PICICA: "Não confundir classe C com o conceito marxista de classe, nem com a antiga classe média, quer dizer, a elite branca diplomada que, ou tem horror de preto e pobre, ou é humanamente paternalista, — em qualquer caso preconceituosa. Aquela galera que, quando você surge com um panfleto de Lula ou Dilma, responde deus me livre!"
Hoje, 103 milhões brasileiros pertencem à classe média. O IBGE dá a definição da classe C: categoria de renda domiciliar mensal entre três e cinco salários-mínimos (entre R$ 1.635,00 e R$ 2.725,00). Isto dá nada menos que 53% da população do país. Só em 2010, 19 milhões deixaram as faixas D e E. Uma proporção inédita na história da desigualdade que é a história do Brasil. Esse contingente aumentou seu consumo de produtos e serviços em sete vezes (600%!) entre 2002 e 2011. Em 2010, a classe C sozinha consumiu R$ 865 bilhões, quase o mesmo que as mais abonadas A e B, que somadas consumiram R$ 909 bilhões. É a famosa ascensão da nova classe média, ocorrida no governo Lula (2002-10), graças a um conjunto integrado de políticas sociais: massificação do bolsa família, aumento do salário mínimo, crescimento do emprego e do trabalho informal, acesso universitário, facilitação do crédito. É o pobre que agora tem computador e internet em casa, come iogurte, vai a restaurantes, frequenta academia e viaja de avião.
Não confundir classe C com o conceito marxista de classe, nem com a antiga classe média, quer dizer, a elite branca diplomada que, ou tem horror de preto e pobre, ou é humanamente paternalista, — em qualquer caso preconceituosa. Aquela galera que, quando você surge com um panfleto de Lula ou Dilma, responde deus me livre!
A publicidade não tardou em se debruçar sobre a nova classe média brasileira. Aliás, só fala nisso: como interpretar seus desejos de consumo e explorar o novo segmento do mercado consumidor. Uma polpuda jazida humana à espera de produtos sob medida às suas necessidades de embelezamento, diversão, decoração, turismo, carros, pet shop. As empresas travam uma verdadeira guerra publicitária pela classe C. Sob o ponto de vista do capital, uma oportunidade histórica para integrar a todos no Sistema. Consolida-se também o novo capitalismo no Brasil: mais de 200 milhões de celulares e linhas móveis em operação. 70 milhões de novas contas correntes abertas e os bancos lucram como nunca antes.
Curioso como esse ponto de vista (o do capital) é o mesmo do esquerdismo. Para eles, o governo Lula capturou de vez a possibilidade de uma mudança estrutural. Assimilou os pobres à elite. Tornaram-se consumistas. Agora é só esperar que compartilhem dos mesmos valores e preconceitos dessa elite, e aí votarão na direita. Argumento semelhante ao de FHC, embora pesquisa de 2011 mostre que a classe C está com a esquerda: 32% preferem o PT, a 8% o PSDB. O que me parece coerente. Se concretizar políticas sociais fosse suicídio para a esquerda, ela deveria promover o quê, o quanto pior melhor, o cataclisma social como condição para uma revolução redentora?
Há toda uma linha de crítica ao consumismo e à sociedade de consumo que vem sendo reciclada, para desmerecer a (incipiente, porém inegável) diminuição da desigualdade no tecido social brasileiro. Isso tem uma linha moralista, que culpabiliza o desejo e opõe moral à estética. E uma linha pessimista, que só vê aclasse C como passiva e neutralizada, como novos arrivistas, como meros consumidores. No primeiro caso, a direita marxista cristã, como quando Frei Betto defendeu que o pobre dito puro (sem educação formal) não pode ter geladeira, senão vai querer consumir sorvete e refrigerante, contaminando-se com o mal do capitalismo: o supérfluo. No segundo caso, a direita marxista apocalíptica, pra quem tudo está perdido e não tem mais jeito, o pobre agora não fará a revolução mesmo, pois está fascinado por seus televisores LCD, ipads e escovas progressivas, rendeu-se ao fetichismo da mercadoria, ao espetáculo.
Ambas as interpretações, que convergem na arena pública para desconstruir o governo Lula, fracassam ao não perceber a questão da renda e consumo comoprodução de subjetividade. É preciso não nivelar a classe C, nem mesmo tendencialmente, à elite branca diplomada recalcada, como se tivessem sido assimilados na classe média tradicional. Enquadrá-los apenas como categoria passiva de consumo é o ponto de vista do mercado, jamais pode ser da esquerda. Há uma disjunção entre ser e ter. Por que, quando um índio põe uma bermuda lamentamos que ele perdeu a essência como índio, mas quando um branco veste um cocar, ele não é menos branco por isso? Os pobres não têm baixa autoestima. Não querem ter uma subjetividade igual para viver exatamente como os ricos, das madames e playboys (e playcheviques), da novela das oito, do comercial de margarina ou de cerveja (os comerciais é que aspiram a ser como os pobres!). Pretendem, isso sim, angariar igualitariamente todos os direitos e acessos dos ricos. Mas sem deixar de existir como se constituíram nas esquinas da vida, isto é, como gatos que nascem livres, na sua potência de reinvenção. É o paradoxo da pobreza: não é só carência, mas sobretudo potência. Nesse sentido, país sem pobreza não é país sem pobres, mas sem ricos.
A nova classe média são mil classes médias, mil subjetividades, sujeitos em atividade, produção de discurso e de vida. Seu excesso não se restringe a consumismo, mas à produtividade de um novo mundo. Não à toa, a velha classe média ressinta-se, escandalize-se; não admiram tantos colunistas e humoristas veiculem tal ressentimento sem a boa e velha cordialidade das elites racistas. A riqueza não consiste simplesmente em novos objetos para os sujeitos, mas também em novos sujeitos para os objetos. Assim, o consumo também é espaço da luta de classe e não se separa do processo de produção de bens e valores como um todo. Marx dixit.
Então onde está o ponto de choque? Onde está o conflito? Certamente, não noshopping center, onde o desejo em excesso é domesticado e padronizado, onde você precisa comprar o que deseja ser, e desejar apenas o que lhe é oferecido. A força consumista reside no incremento da mobilidade, da comunicação, de mais internet, redes e mais cultura e mais mídia, da combinação de afetos, no trabalho social potencializado nos novos sujeitos-em-atividade. É a primavera periférica, na poesia das vielas, no direito achado nas ruas. Esse contingente de dezenas de milhões não se apassivou: ativou-se. E reúne as condições para continuar lutando pelo máximo existencial. Como escreveu o sociólogo Giuseppe Cocco, as guerras do pós-Lula não são tanto pela classe C, mas da classe C.Formou-se, no Brasil, um novo consumitariado.
———————————–
Recomendo o seminal artigo Da fome à vontade de comer: a mais-valia da vida, por Rodrigo Guerón, à Revista Global Brasil n.º 8 (pág. 40), disponível em pdf aqui. O filósofo da UERJ inventou o termo “direita marxista” e polemizou com Frei Betto por ocasião da fome de miséria de um religioso quando das obras de transposição do Rio São Francisco, em 2007.
Sobre as “batalhas da classe C”, capitalismo cognitivo e populismo miliciano no Rio, remeto à entrevista de Giuseppe Cocco à Unisinos.
Também vale o artigo de Cynara Menezes, O que quer a classe C, à Carta Capital.
Fonte: Quadrado dos Loucos
Nenhum comentário:
Postar um comentário