PICICA: "Um Lugar ao Sol é um filme feito com uma ideia preconcebida, e vai buscá-la nas imagens, nos testemunhos e principalmente na montagem. Já Pacific é um filme de montagem, um filme que se apropria de imagens prontas e não concebidas para serem vistas no cinema e transforma-as numa obra coerente."
Como criticar a burguesia?
By Bruno Carmelo – 29/09/2011Com métodos e éticas muito diferentes, os filmes “Pacific” e “Um Lugar ao Sol” retratam criticamente as classes altas brasileiras.
Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.
No recente encontro nacional de pesquisadores de cinema, o SOCINE, os polêmicos filmes brasileiros Um Lugar ao Sol e Pacific foram intensamente debatidos e comparados. O contexto de ambos é semelhante: são duas produções pernambucanas de 2009, dois documentários que decidem analisar as classes mais altas do Brasil por símbolos de consumo – o fato de se morar na cobertura de um prédio para o primeiro, a viagem num cruzeiro luxuoso para o segundo.
Mas as coincidências param por aí. Embora o objeto seja semelhante em termos sociais, a metodologia e a maneira de abordá-lo é radicalmente diferente, ou mesmo oposta – razão da discórdia expressa durante o congresso da SOCINE mencionado acima. Um Lugar ao Sol é um filme feito com uma ideia preconcebida, e vai buscá-la nas imagens, nos testemunhos e principalmente na montagem. Já Pacific é um filme de montagem, um filme que se apropria de imagens prontas e não concebidas para serem vistas no cinema e transforma-as numa obra coerente.
Os fins justificam os meios
Explicando melhor: o diretor Gabriel
Mascaro decidiu convidar 125 pessoas muito ricas e proprietárias de
coberturas a falar sobre este “modo de vida”. Apenas 9 delas aceitaram. O
documentário anuncia uma curiosa lista em que essas pessoas estariam
presentes, sem dar mais detalhes sobre onde ela se encontra ou como foi
elaborada. Também não se diz nada a respeito da maneira como estes
indivíduos foram abordados – de que maneira se convence uma pessoa
riquíssima a falar de sua riqueza num documentário?
Dessas questões essenciais de ética, o
filme não fornece detalhes. O que lhe interessa é o que essas pessoas
têm a dizer. Neste sentido, o documentário se mostra riquíssimo,
revelando uma visão bastante particular que estes moradores possuem das
classes baixas, da noção de propriedade e de mérito. As frases de efeito
se acumulam às dezenas, da mulher que acha os tiros da favela lindos,
porque se parecem com fogos de artifício, passando pelo empresário que
diz que merece a riqueza por ser um líder nato, ao filho mimado que diz
que escreve “cobertura” em seu endereço para ser mais respeitado pelos
amigos.
Entram
em choque direto as noções de interior e exterior, de mérito e
democracia, de liberdade e segurança. Os entrevistados se dizem seguros e
livres dentro de seus diversos metros quadrados repletos de câmeras de
segurança, ou então se sentem superiores e dominadores em relação aos
andares de baixo, ou ainda dizem que sua riqueza é o fruto de um esforço
que está ao alcance de qualquer um.
Mascaro conduziu todas essas pessoas não
apenas a apresentarem suas vidas, mas a justificá-las, a explicar de
onde vem a riqueza e porque as pessoas ao redor não possuem as mesmas
oportunidades. Face a estas questões tão explícitas quanto complexas,
todos fogem da “culpa burguesa” que o diretor parece querer atribuir a
cada um deles. Defendem que o poder material é um presente divino, ou a
ordem natural das coisas, ou ainda que ela não impede de praticar a
caridade, “compensando” a desigualdade de oportunidades.
O grande problema de todas as frases
exemplares extraídas desses entrevistados alienados e reacionários é
justamente a maneira como se obteve o conteúdo procurado. Inicialmente, o
documentário não admite que estas pessoas acreditam estar falando para
um vídeo destinado aos países estrangeiros. Certamente suas reações
teriam sido outras se conhecessem o uso real das imagens. Em seguida,
Mascaro mantém o som da câmera ligada mesmo quando a entrevistada lhe
pede para cortar, porque sente que “algo está sendo conduzido nisto
tudo”.
Driblando os princípios da ética do
documentário, o diretor parte do princípio que o fim justifica os meios –
tudo vale para extrair frases tão absurdas daquelas pessoas cujas vidas
já se considerava, desde o começo, absurdas. Mesmo um documentarista
controverso como Michael Moore, que está muito longe de ser um exemplo
de ética na imagem, deixa claro aos homens políticos republicanos que
sua posição é contrária a que estes homens defendem.
