Mulheres de Olho
“A proibição do aborto é uma indevida interferência do estado”
01 Jul 2008
No artigo “Excesso de confiança”, publicado nesta terça-feira na página 7 do jornal O Globo, a advogada Letícia Jost Lins e Silva aponta para um aspecto pouco explorado no que diz respeito à descriminalização do aborto. Letícia discute o fato de que, como indicam as pesquisas, os cidadãos não confiam nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas ainda assim, se mantém a disposição de recorrer a esses mesmos poderes nos quais não se confia, para tomadas de decisões que, considera ela, deveriam ser do âmbito privado. Ela cita o caso do aborto como uma dessas decisões de “indevida interferência”:
“Não são contra a vida as pessoas e as nações que vêm se posicionando pela descriminalização do aborto e pela transferência da responsabilidade dessa decisão para o âmbito privado”.
Letícia relata o drama de uma mulher que recorreu a ela com a finalidade de obter autorização judicial para interromper a gestação de um feto anencefálico e diz que, por conta dessa defesa, conheceu o poema “Sobre a infanticida Maria Farrar“, de Bertold Brecht, que reproduzimos aqui, numa tradução para o portugês de Portugal:
Sobre a infanticida Maria Farrar, de Bertolt Brecht
Maria Farrar, nascida em Abril,
menor, sem sinais particulares, raquítica, orfã,
sem qualquer condenação anterior, ao que se julga,
é acusada de ter assassinado uma criança, da seguinte forma:
Conta ela que já no segundo mês
em casa de uma mulher, num sótão,
tentou expulsá-lo com duas injecções
dolorosas, como se calcula, mas não saíu.
Não se indignem por favor,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Assegura contudo, ter pago de imediato
o estipulado, ter continuado a apertar a cintura,
ter também tomado aguardente com pimenta moída,
o que apenas serviu de forte purgante.
O corpo estava inchado e sentia também
dores freqüentes quando lavava os pratos.
Estava ainda em idade de crescer, segundo ela própria dizia.
Rezou à Virgem Maria com muita fé.
a vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
As orações, ao que parece, não serviram de nada.
Pedia-se demasiado. Quando já estava mais cheia
sentia vertigens durante a missa. Suava muito.
E também suava de medo, com freqüência, diante do altar.
Mas fez segredo sobre o seu estado
até ser surpreendida pelo nascimento.
Isto resultou, pois ninguém pensava
que ela, tão pouco atraente, pudesse ser presa de tentação.
E também a vós, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Nesse dia, diz, bem cedinho,
estando a limpar as escadas, sentiu como que umas unhas
a arranhar-lhe o ventre. A dor
sacudia-a, mas conseguiu manter-se calada.
Todo o dia, enquanto estendia a roupa que lavou,
pensou e tornou a pensar, até se dar conta,
de coração apertado, que tinha mesmo que parir.
Só tarde subiu para o quarto.
A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Quando estava deitada, vieram chamá-la;
tinha nevado e teve que varrer.
O trabalho durou até às onze. Foi um dia bem longo
Só pela madrugada pôde parir em paz.
Conta ela que pariu um filho.
O filho era igual aos outros filhos.
Mas ela não era como as outras, embora…
Não há motivo para brincadeiras.
A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Assim, pois, deixemo-la contar
o que sucedeu com este filho
(diz ela que não quer esconder nada)
para que se veja como somos.
Diz que ficou pouco tempo na cama
angustiada e sozinha;
sem saber o que aconteceria a seguir
obrigou-se a conter com esforço os gritos.
A vós também, peço que não se indignem
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Como o quarto também estava gelado,
segundo diz, arrastou-se com as últimas forças
até à latrina e ali
(quando, já não se recorda) pariu
sem ruído até ao amanhecer.
Estava, diz ela, muito perturbada nesse momento,
já meio entumescida, mal podia segurar o menino
prestes a cair na latrina dos criados.
A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Então, quando ía da retrete para o quarto
- antes, diz ela, não aconteceu nada - a criança
começou a gritar. Isso afligiu-a tanto
que se pôs a bater-lhe com os dois punhos,
cega sem parar até a criança ficar quieta.
Então, levou o morto
consigo para a cama durante o resto da noite
e pela manhã escondeu-o na lavanderia.
A vós também, peço que não se indignem,
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Maria Farrar, nascida em Abril,
falecida na prisão de Meissen,
mãe solteira, condenada,
quer mostrar-vos os crimes de todo o ser humano.
Vós que paris sem complicações em lençóis lavados
e chamais “bendito” ao vosso ventre prenhe,
não condeneis estas infames fraquezas
porque, se o pecado foi grave, o sofrimento também foi grande.
Por isso peço que não se indignem
pois toda a criatura precisa da ajuda de todos.
Angela Freitas/Instituto Patrícia Galvão
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