setembro 30, 2011

"Revolução 2.0: da crise ao comum", por Bruno Cava

PICICA: "(...)a revolução volta à ordem do dia, embora diferente: não há mais “palácio de inverno” a assaltar, centros nervosos de poder a conquistar. Por isso falamos em revolução 2.0: ela se articula através de diferentes tipos de redes – digitais e territoriais – e irrompe nas ruas e praças das metrópoles. Em um mundo onde produzir se torna um ato comum, a revolução 2.0 é o espaço social em que esse ato se reafirma, e atualiza a potência de disseminação do desejo comum."

Revolução 2.0: da crise ao comum

Manifesto publicado hoje pela Universidade Nômade, — uma rede global de militantes e intelectuais autonomistas, de atividade transnacional e transpartidária, que pensa e age no comum das redes e movimentos multitudinários, cuja maior referência teórica é o filósofo pós-operaísta Antonio Negri.




Vivemos em uma situação revolucionária. A crise se torna permanente. A governança imperial está falida. O eixo atlântico roeu a corda. Afirmá-lo não representa nenhuma concessão a pretensos mecanicismos ou determinismos, sempre ingênuos. As próprias lutas demonstram que a multidão produtiva não quer mais viver como no passado, assim como os padrões do capitalismo global também não podem mais existir como no passado. Por isso, o velho mundo está ruindo. Nas ruas do Egito, da Tunísia, da Espanha, de Londres, de Jirau e do Rio de Janeiro, de Santiago do Chile, nas praças e redes do mundo, a revolução qualifica a conjuntura. Abrem-se possibilidades extraordinárias na crise do capitalismo global, iniciada entre 2007 e 2008 com a quebra dos contratos subprime. Hoje, ela se aprofunda com a crise do dívida soberana na União Europeia.

Dessa maneira, a revolução volta à ordem do dia, embora diferente: não há mais “palácio de inverno” a assaltar, centros nervosos de poder a conquistar. Por isso falamos em revolução 2.0: ela se articula através de diferentes tipos de redes – digitais e territoriais – e irrompe nas ruas e praças das metrópoles. Em um mundo onde produzir se torna um ato comum, a revolução 2.0 é o espaço social em que esse ato se reafirma, e atualiza a potência de disseminação do desejo comum.

A crise é sistêmica e permanente. A recorrência de bolhas — através das quais a riqueza se acumula e estoura — é sintoma de nova dimensão do tempo da crise. Não se trata mais de ciclos internos à (ir)racionalidade da economia capitalista, mas de um tempo constituído pelos mundos que tais bolhas contêm. A temporalidade da crise define-se a cada momento pelas peculiaridades e pelos paradoxos que atravessam esses mundos. Entre o conflito de produção em rede e transversal, de um lado; e a sua captura parasitária, do outro. A serviço da captura, as bolhas representam a forma que a acumulação capitalista utiliza para dividir e hierarquizar o comum. Nesse contexto, são definidas e requalificadas, na medida em que difundem as novas lutas.

Diante da crise, a direita e a esquerda tradicionais se misturam. Uma e outra pensam-na como desvio da normalidade, da norma. Usam-na como ocasião para inquestionavelmente aplicar políticas ditas de exceção, fazer o que tem de ser feito, por estado de necessidade. Durante a primeira fase da crise, ambos os campos despejaram bilhões de dólares para socializar as perdas. Agora, desmantelam os últimos resquícios de welfare state, a fim de forçar a multidão de pobres e trabalhadores a arcar com o custo. O estado de exceção das economias centrais se associa às políticas emergenciais dos países emergentes, em todo caso para submeter a sociedade aos interesses maiores do desenvolvimento capitalista. Mas, o estado de exceção é também aquele decretado pela multidão em Londres.

Acenar com a ideia de exceção, portanto, não quer dizer render-se ao discurso da catástrofe. Isto seria convidar à inação política, ou mesmo reforçar o poder soberano do estado como freio necessário à situação excepcional. Quando a exceção se torna permanente, adquire normatividade. A governança opera nessa norma particular difusa. O soft power, a expertise e a técnica de gestão se confundem com um governo fundado na violência. Digamo-lo então claramente: o modelo de poder soberano não acabou porque teria se tornado melhor, mas simplesmente porque as lutas o puseram em crise. A governança é um sistema de intervenção situado na base, lá onde não é mais possível governar de cima para baixo. No entanto, essas intervenções alternam e articulam continuamente flexibilidade e violência (exatamente como se organizam /preparam as Olimpíadas de Londres e do Rio), com o objetivo de controlar e gerir aquilo que continuamente o excede: o comum produtivo. A governança é, portanto, continuamente alimentada por sua própria crise. Exatamente nesse espaço, determinado pelas lutas, se abre de modo permanente a possibilidade da ruptura e da subversão.

