Artigo do Mês
Três questões aos movimentos sociais “progressistas”: contribuições da teoria feminista à análise dos movimentos sociais
Jules Falquet
Examinando há quinze anos diversos movimentos sociais considerados como especialmente “progressistas” (em particular, lutas revolucionárias ou movimentos pioneiros da luta contra a globalização neoliberal), gostaria de compartilhar aqui uma reflexão que se refere aos limites invisíveis, impensados – ou pensados de maneira insuficiente – destes movimentos.
Trata-se de movimentos de massa, que se desenvolveram em mais de vinte anos e que despertaram, internacionalmente, o interesse de numeroso-a-s militantes e analistas. A guerrilha da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), em El Salvador, cristalizou um dos principais projetos revolucionário e antiimperialista latino-americano da década de 80. O movimento zapatista, em torno do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), no México, desempenhou um papel importante no desencadeamento da atual resistência à globalização neoliberal. O Movimento dos Sem Terra (MST), no Brasil, constitui uma referência de luta camponesa pela terra e faz também parte dos pilares da luta contra o neoliberalismo.
Estes movimentos enfrentam, de maneira vigorosa, o sistema de exploração capitalista, o EZLN denuncia nitidamente o racismo. Porém, no que se refere à opressão sexista, uma primeira constatação: todos fracassam quando se trata de ir além das simples declarações de princípios. Para movimentos emblemáticos de uma transformação social radical, e nos quais participam muitas mulheres, como explicar este fracasso num campo tão importante? Segunda constatação: a sociologia dos movimentos sociais muito pouco se debruçou sobre este paradoxo que, no entanto, deveria ser investigado. Exceto os trabalhos pioneiros de Danièle Kergoat sobre o caráter sexuado dos movimentos sociais (Kergoat, 1992) e algumas pesquisas que ela inspirou (Le Doaré, 1991; Dunezat, 1998; Galerand, 2004), a sociologia dos movimentos sociais se contentou, via de regra, em repetir o “discurso nativo” dos próprios movimentos, que se limitam, geralmente, em afirmar que a participação das mulheres constitui, em si, um motivo de satisfação e que, ao mesmo tempo, tal participação enfrenta numerosas dificuldades (e as detalham numa longa lista, em última análise, bastante repetitiva). Todavia, nunca é abordada a questão das lógicas profundas dos movimentos em termos de relações sociais de sexo.
No entanto, existem instrumentos teóricos que poderiam permitir a análise do conservantismo subjacente destes movimentos progressistas. Forjados nos movimentos sociais feministas e depois rearticulados pelas ciências sociais, eles permitem formular três grandes questões aos movimentos sociais. Qual é a divisão sexual do trabalho que os movimentos reproduzem no interior deles mesmos ? Quais são os tipos de famílias sobre os quais estes movimentos se apóiam para se construir e quais modelos de família estruturam os seu projeto de sociedade? E, para os movimentos ligados explicitamente à defesa ou à promoção desta ou daquela cultura (uma questão efervescente no contexto da globalização neoliberal): em que medida esta cultura é favorável às mulheres ? Profundamente ligadas, estas três questões são fundamentais, pois a divisão sexual do trabalho, o modelo de família e a “cultura” estão entre os principais pilares do sistema patriarcal de opressão. Apresentarei aqui minha análise em três momentos, correspondendo às questões mencionadas acima.
1. Divisão sexual do trabalho e processo de produção de uma revolução
Para abordar a questão da divisão sexual do trabalho nos movimentos sociais, utilizarei o exemplo de El Salvador que é o ponto de partida de minha reflexão. Com efeito, demorei muito para explicar, para mim mesma, porque, apesar da muito forte participação das mulheres no projeto revolucionário e das transformações provocadas por mais de vinte anos de luta armada, as relações sociais de sexo tinham sido tão pouco modificadas no país.
Organização marxista-leninista fortemente influenciada pela Teologia da Liberação, a FMLN foi fundada em 1980, aglutinando um projeto revolucionário nacional. Deste fato, seu caso serve particularmente bem à análise: oferece não somente as características “ótimas” de um movimento social (forte participação, grande envergadura social, longa duração), mas apresenta também um modo de organização bem mais denso que a maior parte dos movimentos sociais e um projeto muito mais definido – a tomada do poder central do Estado e a implantação de uma alternativa global. Mas seu caráter revolucionário e a longa guerra civil (doze anos) embaralharam a reflexão. Com efeito, como analisar serenamente um movimento carregando esperanças tão globais – e apontar suas fragilidades –quando, sobretudo, a brutalidade excepcional da guerra e da repressão suscitava, de alguma forma, se não a simpatia, pelo menos o respeito?
Ora, são exatamente o caráter revolucionário do projeto da FMLN e os sacrifícios realizados por este ideal que justificam – exigem? – analisar o movimento com toda lucidez possível e “lhe interrogar” por seu fracasso em transformar as relações sociais de sexo, apesar dos efeitos provocados pelo anúncio de um “Homem Novo” e de uma “Mulher Nova”. Retomarei aqui brevemente as conclusões de uma reflexão anterior (Falquet, 2003).