O
realizador usa metáforas, filma prédios de cima para baixo, de baixo
para cima e ilustra a luta de classes em sua crítica mordaz a este modo
de vida. Ele mantém um diálogo claro com o espectador, mas não partilha
sua posição com os entrevistados. A ironia, o sarcasmo e a quase
humilhação são desculpadas pelo realizador, que defende-se afirmando que
uma das entrevistadas gostou muito do filme final, ou seja, ela não se
sentiu ofendida. Esta era a mesma desculpa dada por Fernando Meirelles,
por exemplo, quando dizia que Saramago havia gostado de sua adaptação de
Ensaio Sobre a Cegueira.
Ora, tanto Meirelles quanto Mascaro sabem muito bem que os filmes não foram feitos para seus entrevistados ou autores do livro de origem. Um Lugar ao Sol foi feito para o público, apesar dos
entrevistados, que são meros alvos fáceis de quem se retira frases
suculentas. A ingenuidade de um dos entrevistados não isenta o diretor
de responsabilidade – pelo contrário, deixa ainda mais claro que estas
pessoas não estavam conscientes do discurso que seria articulado a
partir de suas imagens.
Os meios são os fins
Em Pacific, o diretor Marcelo
Pedroso acompanhou algumas viagens do cruzeiro homônimo que vai de
Pernambuco a Fernando de Noronha. Percebendo quais pessoas gravavam
imagens da viagem, ele convidou-as a ceder seus materiais para um
documentário. Não se dá mais informações sobre a abordagem ou sobre a
reação dos viajantes, mas esta metodologia é apresentada desde o início,
como ponto de partida indispensável à compreensão do projeto.
O
que se segue, portanto, são imagens amadoras, de baixa qualidade,
instáveis e sempre deslumbradas com os arredores. Acima de tudo, são
imagens que portam um discurso involuntário sobre o consumo, já que
estes momentos íntimos (pessoas na cama, dançando, dormindo, se
maquiando) não tinham o intuito de serem partilhados. A montagem
pretende dar forma ao conjunto, em ordem cronológica, seguindo a chegada
ao navio, a descoberta das regalias, das festas, a noção de espaço, de
privilégio e de mérito. Seria interessante saber qual era a priori
o destinatário destas imagens – se os viajantes pretendiam vê-las
sozinhos ou mostrá-las a amigos e família, e em qual contexto.
De qualquer modo, instaura-se com Pacific a
rara noção de autor cinematográfico como aquele que organiza o
discurso, mas não necessariamente capta as imagens. O autor aqui é o
montador, o diretor, e não as pessoas que gravaram seus passeios. As
imagens, para elas, servia como prova de pertencimento, como o ça a été
do qual falava Barthes, um documento de que essas pessoas de fato
estiveram onde estiveram e viram o que viram. A fascinação precisa ser
registrada, partilhada, inclusive como sinal de status. É
preciso que colegas, familiares e outros vejam essas imagens e
compreendam de fato todo o luxo pelo qual os viajantes pagaram. “Corre,
filma o golfinho!”, diz um deles. A imagem é realmente vista como sinal
de distinção.
Face a este material já existente, o
diretor decidiu não acrescentar nenhuma narrativa ou depoimento. A
montagem fala por si mesma, ela retrata muito bem o kitsch, o excesso e
principalmente o imperativo de diversão que Adorno citava como inerente a
qualquer sociedade do hedonismo. Além de mostrar o que viveram, estas
pessoas precisam (se) convencer de que se divertiram, de que o dinheiro
foi bem gasto e transformado num prazer proporcional ao preço estipulado
pelo cruzeiro. Eles criam uma imagem de si mesmos alegres, sorridentes,
algo que se satura ao longo de 80 minutos de documentário; mesmo que
esta saturação seja um elemento indispensável ao próprio discurso
crítico.
O
que estas pessoas acharam do filme final? Não se sabe, talvez seja
estranho para elas verem suas caras e seus beijos espontâneos projetados
para dezenas de milhares de pessoas. Talvez a imagem apenas reconforte o
instinto narcisista. De qualquer modo, o kitsch, os excessos e a construção da imagem da riqueza
pode tanto ser interpretada desta maneira, tanto ser vista como uma
colagem simples de vídeos de viagem. A ambiguidade do discurso joga a
favor do filme, que deixa ao espectador construir o sentido deste
projeto.
Este é o inverso de Um Lugar ao Sol,
no qual não se deixava muita dúvida sobre o olhar cínico que o diretor
portava sobre suas imagens. Mascaro obtém certamente frases e momentos
muito mais potentes, mais emblemáticos e representativos, mas paga um
preço alto por isso, tornando seu projeto mais do que questionável. Já
Pedroso, obviamente, também intervém em seu material, mas pretende
colocar em paralelo o olhar dos indivíduos com o seu próprio, aumentando
o leque de interpretações deixadas à disposição do espectador.
Um Lugar ao Sol (2009)
Filme brasileiro dirigido por Gabriel Mascaro.
Filme brasileiro dirigido por Gabriel Mascaro.
Pacific (2009)
Filme brasileiro dirigido por Marcelo Pedroso.
Filme brasileiro dirigido por Marcelo Pedroso.
Fonte: Outras Palavras
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