setembro 12, 2011

Luciano Elia adverte para os equívocos das estratégias de "combate" às drogas

PICICA: "Por que a nossa Presidenta da República, tão combativa, em sua própria história pessoal, quanto às questões sociais e políticas que sempre assolaram o povo brasileiro, é tão favorável a práticas judicializantes e repressivas do uso de drogas, que sob seu comando direto pautam cada vez mais a política nacional anti-drogas da SENAD, que ela transferiu do gabinete institucional da Presîdência da República para o Ministério da Justiça, afastando-a mais ainda do Ministério da Saúde, onde deveria estar? Por que o próprio Ministério da Saúde é sempre tão receptivo a ouvir entidades como a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) se não desconhece que as posições desta entidade não são apolíticas nem gozam da neutralidade "científica" que apregoam, enquanto que enfraquece cada vez mais o campo da atenção psicossocial, que é de sua própria alçada e criação? O que leva a Sra. Dilma Roussef a defender, desde seu discurso de posse, e de modo tão pressuroso, a parceria com setores privados, na própria saúde? O que leva a mesma presidenta a apoiar as comunidades terapêuticas (religiosas) como recurso para internação de jovens usuários de drogas, e paralela e simultâneamente desapoiar a política nacional de tratamento do uso abusivo de drogas pautado na lógica da redução de danos, do tratamento em comunidade (não a terapêutica, que exclui e segrega o jovem, mas sua comunidade territorial), consultório de rua e ampliação da rede de CAPS-AD?" (Luciano Elia, professor titular do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Em tempo: O professor Luciano Elia tem razão. Aqui no Amazonas lutamos contra a ideia de construção de uma "clínica para drogados", que não é outra coisa do que a reedição do hospício, justamente no momento em está em processo de desativação o velho hospício de Manaus. O movimento por uma sociedade sem manicômios saúda a desativação do manicômio manauara, e lamenta a infeliz ideia de construção de "clínica para drogados". Outra forma de abordagem é possível, como indica o texto do eminente professor.

O CRESCIMENTO DO OVO DA SERPENTE OU S.O.S. SAÚDE MENTAL BRASILEIRA

CAROS COLEGAS, ESSE TEXTO DEVE SER O NOSSO GRITO DE ALERTA DE S.O.S. À SAÚDE MENTAL BRASILEIRA, UM CONVITE À REFLEXÃO, Rafael Marmo
           

Caros colegas do campo da Saúde Mental
           

Diante do cenário preocupante das últimas notícias sobre os movimentos ativos de setores retrógrados do campo da saúde mental e da repercussão de suas ações na esfera do poder público (Ministério da Saúde), dos descalabros na esfera das estratégias de "combate" às drogas que vem sendo colocadas em prática no Rio de Janeiro, como a internação compulsória de jovens usuários de crack em situação de rua, determinada pelo Secretário de Assistência Social (ex-Ordem Pública e Choque de Ordem) e que serão logo copiadas por outros grandes estados brasileiros, senão pelo próprio (Estado brasileiro), e do quadro não menos grave que as próprias políticas públicas e sua regência por posições tomadas a partir do próprio "executivo federal", titular do dito Estado, a nossa Presidenta da República, vem tomando, decidi sair do silêncio em que vinha me mantendo e procurar o diálogo com meus colegas de campo. Desculpem o longo texto, mas como só o lerá quem desejar fazê-lo, tá tudo OK, certo?
          
Penso que é preciso ter muito cuidado quando, no atual cenário político-social brasileiro, fala-se em "rever a política de saúde mental" ou mesmo "avaliar os serviços" (leia-se, os CAPS), "melhorar sua eficîência" e outras "providências". Quem levantaria uma voz crítica contra iniciativas como esta da gestão pública da saúde, ou que lhe são sugeridas por setores da sociedade "interessados no bem comum e nos direitos sociais dos cidadãos, entre eles o direito à saúde pública e de qualidade"? À primeira vista, avaliar os serviços, melhorar sua qualidade e até mesmo rever as suas formas de funcionamento é o que de maior probidade teria o poder público a fazer em sua tarefa maior de garantir à população o direito às práticas mais eficientes e qualificadas de saúde e de saúde mental.
          