A. Análises clássicas da participação das salvadorenhas
A participação das mulheres no projeto revolucionário era considerável: um terço das forças diretamente político-militares (guerrilheiras) e, freqüentemente, a maioria nas organizações civis. Esta forte participação não tinha nada de “natural”: as mulheres tiveram que lutar, primeiro, para ganhar o “direito” de participar – sobretudo as mulheres de origem rural e popular – e, em seguida, para tornar visível esta participação. Mais tarde, sua presença e seu engajamento foram destacados pela FMLN para ganhar a simpatia da opinião pública nacional e internacional, apresentando tal participação como um avanço social e político, uma vitória, uma transformação objetiva da situação das mulheres – outros avanços devendo ocorrer na medida que a revolução se complete. Esta linha de análise predominou durante muitos anos, apoiada sobre os interesses da FMLN e sobre a sensibilidade marxista clássica. Todos os testemunhos da época, publicados com o timbre da FMLN, realçavam esta “participação como um avanço” (Alegría, Flakoll, 1987; Carter, Loeb, 1989; Guirola de Herrera, 1983; Thomson, 1986).
O fim da guerra favoreceu o surgimento de análises críticas, mesmo que de pouco alcance, produzidas coletivamente no seio do movimento feminista, que se desenvolve então com vigor. O grupo das Mujeres por la Dignidad y la Vida, no qual encontram-se muitas das ex-combatentes, se lança numa análise do vivido pelas mulheres durante a guerra. Em particular, elas trabalham sobre as implicações do fato de que as ex-guerrilheiras fossem obrigadas a deixar seus filhos para participar da revolução (MDV, 1993), realizando ao mesmo tempo um processo de terapia coletiva mais amplo entre ex-guerrilheiras com a ajuda de psicólogas feministas. Disto resultou uma publicação, “A dor invisível da guerra”, que mostra como, durante toda a guerra, as mulheres tiveram que assumir o trabalho de luto e de apoio emocional aos implicados e como, simultaneamente, elas tiveram que se tornar “fortes e duras” para poder sobreviver nos fronts e enfrentar à repressão (Garaízabal, Vásquez, 1994). Estas análises mostram a “participação” sob um olhar menos “exultante” e revelam como as mulheres puderam ser divididas entre as obrigações impostas por sua socialização feminina “clássica” e os “novos papéis” ou “novas identidades”. Contudo, nenhuma destas análises – marxistas clássicas ou mais feministas – permite compreender o que advém destas “novas identidades” uma vez a guerra acabada e, menos ainda, porque as relações sociais de sexo mudaram tão pouco, apesar dos doze anos de guerra e vinte anos de processo revolucionário (MDV, 1995; Navas Turcios, 1995).
B. Contribuições da sociologia feminista: análise da divisão sexual do trabalho revolucionário
Para obter uma explicação mais satisfatória, era necessário “dessacralizar” o processo revolucionário e retirar da guerra seu caráter de período excepcional para lhe aplicar os instrumentos sociológicos desenvolvidos em tempos de paz. Com todo o respeito que é devido à luta das revolucionárias salvadorenhas, deve-se reconhecer que o processo revolucionário não foi apenas um gesto heróico, mas um longo, paciente, complexo e contraditório processo de construção de organização e de luta. Em outros termos, trata-se de um trabalho de produção de um processo revolucionário: é, portanto, assim que deve ser analisado.
À interseção da antropologia, da sociologia e da teoria feminista, o conceito de divisão sexual do trabalho nos fornece um instrumento particularmente importante. Danièle Kergoat, socióloga francesa do trabalho, a define como “a forma de divisão do trabalho social oriunda das relações sociais de sexo, historicamente e socialmente construída. Caracteriza-se pela designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva, assim como, simultaneamente, a captação pelos homens das funções possuidoras de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc.)”. A divisão sexual do trabalho “tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos dos homens e trabalhos das mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais do que um trabalho de mulher)” (Kergoat, 2000).
A partir deste ângulo, quando se observa o processo revolucionário salvadorenho e, em particular, o funcionamento da FMLN, percebe-se melhor até que ponto a divisão sexual do trabalho em tempos de paz foi reconduzida, quase intacta, nos fronts e no seio das organizações revolucionárias.
Em relação ao tipo de trabalho realizado conforme o sexo e as condições de trabalho, muitas semelhanças podem ser observadas. Inicialmente, constata-se uma segregação da maior parte das mulheres num número reduzido de atividades: cozinha2, saúde, comunicação e educação. Da mesma forma que na vida civil, as mulheres ocuparam majoritariamente posições subordinadas, enquanto que os homens eram geralmente seus superiores. As mulheres estavam em situação de maior precariedade do que os homens: sua incorporação era mais difícil e, freqüentemente, mais parcial (ciúmes do marido, crianças a cuidar); quando elas interrompiam sua participação (em razão de uma gravidez mais ou menos desejada), perdiam em geral sua patente militar. Ademais, seus “contratos” foram sempre menos claros do que aqueles dos seus camaradas masculinos (seu pertencimento à organização estando muitas vezes mediatizado e “privatizado” através de laços familiares e amorosos que as uniam aos guerrilheiros). Enfim, do mesmo modo que no trabalho em tempo de paz, as mulheres tiveram que enfrentar o assédio sexual, a violência e o estupro cometidos por seus camaradas e superiores (MDV, 1995).
