novembro 05, 2010

Amazonas, Amazonas, de Glauber Rocha

PICICA 1: O cineasta Aurélio Michiles, exultante com o tombamento do Encontro das Águas, postou no Facebook um link para o único documentário de Glauber Rocha sobre o Amazonas. Divido a alegria de Aurélio com meus leitores. Veja cenas inéditas da Manaus dos anos 1960. Vou ali comprar um bebedouro para os beija-flores que frequentam a varanda de casa; na volta, farei um breve comentário. Ciao.
dross87 | 25 de abril de 2009
Amazonas, Amazonas (1965)
Glauber Rocha


PICICA 2: Caraca! O trânsito está insuportável em Manaus. Dá impressão que os cidadãos estão entregues à própria sorte. Não se vê um guarda orientando o trânsito, pelo menos no trajeto em que me desloquei. Lugares onde um sinal poderia resolver problemas de fluxo, fica a critério do motorista iniciativas disparatadas: os veículos cruzam em todas as direções, sem a menor civilidade. A irracionalidade é do tamanho das dificuldades dos administradores públicos em apresentarem soluções compatíveis com a complexidade dos problemas gerados pela civilização do automóvel. No meio do caminho, aproveitei o tempo para conversar com um amigo sobre as conquistas do dia. Papeamos longas horas.

Voltemos ao documentário de Glauber Rocha. Em conversa com Márcio Souza, na época de sua realização, Glauber teria revelado sua perplexidade para com a cultura da região, inapreensível para ele. Para o manauara menos crítico, comparada ao tempo dos ônibus de madeira, a cidade progrediu. Em compensação ela perdeu em qualidade de vida, frente ao despreparo das autoridades em preservar as áreas verdes e sua rede de igarapés gelados. Todos estão poluídos. A rede de esgoto é lançada diretamente nas águas do igarapé ou na baía do rio Negro, para horror dos bons arquitetos, como meu amigo Roger Abrahim.

A cena em que aparece a promiscuidade da velha cidade flutuante, em frente da antiga escadaria dos Remédios, em nada lembra a urbanização meia-boca a que foi submetido aquele território. O que se observa hoje é que as soluções urbanísticas da atualidade pecam pelo mau gosto e pelo uso de materiais que não condiz com a modernidade pretendida pela Zona Franca de Manaus.  

Quando se revê o abandono de Manaus com o fim do ciclo da borracha, dá pra imaginar o que aconteceria com o nosso Polo Industrial se a economia mundial mudasse de rumo. Dizem alguns experts que tais chances são remotas. A preocupação, contudo, é legítima. Embora já vai longe o período da monocultura, o Amazonas está longe de ter uma economia diversificada e autosustentada.

O impacto do novo modelo econômico, baseado na exportação dos produtos made in Zona Franca, gerou um apartheid social até então desconhecido pela minha geração. Nós que fomos educados em colégios públicos, onde conviviam fraternalmente todas as classes sociais. Entre os colegas de rua (brincava-se na rua naquela época, sem receio de ser nomeado como pivete, menino-de-rua, ou coisa que o valha) e os de escola, ainda que fossem perceptíveis as diferenças de classe, havia menos preconceito do que os que seriam gerados posteriormente com a divisão do trabalho na sociedade manauara. Até então, as diferenças existentes não eram impeditivas de um convívio mais civilizado. Pessoalmente travei relacionamento com pessoas como Belmirinho Vianez, William, Margareth e Gracemar Abrahim, Nora Benchimol, Cid Loureiro Nadaf, Jorge, Neneca e Beth Azize, Omar e Abdon Hauache, Sérgio Pessoa Neto, Sebastião Botelho, Pauloney Avelino, Renato Simões, Maura Bianco, Magnólia Raphael, Baby, Paula Valério, Nelson Fraiji, João Bosco Chamma, Alexandre Souza Cruz, entre outros filhos das classes média e alta; como, também, Hilda Bunda de Mola, Nega Nazinha, Charuto, Mingau, Mococa, Navarro, Lulu Bell, Aldenora, Siloca, Cleide, Hanneman Bacelar, Fátima Fernandes, Jorge Aragão, Guto Rodrigues, Juacy Botelho, Carmen Doida, Margareth, José e Jorge Pereira, Pantoja, Moisés, Nina e Jacó Laredo, Adelaide Macedo, Marilene, Heloisa Helena e Nazaré Correa, Simão Pessoa entre os filhos das classes populares. É certo que só mais tarde iria explodir o preconceito que subjaz às relações sociais em todos os quadrantes do planeta, que nem a política de conciliação entre as classes proposta pelo governo Lula conseguiu esconder. Ao contrário, amorteceu-as provisoriamente.

O documentário de Glauber é um bom registro para quem deseja estudar o modo como essas duas sociedades convivem numa Manaus que fez da Belle Époque um falso mito, e da Zona Franca uma ideologia de superação da decadência.  A ver aonde nos levará essa nova aventura do capital. Au revoir!

PS.: Um amigo me perguntou de que lugar estou vendo o mundo, a partir do texto acima. Certamente, o olhar da infância, amoroso, não se compara ao da vida adulta, mais racional-sensitivo, que é olhar de que me valho agora. A pergunta, entretanto, tinha a intenção de me situar no espectro social da época. Muito bem! Meus pais vinham da superação da pobreza. Meu avô paterno, lusitano, era funcionário da firma J.G. Araújo. (O neto de J. G Araújo, Joaquim, foi meu colega no Gymnasio Pedro II, conhecido como Colégio Estadual). Com sua morte, minha avó Tereza, também lusitana, assumiu com a filha Pátria, uma banca de tacacá. Ou seja, eu era o sobrinho da tacacazeira mais querida da Praça dos Remédios, época em que nos indentificavamos por nossas comunidades, onde ela serviu pelo menos a três gerações de sírio-libaneses e seus descendentes. Meu avô paterno superou a pobreza através do ofício da praticagem, em Belém-PA, profissão que fez meu pai ingressar na elite da praticagem amazônia, pela qual foi comandante de embarcações da Booth Line, recebendo, como seus pares, o maior salário das profissões do norte do país. Antes disso, minha avó paterna, peruana, que viveu uma linda e trágica história de amor, viveu parte da sua vida como costureira, depois que deixou Iquitos, onde ficaram seus irmãos, sua mãe e seu pai, um espanhol de Valladolid, na Espanha, que exerceu a função de vice-consul da Espanha naquela cidade do Peru. Em casa, todos temos orgulho da história de superação da pobreza de nossos pais, e dos nossos avós imigrantes que começaram a vida do nada, que pouco se beneficiaram do ensino público que mais tarde seus filhos gozariam. Tenho um irmão jornalista, duas irmãs enfermeiras e uma que cursou agronomia na Universidade Federal do Amazonas. Um dos meu filhos, formado na área de informática, é servidor público e tem um programa de esportes na TV. O outro é fisioterapeuta. Quanto a mim, além de blogueiro, sou médico do serviço público de saúde amazonense, e mantenho um consultório onde atuo como psicoterapeuta. Meu filho mais novo, de 5 anos de idade, é ainda uma promessa de futuro. Sua mãe é psicóloga. Eis aí um breve esboço indicativo da superação das dores sociais e existenciais que alguns de nossos familiares enfrentaram para que sua prole vivesse com mais dignidade a vida que vivemos hoje.

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