permite ao termo permanecer absolutamente outro, é o feminino. O sexo não é uma diferença específica qualquer. . . A diferença dos sexos não é tampouco uma contradição. . . Não é também a dualidade de dois termos complementares, porque esses dois termos complementares supõem um todo preexistente.. . A alteridade realiza-se no feminino. Termo do mesmo quilate mas de sentido oposto à consciência”.
Suponho que Levinas não esquece que a mulher é igualmente consciência para si.   Mas é impressionante que adote deliberadamente um ponto de vista de homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quando escreve que a mulher é mistério, subentende que é mistério para o homem. De modo que essa descrição que se apresenta com intenção objetiva é, na realidade, uma afirmação do privilégio masculino.
[4] Ver C. Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de la Parenté. Agradeço a Lévi-Strauss a gentileza de me ter comunicado as provas de sua tese que, entre outras, aproveitei amplamente na segunda parte, págs. 86-102.
[5] Ver segunda parte, págs. 151-152.
[6] Acreditou poder, pelo menos,
[7] O artigo de Michel Carrouges sobre esse tema, no número 292 do Cahiers du Sud, é significativo. Escreve com indignação: “Gostaríamos que não houvesse o mito da mulher, mas tão-somente uma corte de cozinheiras, de matronas, de meretrizes, de pedantes com funções de prazer e de utilidade”. O que significa que, a seu ver, a mulher não tem existência para-si; êle considera apenas sua função dentro do mundo masculino. Sua finalidade encontra-se no homem; então, com efeito, pode-se preferir sua “função” poética a qualquer outra. A questão está, precisamente, em saber por que se deveria defini-la em relação ao homem.
[8] O homem declara, por exemplo, que não vê sua mulher di minuída pelo fato de não ter profissão: a tarefa do lar é tão nobre quanto etc. Entretanto, na primeira disputa, exclama: “Sereis totalmente incapaz de ganhar tua vida sem mim”.
[9] Descrever esse processo será precisamente o objeto do segundo volume.
[10] Isso constitui o objeto do segundo volume.

*Originalmente publicado em: BEAUVOIR, Simone. Le Deuxiême Sexe: Le Faits et les Mythes. Paris: Gallimard, 1949. A versão partilha foi traduzida por Sérgio Milliet e publicada pela editora Difusão Européia do Livro no ano de 1980.

Fonte: Territórios de Filosofia

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