Quanto ao reconhecimento e à retribuição do seu trabalho revolucionário, as similaridades são também flagrantes. As qualificações das mulheres não eram reconhecidas como tais, mas vistas como “dons naturais” (saber cozinhar ou cuidar dos feridos). Quando mulheres começaram a ocupar certas funções, estas perdiam valor (quando uma mulher era nomeada chefe de front, o partido passava, em regra geral, a dar menos atenção a este front), enquanto que, tornando-se mais técnica, uma tarefa tendia a se masculinizar (quando as organizações tornaram-se não somente políticas, mas militares, nenhuma mulher, desde então, foi designada comandante). Como na vida civil, o trabalho realizado pelas mulheres tornou-se invisível ou menosprezado. Por vezes, nem era considerado como trabalho (nem as horas passadas ao lado das redes dos doentes, nem as mochilas costuradas durante a noite, nem a “dor invisível” do luto, mencionada acima, nem o prazer sexual e o apoio emocional que elas forneceram aos seus companheiros, quando não tiveram reciprocidade). As retribuições, materiais e simbólicas, refletiram o frágil reconhecimento do seu trabalho: as mulheres obtiveram menos promoções do que os homens; foram, com menor freqüência, reconhecidas e honradas como heroínas e receberam menos apoio de sua organização para a reinserção na vida civil depois da guerra (notadamente, nos “reencontros” com seus filhos, em relação ao acesso à terra e aos créditos, assim como elas obtiveram menos candidaturas elegíveis nas listas da FMLN nas eleições que se sucederam após a guerra). Não somente as mulheres foram pouco retribuídas por sua participação, mas também foram comumente elas que financiaram a guerra: muitíssimas organizações civis de mulheres forneciam seus recursos materiais, humanos e financeiros à FMLN, por vezes com todo conhecimento de causa e por vezes em razão de desvios praticados pelo partido sem seu consentimento (MDV, 1993b).
Outra questão se refere ao fato de que as mulheres, comumente, foram trabalhadoras da revolução marginalizadas em relação aos seus companheiros. Em geral, exigia-se “conciliar” trabalho revolucionário e responsabilidades familiares – o que foi muito pouco solicitado dos homens. Esforços foram realizados para desencarregar as mulheres dos cuidados com os filhos, mas globalmente foram insuficientes e muitas vezes “privatizados” na medida em que as mães dos combatentes se encarregaram das crianças. Ninguém pensou em aliviar sistematicamente as mulheres dos cuidados com os idosos e os enfermos. Freqüentemente, elas tiveram que escolher entre a sua relação amorosa ou matrimonial e o seu desenvolvimento político à medida que passavam a ocupar maiores responsabilidades: ao contrário dos dirigentes masculinos, muitas comandantes viveram de maneira muito solitária (Harnecker, 1994)3. Por outro lado, elas foram menos protegidas diante dos “riscos da atividade” – ora, a repressão e a tortura eram consideravelmente sexuadas, o exército perseguindo deliberadamente as mulheres. Embora mais homens que mulheres perderam a vida lutando, são simetricamente em maior número as mulheres que se encontraram viúvas ou órfãs, encarregadas de famílias traumatizadas e sem recursos. Simultaneamente, foram majoritariamente as mulheres (mães, esposas e filhas) que foram encarregadas do apoio às pessoas encarceradas, da busca pelos desaparecido-a-s e da luta pelos direitos da pessoa, o que se poderia novamente qualificar como “privatização” destes trabalhos.
Com certeza, muita reflexão ainda é necessária sobre este exemplo salvadorenho, lembrando notadamente que a situação das mulheres e dos homens oscilava muito em função de suas origens de classe (e de seu pertencimento étnico, que era, todavia, muito mais homogêneo). Contudo, constata-se que uma análise em termos de divisão sexual do trabalho permite entender o “incompreensível”: a pouca evolução da situação das mulheres salvadorenhas se associa, em grande medida, à manutenção de uma divisão sexual do trabalho extremamente tradicional no seio do movimento social, que possuía, no entanto, a pretensão de transformar profundamente a sociedade.
2. A opressão das mulheres no seio da família: uma cômoda praxe impensada
Raros são os movimentos sociais que refletem explicitamente sobre o tipo de modelos familiares nos quais eles se apóiam e sobre aqueles que preconizam. Tratando-se efetivamente de uma instituição complexa, a família pode se mostrar tanto como um lugar de opressão, de exploração e de violência, quanto como um refúgio contra uma sociedade global racista e classista. Seja como for, os (diversos) modelos familiares subjacentes às mobilizações sociais – associados à organização das relações sociais de sexo que eles implicam: notadamente, o “modo de produção doméstico”, evidenciado por Christine Delphy (1998), as “relações de sexagem”, descritas por Colette Guillaumin (1992), e o “regime político da heterosexualidade”, definido por Monique Wittig (2001) – merecem ser ressaltados e investigados, ainda mais que nos movimentos rurais, camponeses e/ou indígenas, a mobilização simbólica e material da família é uma das chaves do funcionamento, e inclusive do sucesso, do movimento.
A. Reciclagem das estruturas patriarcais no seio da “grande família” revolucionária
Os exemplos da FMLN em El Salvador e do EZLN no México nos mostram como um certo modelo simbólico da família e de suas estruturas reais foi utilizado tanto para mobilizar a população como para reforçar as estruturas da organização.