No entanto, essas iniciativas não são produzidas sob a égide dos motivos que declaram. O discurso que se pauta por um aparente tecnicismo, eficientismo, estabelecimento de metas, qualidade, produtividade, rentabilidade, otimização e outros tristes termos do vocabulário tecno-burocrático que é prioritariamente proferido nas esferas da gestão pública "moderna" esconde, na verdade, os seus verdadeiros motivos.
          
O processo de reestruturação da assistência psiquiátrica no Brasil é indissociável dos eixos histórico-políticos que atravessam e constituem o tecido da social brasileiro ao longo de muitas décadas de nossa História. A reorientação do modelo de assistência, a substituição das práticas manicomiais e hospitalocêntricas pelas práticas territoriais e comunitárias (que não exclui o recurso à internação mas o submete a uma lógica de monitoramento que não faz da internação o centro de gravidade das práticas clínico-assistenciais), a pluralização de discursos, saberes e práticas para além da psiquiatria estritamente medicalizante, a multiprofissionalização na composição de equipes, sem prejuízo de nenhuma das profissões que passaram a integrar o amplo espectro técnico em saúde mental, a exigência de que a direção política, técnica, gestora e o modo de conceber e contratar os recursos humanos - o mais importante recurso tecnológico do campo - sejam públicas e não privatizadas, terceirizadas ou parceirizadas com setores privados da sociedade, a recusa dos especialismos, enfim, tudo isso compõe o complexo campo da atenção psicossocial (que por isso mesmo não é constituída de "serviços especializados" nem se define pelo caráter "primário" ou "não-primário" da atenção que presta, mas especifica-se por ser atenção psicossocial). 

Este campo, mais do que um mero novo modelo técnico de assistência em saúde mental, consiste em uma resposta político-social e assistencial a um longo, insidioso e nocivo processo de desassistência, reclusão e exclusão institucional não apenas dos loucos, mas também dos mais diversos quadros de vulnerabilidade, desproteção e risco social com graves conseqüências psíquicas, como o abuso de álcool e drogas em diversas faixas etárias, particularmente em crianças e adolescentes, exposição às mais variadas formas de violência, risco letal, etc. Como resposta a este quadro de produção ativa de desassistência e despreteção social à mais numerosa faixa da população brasileira, cuja estatura não é frágil, porquanto resulta de um longo processo histórico que lhe rende robustas raízes, o campo da atenção psicossocial visa revertê-lo. E vem conseguindo fazer isso, ainda que com o escandaloso declínio do investimento público em sua rede, a que vimos assistindo nos últimos tempos. A eficácia do campo da atenção psicossocial pode ser verificada nos efeitos produzidos na população e nas comunidades territoriais onde os CAPS implantados têm efetivo apoio público e conseguem, com isso, ordemar uma rede de assistência eficaz intra e intersetorial, de equipamentos de saúde e de outros setores estratégicos do campo. Há significativa redução de internação nesses territórios, diferentes formas de sustentação de laços sociais antes impensáveis entre os usuários, elevação do nível de entendimento de inclusão nas comunidades em que vivem (efeitos nos não-usuários mas em seus parceiros sociais), entre outros indicadores, inclusive epidemiológicos.


Não é à toa que a IV Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial, realizada em julho de 2010 em Brasília, reafirmou, quase que em sua integralidade, os princípios e ações do campo da atenção psicossocial, ainda que alguns gestores e setores operantes neste campo prefiram não levar isso em conta.

