Mulheres de Olho
Livro discute sexualidade como desafio para o desenvolvimento
14 Jun 2008
Questões de Sexualidade–Ensaios Transculturais, foi lançado no Rio na quinta-feira, 12/06. Reúne textos de pesquisadores/as e ativistas de vários países e a tradução para o português foi coordenada pelo Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês). O original, IDS Bulletin–Sexuality Matters, foi organizado por Andréa Cornwall e Susie Jolly/ Programa em Sexualidade e Desenvolvimento do Institute for Development Studies (IDS/ Universidade de Sussex/Inglaterra). Os relatos oferecem uma profícua noção transcultural da sexualidade.
Mulheres de Olho entrevistou Sonia Corrêa, autora de um dos 21 artigos do livro. Ela é co-coordenadora da SPW e pesquisadora associada da ABIA, ONG brasileira onde está sediada a Secretaria Executiva da SPW.
Mulheres de Olho - Qual a importância de se divulgar, no Brasil, experiências inovadoras e bem-sucedidas na defesa dos direitos sexuais em outros lugares do mundo?
SC – A publicação traz tanto artigos que tratam de intervenções no campo da sexualidade, dos direitos sexuais, da violência sexual, quanto textos mais conceituais e teóricos, sobre os desafios de desenvolver uma grade conceitual e aplicar politicamente direitos no campo da sexualidade. No Brasil ainda é muito limitado o acesso a essa literatura. Os artigos em geral não são traduzidos para o português, a não ser no campo acadêmico onde é possível encontrar alguma coisa. Mas a literatura mais prática, das experiências, é mais inacessível.
Outro aspecto fundamental é que os autores e autoras que compõem a publicação são tanto da Europa e Estados Unidos, quanto majoritariamente dos países em desenvolvimento. Isso também é uma novidade, porque a literatura que chega ao Brasil e é traduzida, na maioria das vezes é produzida na Europa e Estados Unidos. Entre os textos mais conceituais e teóricos, dois artigos são de um autor e uma autora indianos; há um belo texto sobre travestis, gênero, sexualidade e feminismo de um autor peruano; um belo texto que problematiza a categoria homens que fazem sexo com homens, de um autor caribenho.
Há também pesquisas e investigações bastante inéditas, sobre práticas sexuais em outros contextos culturais como, por exemplo, o artigo da Sylva Tamale sobre a Ssenga, que é uma prática secular de iniciação sexual presente em Uganda, mas também em outros países da África do Leste. A Ssenga acontece no interior das famílias estendidas, para habilitar jovens mulheres a sentir e dar prazer sexual. Elas aprendem o alongamento dos lábios, o reconhecimento do clitóris… e Sylvia analisa como, ao longo das últimas décadas, essa prática vem sendo alterada, para ser oferecida no mercado de serviços. A Ssenga passou a ser oferecida na capital, Campala, como serviço comercial que inclui colunas de jornal e programas de rádio sobre prazer na sexualidade. A autora chama atenção para o fato de que a Ssenga, assim como práticas semelhantes em outras culturas africanas, está completamente obscurecida pelo imaginário que se produziu a respeito da mutilação genital feminina. Quando se fala em África, sexualidade e mulher a primeira idéia que vem é a imagem da mutilação. Desconstruir esse imaginário produzido ao longo dos últimos anos é um exercício muito instigante.
Mulheres de Olho - Você citaria um exemplo de experiência internacional que enfrente questões que estão hoje na pauta do dia da sociedade brasileira?
SC – Há vários textos que tratam de violência sexual, principalmente, mas de gênero também, e há vários artigos sobre experiências engenhosas de prevenção de HIV/ Aids. Há um estudo muito interessante sobre as mulheres jovens de uma favela em Bangladesh, que são forçadas a casar muito cedo. A autora analisa tanto a situação de violência a que essas jovens estão submetidas, quanto a dificuldade de se protegerem de doenças sexualmente transmissíveis, da gravidez indesejada. Entretanto, significativamente, as entrevistas também revelam um campo de agenciamento das mulheres em relação à sexualidade: como essas jovens usam suas habilidades sexuais para conseguir coisas como recursos e poder.
