setembro 27, 2011

"Luiz Fernando de Carvalho: Em busca de uma Manaus perdida" (FSP)

PICICA: Pô, Luiz Fernando! Dá próxima vez, liga pra cá. Tem lugares maneiros pra usar como cenário pro teu filme. Este lugar (foto abaixo), por exemplo, na rua Frei José dos Inocentes é um dos poucos que sobrou da voracidade do "progresso" trazido pela Zona Franca de Manaus. O lugar ainda mantém certa originalidade, só quebrada pelas grades de segurança que iriam alterar a paisagem arquitetônica da cidade depois que a paz foi rompida pela prática de roubo e pela violência disseminada em todo o tecido social. Lamentavelmente, o vetusto Cabaré Chinelo, situada à frente das três primeiras casas veio abaixo, por negligência do poder público. Tens razão quanto a degradação da cidade. Sobrou pouca coisa. Quanto a esse trecho da cidade, conheço-a com a palma da mão. Na casa que se vê em primeiro plano, passei parte da infância. Nos anos 1950, meu pai, prático da empresa de navegação Booth Line, comprou-a de uma portuguesa de nome Felismina, proprietária da casa ao lado. Mais adiante morava a avó do médico Marcus Barrus, meu compadre. Um pouco aos fundos, residia o deputado estadual João Valério, pai da querida amiga Joana Valério, e tantos outros estimados amigos de infância. Ali continua residindo a nega Nazinha, durante anos porta-bandeira da Escola de Samba de Aparecida. Bons tempos de uma Manaus provinciana, em que a violência não tinha assumido proporções epidêmicas. Lhe asseguro, que este território da cidade está mais preservado do que o da praça dos Remédios, onde nasci, inteiramente degrada pelo comércio predatório que ali se instalou. Nos anos 1960, quando para lá retornamos, o lugar era aprazível e mantinha as característas das comunidades criadas em torno de suas paróquias. Dos anos 1970 para cá, são mais de quarenta anos de destruição da uma cidade que deveria ter sido tombada como patrimônio histórico da humanidade, não tívessemos uma elite perdulária, sem amor à sua terra. Ontem foi a destruição do centro histórico e da rede de igarapés que cortavam a cidade, assegurando uma qualidade de vida extraordinária aos manauaras. Hoje, com a expansão da cidade através da definição de uma nova região metropolitana, são os arredores que começam a ser desfigurados com obras de grande impacto socioambiental. Se não houver um clamor da cidadania, 'tamo pebado, maninho!  
Rua Frei José dos Inocentes - Manaus-Amazonas-Brasil - Foto: Rogelio Casado






Luiz Fernando de Carvalho: Em busca de uma Manaus perdida


LUIZ FERNANDO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estou em busca de um tempo perdido. A pesquisa de locações e cenários para "Dois Irmãos" nos trouxe a verdade irrefutável: uma Manaus está se decompondo, a de casarios belle époque, onde se passa a história de Milton Hatoum.

Há hoje uma reação muito positiva do governo local, que se empenha contra a deterioração do patrimônio arquitetônico, com iniciativas como a recuperação do mercado do cais do porto, mas algo deveria ter sido feito há mais tempo, evitando que ruas inteiras se tornassem tristes ruínas de um passado.

Como Manaus foi degradada, é preciso encontrar "outra Manaus" sem contar tanto com a verdadeira. É provável que a gravação da minissérie se divida em vários pontos do Brasil, e esta Manaus montada por retalhos de outras cidades incluiria, por exemplo, Belém (PA) e Santos (SP). É um imenso esforço para montarmos uma face, ou melhor, tripla-face de "Dois Irmãos", pois a história se passa em três épocas principais. Esta é uma pesquisa em profundidade e deve ser feita com o maior rigor histórico possível para que toda a dimensão emocional da narrativa seja transmitida. As pesquisas fazem parte do percurso da produção, uma espécie de levantamento do conjunto de perdas de uma cidade.

Em Manaus, procuramos uma dada rua citada no romance, casas com certo estilo, referências históricas. Esse conjunto não está mais lá, foi engolido. Claro, temos os rios, os igarapés, toda a riqueza natural. Mas a estrutura arquitetônica da cidade foi bastante abandonada nas décadas anteriores --exceto o teatro, que é belíssimo.
Adaptações literárias para os meios visuais têm mistérios que se revelam aos poucos, e este é um, não muito feliz: o que persiste na memória nem sempre sobrevive na paisagem. Pela especificidade e delicadeza arquitetônica, Dois Irmãos demandou mais tempo para a pesquisa de lugares do que imaginávamos.

Em geral, a transposição da linguagem e da narrativa de um romance para o roteiro costuma ser a grande dificuldade dos realizadores. O quebra-cabeça das locações, em último caso, se constrói cenograficamente, mas não gostaria de caminhar por essa solução. Vejo "Dois Irmãos" como obra realista, repleta de relações com a natureza, que a enlaça como moldura. O roteiro me contenta, pois há grande diálogo com o livro: assim, como um grande espetáculo audiovisual, ele está sendo apresentado.
Luiz Fernando Carvalho é cineasta e diretor de TV. Dirigiu o longa "Lavoura Arcaica" e as minisséries "Os Maias", "Hoje é dia de Maria", "Capitu", "A Pedra do Reino" e "Afinal, o que Querem as Mulheres?"

Um comentário:

AURÉLIO MICHILES disse...

É verdade-verdadeira. A Manaus construida com o capital jorrado do suor dos seringueiros misturados ao látex, esta não existe mais, somente o Teatro Amazonas como testemunha-ocular. Manaus foi destruída sem dó, piedade aos olhos de todos. Manaus num filme, baseado num romance como do Milton Hatoum descreve, creio, somente num estudio. Triiiiste-Manaus, quanto negócio & tantos negociantes!