Por isso, trazer a questão da eficiência da rede de atenção psicossocial, dos CAPS, é prática que só se pode legitimar a partir do interior de uma posição política que se paute por essas diretrizes e concepções. Apontar ineficiência, propor avaliação dos CAPS, dicutir o nível de qualificação das equipes, etc. é o que de melhor teríamos a fazer, se essas propostas não fossem formuladas de forma inteiramente alheia e até mesmo francamente antagônica aos eixos constitutivos do próprio campo e ao processo histórico-político que lhe deu existência. Qualquer tentação ou tentativa de avaliar a rede de atenção psicossocial à luz de um mero tecnicismo cientificista e pseudo-eficiente fracassa porque:

           1) concebe eficiência fora dos parâmetros metodológicos em que esta categoria seria aplicável aos serviços que pretende avaliar; e
          2) produz um tipo de eficiência que, embora pretensamente pautada no que se chama "evidência científica", despreza o mais rasteiro nível de realismo (dos erros em matéria de ciência, o mais grave) quanto à experiência mesma de afecção mental e sofrimento psíquico dos indivíduos cujo tratamento é investigado em sua eficiência, limitando-se às infindáveis descrições de "transtornos" do DSM IV, aparentemente objetivas e fidedignas mas inteiramente desprovidas de lógica, etiologia e conceituação teórica, o que consequentemente as faz mergulharem no mais obscurantista abstracionismo especulativo (do tipo: "uma criança que porventura não tiver sido tratada com ritalina de seu suposto TDA/H na infância será provavelmente um usuário contumaz de drogas na adolescência" - se não droga antes, droga depois -, sem que, em nenhum momento, a realidade clínica, apreensível pela mais simples anamnese, seja levada em conta).
          

Mas na verdade o fracasso da empreitada se vê facilmente recuperado no plano político: o real objetivo nunca foi, em nenhum momento de seu trajeto, o de avaliar seriamente o campo da atenção psicossocial e suas questões, dificuldades e falhas, mas o de derrubá-lo, a priori, porque ele produziu uma realidade social e institucional concreta que deixou de atender aos interesses econômicos (de financiamento público da malha de leitos e hospitais psiquiátricos, e da indústria farmacológica), políticos (de uma recuperação da hegemonia médica em matéria de saúde mental, hegemonia perdida pela pluralização de práticas, saberes e profissões) e pseudo-científicos e acadêmicos (relativos aos paradigmas que passaram a dominar o campo da medicina do comportamento, cópula "científico"-capitalista - o primeiro termo entre aspas pelo respeito que devemos à austera dama da Ciência que não é esta, impostora e sustentada pela hegemonia de mercado, que se apresenta no campo do comportamento humano na contemporaneidade).
          

Na verdade, os médicos, os psiquiatras, são de fundamental importância no sucesso do campo de atenção psicossocial, que, a meu ver, não existe nem é viável sem eles. Eles se dizem, no entanto, excluídos, desrespeitados, desprestigiados, e abandonam, corporativa e coletivamente, este campo que "não os reconhece nem respeita". Será? Ou será, pelo contrário, por saberem muito bem que teriam um enorme papel a desempenhar, decisivo mesmo, neste campo, que eles o abandonam, para inviabilizá-lo, já que, no paradigma atual que rege sua formação, os modelos a que aderem são outros, privatizantes, organicistas, medicalizantes, neurocientíficos, comportamentalistas? Onde estão os psiquiatras clínicos que gostavam mesmo de adentrar a experiência fenomenológica dos "doentes mentais"? Onde estão os psiquiatras sociais, os psiquiatras marxistas, os psiquiatras críticos? 
          
Assistimos a um preocupante crescimento de um de ovo da serpente, que toma corpo na terrorificação das drogas, sobretudo do crack, visto como o próprio demônio em forma de pedrinhas de fumaça que em pouco tempo exterminarão os jovens na rua além dos cidadãos que esses jovens exterminarão como conseqüència do uso de crack. E cresce o ovo: o pensamento higienista, condenatório, excluidor, que por má-fé identifica tratar com fazer desaparecer do cenário público e urbano, da rua, aqueles de quem supostamente se quer tratar , internando-os em "casas", abrigos, comunidades terapêuticas ou hospitais "especializados" para que esses jovens sejam "eficientemente cuidados até que parem de usar drogas" (!). A Justiça, até mesmo as Promotorias de Infância, acabam por considerar essas medidas adequadas, ou "adequáveis". O secretário municipal de Assistência Social do RJ é um dos arautos da idéia e da portaria que institui a internação compulsória de jovens em situação de rua e uso de crack. A população, grande parte dela, apóia, como apóia tudo que os políticos que "limpam" as cidades inventam. O Rio de Janeiro continuará mais lindo do que nunca, agora com menos pivetes cheirando crack em copinhos de guara-vita nas esquinas e cracolândias generalizadas, preparado para a copa do mundo, os jogos olímpicos. Despoluído. Todo mundo celebra: o Rio em ascensão, depois de ter sido jogado na sarjeta do Brasil, agora é reerguido pelas mesmas política e mídia que antes o afundaram. E a população agradece. Pela via das drogas, os setores mais retrógrados encontraram a via de promover o retrocesso político e assistencial pelo qual tanto ansiavam, há anos: a remanicomialização da "assistência" em saúde mental! 
         