Mulheres de Olho – Haveria uma correlação com as queixas que se faz à Lei Maria da Penha, afirmando que ela não considera que as mulheres também praticam violência doméstica?
SC - Os artigos falam mais do lugar que o discurso sobre a violência de gênero e a violência sexual tende a apagar. A sexualidade é um lugar de exercício de poder das mulheres, mesmo que não seja com uma expressão violenta. Mas elas têm margens de manobra, de resistência, de sedução, de usar a sexualidade e seu poder sexual para conseguir coisas. Esse é um traço também da sociedade brasileira, e também aqui obscurecido pela dominância do discurso da vitimização. Nesse sentido pode-se fazer certo paralelo.
O livro traz também um artigo muito interessante sobre a apresentação dos Monólogos da Vagina em Belgrado, no contexto da campanha do V Day (Dia contra a Violência às Mulheres). Nele se descreve as celebridades que foram convidadas e a reação da platéia. Há também vários relatos e análises sobre experiências de prevenção do HIV/ Aids que são inspiradores. E um artigo sobre trabalhadores sexuais masculinos em Calcutá, Índia, em que o autor chama atenção para o fato de que é importante estabelecer uma relação com os donos das casas de massagem, aonde a maior parte do sexo comercial entre homens acontece, porque eles são os poderosos do pedaço. Antes de ser educador, o autor foi trabalhador sexual, e ele sabe do que fala ao mostrar como você não vai conseguir fazer prevenção com esses trabalhadores sexuais masculinos se não negociar com os patrões.
Há também dois textos sobre a importância de adotar abordagens de prevenção do HIV que considerem a questão do prazer e do desejo, sem cair na vala comum do discurso que só fala de riscos, de morte, de doença. Uma vez mais, embora a coordenação desses projetos esteja na Inglaterra, eles são desenvolvidos na Indonésia, na África Ocidental e também na Europa do Leste. As autoras mostram como a resposta dos grupos trabalhados frente à abordagem adotada é positiva nos contextos os mais diversos.
Mulheres de Olho – Você acha que esta leitura será benéfica para o debate brasileiro sobre educação sexual nas escolas?
SC - Para quem faz educação sexual, seja em trabalhos de intervenção de HIV ou nas escolas este livro traz, em primeiro lugar, uma visão sobre a variabilidade das práticas sexuais. Revela o quanto as inquietações com a sexualidade e a aspiração pelo prazer sexual estão presentes em todas as culturas, e não são um viés da cultura ocidental, moderna, branca, européia. O artigo de Deevia Bhana é uma contribuição especial. Ela fez uma pesquisa com crianças muito pequenas, entre quatro a sete anos, em uma escola de comunidade pobre negra da província sul-africana de KwaZulu-Natal. Ela explorou a percepção acerca da sexualidade e do HIV/Aids, revelando que essas crianças sabem sobre sexo, se interessam por sexualidade, sabem do HIV. A pesquisa quebra com o discurso tradicional sobre a inocência infantil, e também indica que não só as crianças se interessam pelo sexo como já obsorveram, em grande medida, o imaginário, as representações dominantes sobre sexo e HIV que ouvem dos adultos. Elas falam de suas curiosidades de maneira muito aberta, mas em relação a algumas coisas elas apenas reproduzem o que já ouviram dos adultos, uma coisa inculcada.
Mulheres de Olho – Para uma abordagem deste tipo é importante considerar teorias como a freudiana de que o aprendizado da sexualidade passa pelo aprendizado sobre o próprio corpo.
SC - Sim! Mas quem tem acesso a essas teorias? Esse é o problema! A maior parte dos professores e das pessoas da sociedade, mantém a percepção dominante que ainda é a da inocência infantil, a de que a infância é um lugar sem sexo e que o sexo começa na adolescência. Você pode fazer uma pesquisa Ibope que vai achar isto.