Em El Salvador – como, mais recentemente, em Chiapas e em muitas outras guerras de liberação e guerrilhas populares – quando o exército praticava uma política de terra arrasada no início dos anos 80, famílias inteiras fugiam e buscavam a proteção da guerrilha. Com muita freqüência, todos os membros sadios da família acabavam por se incorporar na FMLN (Falquet, 1996). Mesmo quando a incorporação era fruto de um processo individual progressivo e demorado de reflexão, era freqüente o ingresso gradual de seus familiares próximos na organização, sobretudo nas zonas rurais, camponesas. Nem sempre foi o homem (marido, primogênito) que “arrastava” toda sua família: muitas mães e companheiras estiveram na origem da mobilização (Alegría, Flakoll,1987). Esta incorporação familiar constitui um método particularmente eficaz de recrutamento e de consolidação das “bases” (é mais difícil deixar uma organização na qual militam uma irmã, um pai, uma esposa). Ademais, para simultaneamente moderar e reforçar a rigidez das regras militares e das hierarquias, era útil poder mobilizar em paralelo a autoridade paterna, materna ou conjugal. Nos menores partidos da FMLN, muitos jovens recrutados não obedeciam apenas às ordens de um chefe de batalhão, mas de um pai, de um tio ou de um irmão mais velho, enquanto que inúmeras mulheres tinham diante delas, ao mesmo tempo, um chefe militar e um marido ou um companheiro. Este mesmo fenômeno ocorre no EZLN.
De fato, muitas organizações revolucionárias operam com a idéia de que elas são “uma grande família”, os exemplos em El Salvador são abundantes. As Forças Populares de Liberação (FPL, a maior organização da FMLN) utilizaram fartamente esta imagem: durante muitos anos, seus dois principais dirigentes, Marcial e Ana María, encarnaram a mãe e o pai simbólicos da organização. Ora, não se trata apenas de uma poderosa metáfora, mas também de uma realidade material: num front, o grupo guerrilheiro torna-se unidade de produção, de consumo e de apoio afetivo que substitui a família. É a organização que alimenta, que veste, que protege. Ademais, muitos dos membros da guerrilha eram muito jovens e, por vezes, órfãos-ãs, o que ajuda a explicar toda a força que pode adquirir esta família “substituta”, às vezes a única que elas e eles tenham conhecido.
Mas trata-se de qual família? No caso de El Salvador, tratava-se claramente de uma família que reproduzia a divisão sexual do trabalho tradicional, apesar de algumas tentativas de implantação de creches e de levar os homens para a cozinha. Trata-se de uma família que controlava a fecundidade e, até um certo ponto, a moralidade de “suas filhas”, que tentava também regular, em benefício próprio, as uniões e separações, favorecendo a endogamia e guardando silêncio sobre as violências físicas, emocionais e sexuais praticadas em seu seio contra, notadamente, as mulheres. E, como na vida civil, as mulheres ou as organizações de mulheres que desejaram denunciar publicamente estas violências no interior da grande família revolucionária, enfrentaram as piores dificuldades e foram acusadas de atentar contra o projeto coletivo – como mostra o exemplo da CONAMUS (Coordinadora Nacional de las Mujeres Salvadorenas), a primeira organização de mulheres a lutar durante a guerra contra a violência dirigida às mulheres (Falquet, 1996).
B. Reivindicações das índias zapatistas: desestabilização da família patriarcal?
O movimento zapatista se apresenta de uma maneira um pouco diferente em relação à família pois, desde o início, o EZLN divulgou formalmente uma “Lei Revolucionária das Mulheres”, produzida pelas índias zapatistas, cujo espírito poderia questionar profundamente toda uma parte das estruturas familiares e comunitárias tradicionais (Falquet, 1999).
Com efeito, em sua primeira versão, esta lei indica, entre outras coisas, que as mulheres não podem ser forçadas ao casamento, têm o direito de decidir o número de filhos e não podem ser maltratadas nem por estranhos, nem por familiares. A lei acrescenta que elas têm o direito de estudar, de trabalhar e de receber um salário justo (Rojas, 1994). À primeira vista, estas reivindicações parecem clássicas. Porém, se as mulheres escolhessem livremente com quem se casar, ou de não se casar, e quantos filhos ter, as estruturas comunitárias e familiares, sobre as quais repousa a sobrevivência das comunidades indígenas, poderiam ser diretamente ameaçadas. Por exemplo, as alianças matrimoniais são capitais para o acesso à terra e à coesão das aldeias, assim como a fecundidade das mulheres se associa diretamente à “resistência demográfica”, que as populações indígenas demonstraram ao longo de mais de 500 anos de tentativas de todo tipo de extermínio e assimilação. Caso as índias falassem espanhol e possuíssem diplomas, permitindo obter um trabalho digno fora das comunidades, cabe perguntar se elas transmitiriam sua língua às suas crianças e permaneceriam bordando docilmente na aldeia, enquanto os homens emigram?