Mas será que podemos continuar acusando, ingenua, pueril, cega e neuroticamente, os "nossos adversários"? Não estariam entre nós, ou mesmo em nós, esses adversários? O campo da saúde mental é coeso, é discursivamente sustentado pelos princípios que declara? Ou é estilhaçado, fragmentado, e em muitos de seus fragmentos se compraz com as OSs que o dominam, com a tecnocratização que o corrói, com a guinada à direita que o norteia? Basta reunir um certo número de "colegas de campo" que se evidenciará a mais ruidosa polifonia de posições contrastantes: alguns defenderão que a tônica deve ser mesmo a atenção primária, os NASFs e PSFs em detrimento (não em conjugação) com a rede de atenção psicossocial, os mesmos defenderão que "CAPS é serviço especializado porque não é atenção primária", outros defenderão (por vezes ainda os mesmos) as OS como garantindo maior eficiência nos atendimentos. Outros dirão com aquele ar de sabedoria histórica que "os CAPS já cumpriram sua missão". E poucos ainda restarão a defender seriamente concursos públicos, investimento público em recursos humanos estáveis e comprometidos, bons salários (pagos pelo Estado), políticas públicas pautadas democraticamente em conferências coletivas, rede articulada e pública, serviços e equipes acompanhados por supervisão clínico-territorial, etc. etc. etc. - enfim, as boas práticas em saúde mental, aquelas que, maciçamente investidas pelo poder público e assimiladas pelo tecido social, dariam certo.
          
A pergunta que não quer calar é: por que esse movimento anti-Reforma, anti-campo da atenção psicossocial, anti-territorial, encontra tantos adeptos, é tão bem recebido por tantos ouvidos, chega tão sem resistência a tantos setores, até mesmo da gestão pública? Por que a nossa Presidenta da República, tão combativa, em sua própria história pessoal, quanto às questões sociais e políticas que sempre assolaram o povo brasileiro, é tão favorável a práticas judicializantes e repressivas do uso de drogas, que sob seu comando direto pautam cada vez mais a política nacional anti-drogas da SENAD, que ela transferiu do gabinete institucional da Presîdência da República para o Ministério da Justiça, afastando-a mais ainda do Ministério da Saúde, onde deveria estar? Por que o próprio Ministério da Saúde é sempre tão receptivo a ouvir entidades como a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) se não desconhece que as posições desta entidade não são apolíticas nem gozam da neutralidade "científica" que apregoam, enquanto que enfraquece cada vez mais o campo da atenção psicossocial, que é de sua própria alçada e criação? O que leva a Sra. Dilma Roussef a defender, desde seu discurso de posse, e de modo tão pressuroso, a parceria com setores privados, na própria saúde? O que leva a mesma presidenta a apoiar as comunidades terapêuticas (religiosas) como recurso para internação de jovens usuários de drogas, e paralela e simultâneamente desapoiar a política nacional de tratamento do uso abusivo de drogas pautado na lógica da redução de danos, do tratamento em comunidade (não a terapêutica, que exclui e segrega o jovem, mas sua comunidade territorial), consultório de rua e ampliação da rede de CAPS-AD?
          
Talvez seja hora de pararmos de acusar o "outro" de "nosso movimento" e interrogar de que fios e eixos este movimento vem se tecendo, para que tenhamos mais clareza do que queremos, se tanto é que queremos algo que seja comum a um número significativo de nós, que possa ter, hoje, o lugar de causa para algum movimento.

Abraços

Luciano Elia 

Fonte: Rafael Marmo

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