Mulheres de Olho – No caso brasileiro, onde a mídia banaliza a sexualidade, percepções de que a inocência infantil vigora podem ser mais raras?
SC - No Brasil isto pode ter se alterado um pouco. Mas se você cascavilhar as pessoas vão dizer – “Isto está acontecendo, mas antes disso as crianças eram inocentes: elas agora estão ficando pouco inocentes”. Curiosamente, quando Deevia apresentou o caso em Brighton (Inglaterra), no seminário que deu origem a este livro, eu perguntei se por acaso lhe tinha ocorrido perguntar se as crianças tinham se masturbado. É uma pergunta óbvia, a partir de quem conhece a teoria freudiana. E ela disse: -“Não!” Depois ela declarou que a pergunta foi oportuna, pois lhe possibilitou dar-se conta de que ela mesma estava presa num certo imaginário. – “Aí fui ler Freud, e outros autores!”… isto aconteceu com uma pesquisadora que tinha ido a campo para contestar a idéia de inocência e que tinha passado ao largo de que o aprendizado da sexualidade passa pelo aprendizado do próprio corpo. Isto mostra como é persistente e profunda essa representação. Ela está dando continuidade o estudo, o que na África do Sul é de uma ousadia enorme. Claro! Ela teve que vencer barreiras morais pesadas, enfrentar professores/as, para poder fazer essa pesquisa.
Mulheres de Olho – Este livro faz parte do projeto Sexualidade e Desenvolvimento do IDS. Como se dá a correlação entre os dois temas?
SC – O IDS é uma das instituições mais importantes do pensamento sobre desenvolvimento, que é a moldura mais geral desta publicação. Isto aparece muito na apresentação feita pelas organizadoras, e no meu texto, que na verdade é um power point que apresentei no seminário de Brighton. O objetivo com o seminário e a publicação é iniciar um diálogo com o campo progressista -mas ainda convencional- do desenvolvimento, no sentido de chamar atenção para o fato de que sim, a sexualidade é um tema do desenvolvimento. Não é um tema alheio. Seja quando se fala de Educação, do HIV/ Aids, de Cultura, Religião, Economia, o tema da sexualidade está presente. E há uma enorme resistência, ignorância, desprezo, desconsideração, na corrente PRINCIPAL do debate sobre desenvolvimento. A sexualidade continua sendo um tema ou inexistente ou marginal. Quando muito, ele é tratado pela via do HIV, ou pela via do planejamento familiar, da maneira mais destorcida e obscura, mas ele não é o tema central das conversações. A publicação faz parte desse esforço do IDS de dialogar com o que chama da “indústria do desenvolvimento”, com a cooperação bilateral, as agências de cooperação, sobre essa idéia de pensar a sexualidade como tema legítimo da conversa sobre desenvolvimento, e não como uma externalidade, como dizem os economistas: - “Essas coisas sobre as quais não podemos fazer nada”. Eles fazem as equações, e o que não cabe na equação eles chamam de externalidade. E externalidade se considera como dado da realidade, algo que não é construído, não é transformável, a não ser que afete o desenvolvimento, como foi o caso do HIV e Aids. A morbidade e a mortalidade por HIV começou a afetar as taxas de crescimento dos países, e isto forçou considerar que talvez não fosse tão externalidade assim. Mas ainda estamos muito longe disso.
Serviço:
A partir desta quarta-feira, 16/06, a versão eletrônica de Questões de Sexualidade–Ensaios Transculturais estará disponível no site do SPW, assim como links para as traduções em árabe, mandarim, espanhol e francês. A versão impressa da publicação pode ser solicitada gratuitamente pelo e-mail mailto:admin@sxpolitics.org
Informações com Marina Maria: 55+21+22231040
Por Angela Freitas/ Instituto Patrícia Galvão
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