É verdade que há um abismo entre a lei e sua aplicação. As pesquisas que pude realizar mostram que esta lei é pouco conhecida nas comunidades, mesmo zapatistas, inexistindo mecanismos nem de efetivação, nem de vigilância e nem tampouco de sanção para apoiá-la (Rovira, 1996; Palomo, Lovera, 1997). Ademais, o estabelecimento, um ano mais tarde, de uma segunda lei das mulheres muito mais ambígua – ressaltando, notadamente, a “natureza” das mulheres e condenando as relações sexuais fora do quadro sacro-santo do casamento e da família indígena tradicional, mas falando, ao mesmo tempo, de liberdade – mostra que as reivindicações indígenas são, por vezes, ambivalentes (Rojas, 1996; Falquet 1999). Por outro lado, a repressão militar governamental, adicionada ao racismo e ao sexismo da sociedade mestiça, torna ainda mais distante a aplicação da lei das mulheres no contexto da guerra latente e da marginalização dos zapatistas. Além disto, nada prova que o conjunto das mulheres indígenas, cuja diversidade de interesses é notável, acionariam necessariamente esta lei para utilizá-la como um instrumento de transformação radical de suas comunidades.
Contudo, a iniciativa das mulheres zapatistas abre uma brecha muito importante. Mostra que é possível questionar, pública e explicitamente, as relações sociais de sexo a partir do interior dos movimentos sociais e desde seu início, não somente de maneira abstrata, condenando vagamente o “ machismo”, mas diretamente, em sua expressão concreta: as estruturas familiares realmente existentes sobre as quais o movimento se constrói.
C. O MST, a agricultura familiar e a exploração do trabalho das mulheres
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil ilustra uma outra dimensão não problematizada da família (Falquet, 1998 e 1999). Além das espetaculares e corajosas ocupações de terras, o movimento busca, principalmente, construir uma alternativa camponesa ao modo de produção capitalista. Com efeito, em vinte anos de luta, uma importante parte de suas bases (ou seja, no mínimo mais de cem mil pessoas) conseguiu terras. Hoje, o maior desafio para o movimento é o da produção. Mas, cabe precisamente interrogar qual sistema de produção? As orientações gerais do movimento são socialistas e a direção do MST tenta incentivar o trabalho coletivo e os sistemas cooperativos. Todavia, uma vez a terra obtida, muitos assentados preferem trabalhar de maneira individual ou, mais exatamente, de maneira familiar. Com um grande realismo, no plano local como no plano nacional, o MST acaba, muito freqüentemente, promovendo a pequena agricultura familiar.
A pequena produção familiar, em parte destinada ao auto-consumo e em parte ao mercado local, é um modelo que já demonstrou sua grande eficácia. Tal sistema corresponde aos hábitos da maior parte das populações camponesas (mesmo se os modelos familiares possam ser bastante variados e existam também formas comunitárias de trabalho). Contudo, este sistema de produção se apóia, como ninguém ignora, sobre a exploração do trabalho “gratuito” das esposas, dos filhos e de outros parentes dos “chefes de família” (pela França: Barthez, 1983; pelo Brasil: Brumer, Schuch Freire, 1983-1984; Menasche, Salete Escher, 1996; Paulilo, 1987). Ora, apoiando objetivamente a pequena produção familiar, o MST cala-se sobre a divisão familiar e, portanto, sexual do trabalho que funda a agricultura familiar (Falquet, 1998 e 1999). Num movimento que aspira uma transformação social radical, surpreende a cegueira diante da exploração das mulheres e a defesa, em fim de contas, de um modelo de família patriarcal.
3. Quais culturas defender?
Acabamos de discutir movimentos de orientação “redistributiva” e classista, bastante “clássicos”, distintos daqueles movimentos mais “culturais” ou identitários (mais característicos do período atual), distinção proposta por Nancy Fraser (1997). De fato, a atual globalização neoliberal traz para o primeiro plano um conjunto de interrogações em torno das identidades e das culturas, ao mesmo tempo sob a influência de fatores materiais – desenvolvimento das migrações e das comunicações, particularmente – e de fatores ideológicos – avanço do pensamento pós-moderno, questionamento de um pseudo-universalismo, em realidade masculino, branco, burguês e heterossexual, além da influência financeira e ideológica das organizações internacionais no processo de “identidarização” e de despolitização dos movimentos sociais, notadamente feministas e anti-racistas (Curiel, 2002; Falquet, 2003) –. Porém, do ponto de vista das relações sociais de sexo, o que significa a defesa ou a criação de identidades culturais pelos diferentes movimentos sociais?