O trabalho da diferença devém multidão. A revolução 2.0 é animada por uma composição do trabalho vivo de tipo novo, composta de pobres precarizados e precários empobrecidos. Trata-se de um trabalho altamente fragmentado. Nele se combinam velhas e novas formas de precariedade. Reúnem na mesma condição produtiva os migrantes, os pobres daquelas áreas ditas subdesenvolvidas (de Tunísia, Egito ou Brasil) e o proletariado cognitivo e imaterial das metrópoles centrais e emergentes. Nas lutas, redes e praças, a vida de precariedade se contrapõe à potência do fazer multidão. Isto é, a metamorfose dos fragmentos, de singularidades que cooperam entre si, a partir das próprias diferenças, e as reinventam incessantemente: mulheres, migrantes, homens, indígenas , negros, mestiços, jovens, gays, lésbicas, transexuais, camelôs, sem tetos, rappers…

Atualizando a gramática de Marx, as forças produtivas contém as relações de produção. Atualmente, se inverte a tradicional relação. O capital variável compõe-se do trabalho vivo que coopera, o trabalho colaborativo em rede. Hoje, ele incorpora o capital fixo – as metrópoles e seus espaços, a cultura e a natureza. O comum aponta exatamente a dimensão relacional das forças produtivas, enquanto produção de formas de vida (e saberes) por meio de formas de vida (e saberes). Os pobres se empoderam como potências produtivas sem passar pela relação salarial. Os trabalhadores se tornam plenamente produtivos por si mesmos.

Se, no capitalismo industrial, as variáveis centrais eram o salário e o lucro, no capitalismo cognitivo se tornam a renda e o rendimento. No presente regime de acumulação, o trabalho acontece como relações e mediante elas. É um trabalho polinizador, imerso em redes de autovalorização dos produtores. A acumulação ocorre externamente e a posteriori, logo, como captura (financeira) dos fluxos produtivos. O mecanismo fundamental da captura consiste em continuar a pagar exclusivamente os setores de trabalho que ainda se apresentam sob a forma tradicional do emprego (as abelhas operárias). Assim, a perda do salário direto e indireto é “compensada”, paradoxalmente, pelo crescente recurso ao endividamento. Lucro e salário se transformam então em rendimento e renda. Isto se dá através da financeirização, que no fundo lança luz sobre a dimensão parasitária do capital como um todo. Para sugar o valor, o capital acaba por matar as abelhas polinizadoras do trabalho relacional. Diante da ação do parasita globalizado, que investe todo o tempo de vida para extrair-lhe um rendimento, é justo que o salário estanda-se pelo tempo de vida total. Aí se fazem necessárias as lutas pelo devir renda do salário, por uma bio-renda que reconheça a dimensão produtiva do trabalho relacional e suas condições produtivas de exercício, quer dizer, o comum que já existe. Surge o direito a decretar a falência e dar calote, por parte de precários e pobres, o que significa a recusa à socialização da crise e suas perdas intrínsecas. Coloca-se a recusa em pagar a dívida a bancos, firmas financeiras e estados. Na atual conjuntura, o calote adquire uma dimensão de resistência, consiste numa das práticas com que a multidão se reapropria da renda social e o trabalho devém renda.
Finalmente, passou a época em que o socialismo podia correr em socorro de um capitalismo em agonia. E os anos de crise mostraram que qualquer receita keynesiana ou neo-keynesiana, — que tenta relançar o ciclo econômico através da centralização político-econômica por meio do estado-nação, — fracassou. Os processos de financeirização do welfare não podem ser afrontados e derrotados no terreno do público, exatamente porque é ele quem assegura o espaço social em que funcionam esses processos. Por outro lado, os sujeitos da revolta inglesa ou das periferias francesas cada vez mais só vivenciam do welfare público a sua função de controle social. Esses sujeitos foram privados das promessas de benefícios materiais e progresso capitalista. E sentem o esgotamento irreversível da escola e da universidade como mecanismos de ascensão social — uma percepção hegemônica dos movimentos de precários e estudantes na Europa, Tunísia e Egito. Aproximam-se no mesmo campo político de resistência aproximando os setores médios empobrecidos e um imenso proletariado de tipo novo.