A. Política de identidade: dilemas das mulheres afro-latino-americanas e afro-caribenhas
Como o movimento Afro Misto4, a maior parte dos grupos de mulheres e de feministas afro-latino-americanas e afro-caribenhas organiza sua luta contra o racismo em torno de dois pilares: tornar o racismo evidente5 e, desde os anos 90, desenvolver “políticas de identidade”6 (Carneiro, 2005; Curiel, 2002; Werneck, 2005). Os grupos trabalham sobre a história da escravidão e da colonização e tentam tornar visíveis e legítimas as raízes africanas por muito tempo negadas da cultura de cada país. A preservação e o desenvolvimento de uma cultura orgulhosamente afro no nível das vestimentas, do estilo capilar, da alimentação, da arte e da religião constituíram uma estratégia importante. Esta “política de identidade” conheceu um sucesso inegável, conduzindo a novas maneiras de se identificar, notadamente como “afrodescendentes”, e politizando a palavra “Negro-a”. Ao tornar simultaneamente visíveis as populações negras e o racismo, tal política permite questionar tanto o Estado e suas políticas públicas, quanto a postura dos outros movimentos sociais. Ela legitimou manifestações culturais e religiosas por longo tempo menosprezadas – levadas à semi-clandestinidade ou, mesmo, diretamente reprimidas, como o Gagá na República Dominicana (um equivalente do Vodu haitiano) ou a Capoeira, durante muito tempo proibida no Brasil. Por vezes, este caminho conduz a políticas de ação afirmativa e de quotas (notadamente nas universidades, como no Brasil). Especialmente, a política de identidade oferece a muitas mulheres e homens a possibilidade de restaurar uma estima de si, pessoal e coletiva. “Lo negro es hermoso”: para as mulheres, esta afirmação foi de uma importância capital. Com efeito, a pressão social para atingir a “beleza” afeta muito particularmente as mulheres, que se sentem obrigadas – não somente para manter sua auto-estima, mas também para encontrar trabalho (“exigência de boa aparência” significa: branca ou pele clara) – a se conformar aos padrões de beleza branca, impossíveis de serem atingidos.
No entanto, neste processo de reconstrução de uma história e de uma cultura afro (e, às vezes, de construção a partir de muito pouco, nos casos em que a negritude foi muito fortemente diluída pelo racismo e pela mestiçagem), as mulheres negras não têm necessariamente tudo a ganhar. Com efeito, o que se deve reivindicar das culturas africanas (quais?) ou afro? A maneira de preparar os alimentos? Mas quem os prepara? A família ampliada, com laços vigorosos, que permitiu a sobrevivência diante da escravidão e do racismo7? Mas esta família-fortificada significa igualmente um controle social estreito e uma heteronormatividade particularmente pesada – não se afirmou milhares de vezes que o lesbianismo não existe na África, tratando-se apenas de uma degeneração colonialista-branca? Nas práticas religiosas, existe também uma clara divisão sexual do trabalho e uma forte normativa heterossexual, mesmo se as Mães de Santo são comumente poderosas8. Quais reivindicações devem, precisamente, ser escolhidas, especialmente pelas lésbicas negras?
Para além destas questões que estão longe de serem triviais, a questão principal se refere provavelmente ao lugar que ocupam as mulheres na definição da cultura legítima. Empiricamente, pode-se constatar que os movimentos afro raramente são dirigidos por mulheres, ou por homens particularmente atentos à transformação das relações sociais de sexo. Ocorre o mesmo no mundo branco que, em certa medida, valida, em última instância, o “renascimento cultural” negro. Na prática, depara-se freqüentemente com uma eficaz colaboração entre grupos de homens bem decididos a cultivar os valores que lhes convêm em detrimento das mulheres afro (e indígenas, como muito rotineiramente durante a colonização). Exemplo emblemático é a maneira como a indústria turística branca, ocidental, explora a fundo a imagem folclórica e altamente sexualizada das afro-brasileiras no Samba e no carnaval, imagem que o movimento Afro Misto promove ativamente como elemento da cultura afro-brasileira.
De maneira geral, estas identidades culturais em via de (re)construção, sejam afro ou indígenas, podem facilmente se transformar em camisa de força (Espinosa, 1999; Curiel, 2002), em particular para as mulheres, sobretudo quando for necessário cerrar fileiras diante do racismo. A questão se coloca com ainda mais intensidade do que o turismo, migração e mestiçagem, acelerados pelo neoliberalismo, que estimulam tanto os desejos de transformação quanto o retorno na “tradição” e, sobretudo, a invenção de tradições nas quais as mulheres tornam-se o símbolo de uma estabilidade, que tudo mais desmente.
B. Diversidade cultural: quem paga a resistência contra a globalização neoliberal?
A situação das mulheres indígenas do continente (em sua imensa diversidade) parece a mesma das mulheres afro (em sua não menos imensa diversidade), mas com uma diferença: em geral, suas culturas não devem tanto serem recriadas, mas antes “preservadas” dos ataques do mundo mestiço. Assim, quando elas questionam ou desejam modificar a “tradição”, elas podem se tornar o objeto de uma desconfiança gravíssima: ameaçar o fim de sua própria cultura. E a atual luta contra a globalização neoliberal embaralha muito as cartas.
Com efeito, toda uma nova corrente de pensamento sobre as populações indígenas se desenvolveu na confluência de diferentes lógicas. Antes percebidas como ignorantes e depredadoras da “natureza”, estas populações (e mesmo, por vezes, os camponeses em seu conjunto) são hoje apresentadas como profundos conhecedores de seu meio-ambiente e, mais ainda, como modelo de virtude ecológica. De um lado, as multinacionais e o Banco Mundial desejam explorar seus conhecimentos tradicionais das plantas para poupar anos de custosas pesquisas fito-farmacêuticas. De outro lado, as ocidentais e os ocidentais “progressistas” e, também, certos grupos indígenas, para ganhar simpatias e apoios internacionais, realçam esta sabedoria ecológica e esta vontade de preservação ambiental como uma importante resistência diante do desastre ecológico trazido pelo modo de produção capitalista. Neste contexto, cuidado com a mulher indígena que desejar, “como todo mundo”, possuir um refrigerador ou um 4x4!