O desafio se apresenta agora no plano da reapropriação da riqueza social. Logo, de sua constituição em riqueza comum. Isto é, no plano da construção de instituições do comum, entendidas como criação de valores imanentes à cooperação social. Não ilhas dos bem-aventurados ou utopias plastificadas no interior (ou apesar) da acumulação capitalista, mas, sim, a organização da autonomia coletiva e destruição dos aparatos de captura capitalista.

Em suma, não resta mais público a defender. É preciso converter as mobilizações em torno do público em organização do comum: eis o caminho que sugerem as acampadas espanholas, a primavera árabe e os movimentos globais. É possível encontrar traços importantes também neste laboratório extraordinário e ambivalente em que se constituíram o Brasil e a América Latina da década passada. Isso implica uma relação aberta e tensa entre movimentos e governança: como a rede, a cultura, os saberes, a universidade, os lugares de habitação e os espaços metropolitanos. Tudo isso pode ser imaginado não como afirmação daquilo que não pertence a ninguém, o público? ou como instrumento de autovalorização e autonomia da potência cooperativa do trabalho vivo, o comum? Como afirmação, portanto, daquilo que é produzido por todos e que pertence a todos? Aqui se travam as batalhas.

Como evocado pela poesia do modernismo comunista brasileiro, a revolução 2.0 vem do Sul (da Tunísia, do Egito). Consolida-se no Sol das acampadas espanholas. Para então retornar ao Sul no interior do norte e reverbera nos fogos da revolta na Inglaterra. Em Londres, hoje, como em Paris ontem, encontramos as periferias pós- e neo-coloniais, fenômeno a que os sociológos do risco chamam de brasilianização do mundo: o colonizado continua a ser o mau exemplo aos olhos do colonizador. Mas, visto desde o Sul, a brasilianização do Brasil revela um duplo paradoxo. Uma vez que, atualmente, no Sul se encontram as jazidas do crescimento global, a dita brasilianização acaba reduzindo-se a uma europeização. As jazidas, porém, não devem repetir a experiência de expropriação e homologação coloniais. Para além da brasilianização e da europeização, é na multidão de pobres – das favelas do Rio de Janeiro e das periferias de Londres – que encontramos o “Sal”: a metamorfose do próprio significado do desenvolvimento. Nem brasilianização, nem europeização; mas a tríade Sul, Sol, Sal.

A revolução 2.0 é irrepresentável, afirmam os movimentos. A potência constituinte da multidão não deve se tornar ainda outra forma de governo, porque ela já exprime imediatamente as formas de vida em comum. A ocupação intensiva dos espaços metropolitanos, — na condição de núcleos produção colaborativa, — não é um simples exercício extemporâneo de protesto, mas a construção de laboratórios de criação de formas de vida. Em comum, reapropriam-se os poderes e se engendra uma nova constituição, um poder constituinte vivo e inestancável. Mas como essa potência constituinte pode esvaziar e demolir os dispositivos capitalistas de captura? Eis o ponto. Uma coisa é certa: somente além do estado-nação, no plano transnacional, o processo constituinte é jogado. Não há devir em lutas nas angústias e nos limites esvaziados e restritos de estados-nações. Isto vem sendo dito das acampadas espanholas à universidade militante que se chama Tunísia. Por este motivo, – como indica a construção de uma grande jornada de mobilização transnacional no próximo dia 15 de outubro – os espaços globais só podem viver através de um processo constituinte, que se encarna nos movimentos do comum e nas experimentações políticas da multidão. Por isso também, quaisquer tentativas de reengenharia jurídica (do público ou constitucional), ou economicista (do mercado), ou de reprodução em escala continental da crise (da soberania), estarão mortas ao nascer.

Quando nos anos recentes se começou a falar de multidão, de pobres e do comum, de trabalho cognitivo e biopolítica, talvez ainda não se pudesse compreender, com precisão e rigor, a potência do que se estava a dizer. Mas as lutas hoje explicam e aprofundam esses termos, saturando-os de determinações históricas e políticas expressivas e incontornáveis. Trata-se de conceitos para ser entendidos como ferramentas políticas. E será nessa tendência que continuaremos a dar a nossa contribuição, para transformar a situação revolucionária em revolução, e revolução 2.0. É o único caminho plausível e possível para sair da crise, para além da impotência e da melancolia das esquerdas, e contra a guerra aos pobres declarada pelas direitas.

Rede Universidade Nômade: http://www.universidadenomade.org.br/

Fonte: Quadrado dos Loucos

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