Nesta recomposição da análise ecologista e anti(alter)-globalização – na qual os discursos anti-imperialistas se misturam com a crítica da dominação cultural ocidental – a preservação da “diversidade cultural” se aproxima cada vez mais da preservação da diversidade biológica. Por exemplo, Vandana Shiva desenvolveu um interessante paralelo entre o avanço das monoculturas, como catástrofe humana e ecológica, e o avanço do pensamento único neoliberal, “monocultura do espírito” (Shiva, 1996, 1998). Diante desta “monocultura”, símbolo e pilar central do neoliberalismo, a diversidade constituiria o antídoto: a biodiversidade (manifestação mesmo da Vida), mas igualmente a diversidade cultural, não somente como um direito, mas também como uma forma de resistência contra a hegemonia branca e ocidental. Porém, este paralelismo entre a diversidade biológica e a diversidade cultural traz um duplo problema político de fundo: o naturalismo e o relativismo cultural. Assim, Shiva (idem) descreve com entusiasmo as lutas de resistência das comunidades rurais da Índia, mas quase não menciona a existência do sistema de castas ou de certos costumes tradicionais desfavoráveis às mulheres, cujas características são denunciadas por muitas mulheres. Uma questão muito profunda se apresenta às mulheres: como, para resistir ao imperialismo cultural ocidental, não se posicionar na defesa em bloco das culturas que comportam inúmeros elementos opressivos para as mulheres?
Evidentemente, este problema não tem nada de novo, envolvendo toda a história da colonização e das migrações. Contudo, anteriormente, apenas seu próprio grupo (e, por vezes, um punhado de antropólogos) se preocupava com o que as mulheres desejavam preservar da tradição. Hoje, qualquer militante anti(alter)globalização pode virtualmente deplorar o desaparecimento desta ou daquela cultura, não por solidariedade com esta cultura, mas por causa da perda que ela significaria para a “diversidade humana”. Mesmo se, provavelmente, nenhum-a militante anti(alter)globalização irá diretamente censurar uma mulher indígena, nem exigir que ela continue a tecer e vestir véus tradicionais, um certo anti(alter)globalismo pode enfraquecer, indiretamente, as reivindicações de transformação das mulheres indígenas diante de certos elementos de “suas” tradições, cujos contornos lhes pareçam opressivos ou, muito simplesmente, obsoletos. E tal enfraquecimento a partir de uma perspectiva “progressista”, ecologista ou antiimperialista9.
C. E as mulheres brancas ocidentais?
Seria impossível terminar esta reflexão sem mencionar a situação das mulheres brancas ocidentais (e mestiças, caso pertençam aos grupos dominantes10). Em razão de seu lugar dominante, muito raramente lhe solicitam uma posição em relação à sua cultura. No entanto, pertencendo a etnias que colonizaram, exploraram e oprimiram outros povos ao longo de mais de quinhentos anos e que parecem hoje querer ainda aprofundar sua dominação, impondo sua cultura, ao mesmo tempo que seu sistema econômico, as mulheres brancas ocidentais devem refletir muito seriamente sobre a atitude que elas adotam em relação a esta cultura. Efetivamente, elas já a criticaram muito, seja no âmbito da luta anticapitalista ou, sobretudo, a partir dos movimentos feministas e lésbicos. Em mais de mil e uma ocasiões, elas apontaram os costumes que não lhe agradam, elas conseguiram o recuo de alguns deles, propondo alternativas. Mas em seu espírito, elas não estariam secretamente convencidas que – grosso modo e quando livres de tudo o que criticam – a cultura ocidental é superior às outras? Uma cultura ocidental, por exemplo, sem pornografia, sem violência sexual, mas orgulhosa de seu universalismo, de sua fé na “ciência” e no “progresso”, defendendo um certo individualismo como garantia da liberdade individual e da emancipação das mulheres? Vasta e complexa questão que traz muitos desafios à reflexão.
Para além deste sentimento individual de superioridade cultural provavelmente subjacente na maior parte das mulheres ocidentais-brancas, no plano coletivo do movimento feminista com hegemonia branca-ocidental11 existem diferentes posições. Algumas afirmam que a cultura, em aparência “neutra”, não pertence realmente às mulheres da mesma maneira que aos homens. Na França, observa-se este tipo de reflexão, por exemplo, nos textos de Nicole Claude Mathieu, que mostra, com particular brilhantismo, que “os dominantes e as dominadas – aqui, homens e mulheres – não recebem a mesma quantidade e nem a mesma qualidade de informações sobre os conhecimentos, as representações e os valores. [...] Ademais, caso se tratasse teoricamente da “mesma informação, a experiência vivida não é a mesma de cada lado da barreira” (Mathieu, 1991). Permitindo-nos distanciar, abandonar nossa solidariedade – como mulheres (e seja qual for nosso pertencimento cultural-étnico) – com estas culturas que são ditas “nossas”, mas realmente não o são, Mathieu nos abre uma porta de importância inimaginável para criticar a cultura.
Contudo, outros vão ainda mais longe, como a feminista chilena Margarita Pisano, quando afirma que se deve combater esta cultura, pois ela seria tipicamente masculina-patriarcal, ou antes, que é necessário dela se livrar definitivamente, totalmente e sem lamento, pois tal cultura apenas conduz a um gigantesco e catastrófico impasse da civilização: “nossa proposição consiste em nos situar numa outra posição para olhar, pensar e começar a desenhar os contornos de uma nova sociedade” (Pisano, 2001). Mas trata-se de qual cultura (patriarcal)? Daquela dos índios, dos negros, dos brancos? Ao nosso conhecimento, pouquíssimas ocidentais-brancas analisam especificamente as responsabilidades das mulheres ocidentais-brancas diante da cultura peculiar dos homens ocidentais-brancos.
Enfim, existe uma corrente resolutamente essencialista nos movimentos feministas e lésbicos, pretendendo que as mulheres sejam “outras” e nunca tenham tido nenhum poder no mundo patriarcal. Elas não têm, nem desejam ter, nada a fazer com a cultura patriarcal e com as lutas entre homens. Esta posição de exterioridade supostamente total não leva a nenhuma luta concreta para transformar a cultura dominante (ocidental) e pode, portanto, ser analisada como uma maneira de lavar as mãos em relação a todos os crimes passados e presentes perpetrados por esta cultura – ou em seu nome.
Ao contrário desta reivindicação de irresponsabilidade, como feministas (sejam quais forem nossas raízes), devemos desencadear uma reflexão profunda sobre o tipo de cultura(s) que desejamos desenvolver e sobre as transformações culturais que se produzem no contexto atual da globalização. Aqui, a mestiçagem cultural constitui um desafio central, seja ela um produto de fato, seja uma estratégia consciente. Pode-se formular uma resposta “progressista” à globalização neoliberal, fundada sobre a igualdade, o respeito mútuo e a reciprocidade? Ou, então, trata-se, ao contrário, de uma armadilha preparada pela cultura ocidental-capitalista, que absorve e dissimula os elementos de outras culturas a partir de uma posição de dominação e unicamente com o objetivo de maximizar seus lucros? Apropriar-se da música religiosa popular afro-brasileira a fim de modernizá-la e vendê-la em lojas européias de discos, criar novas espiritualidades new age mais ou menos baseadas nas crenças das populações indígenas das planícies do norte da América, lançando-as como modas cool ou “politicamente correto-a”: trata-se de um avanço da mestiçagem ou simplesmente de um estímulo ao comércio? Enquanto sua música, sua arte, suas crenças são difundidas em todo o planeta (simplificadas, formatadas com vistas a uma mais fácil digestão), a situação econômica das afro-brasileiras, dos índio-a-s norte americano-a-s está melhorando? Elas têm, eles têm, dinheiro e os visas necessários para acompanhar suas produções artísticas em sua viagem acelerada através das fronteiras? Inversamente, o que as índias e as mulheres afro desejam, quando elas fizerem o balanço das vantagens e inconvenientes da cultura ocidental? E é possível se apropriar somente dos fragmentos, impunemente, sem o risco de uma transformação mais profunda? Enquanto mulheres e feministas, o que podemos e desejamos questionar, compartilhar e mesclar sobre uma base de igualdade e de respeito, entre nossas diferentes culturas? Claro, a transformação cultural não se decreta: é o fruto de dinâmicas complexas e contraditórias e de condições materiais que forjam as culturas. Então, como avaliar, apesar dos pesares, as transformações culturais em andamento para interagir o máximo possível a partir de uma base considerada por nós como a melhor parte de nossas diferentes heranças, sem nos deixar submeter por um conjunto de valores patriarcais?
*
De maneira extremamente rápida, mobilizei, neste artigo, um certo número de ferramentas forjadas pela teoria feminista para aprofundar a análise dos movimentos sociais. Penso ter feito prova, não somente de sua utilidade, mas de sua característica indispensável para compreender as contradições profundas que atravessam estes movimentos. Analisando a divisão sexual do trabalho revolucionário, o caráter patriarcal de certos modelos familiares nos quais se assentam as lutas, ou ainda a complexidade da situação das mulheres diante das reivindicações culturais, pudemos compreender porque movimentos sociais, entre os mais “progressistas”, fracassam em transformar realmente as relações sociais de sexo.
Apesar de tudo, não pretendo desqualificar radicalmente estas lutas, que possuem numerosas facetas e das quais participam inúmeras mulheres com coragem e vigor, por vezes de forma entusiasmada e crítica. Mas sua organização, suas reivindicações, sua dimensão, enfim, são intrinsecamente marcadas pela dinâmica das relações sociais de sexo, como tão bem afirmou Danièle Kergoat. E apresentar francamente aos movimentos sociais estas três questões, na esperança que eles acabem por respondê-las de maneira diferente e favorável às mulheres – a todas as mulheres, tomando em conta a diversidade de posições de classe e de “raça” (nacionalidade, cultura, situação migratória) –. Desta maneira, trata-se de avançar no rumo da elaboração, não somente da teoria crítica que Nancy Fraser defende, mas, principalmente, de uma alternativa política verdadeiramente convincente, também para as mulheres, à globalização neoliberal.
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Fonte: NEAD - Núcleo de Estudos Agrários e de Desenvolvimento Rural
PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
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