PICICA: "Mesmo mutilado, o novo semanário trazia novidades e, sobretudo, um novo ângulo de observação da realidade para o leitor. Estimulava o debate político, a reflexão. Apesar do seu poder de retaliação, a censura havia deixado passar textos importantes. Sinal de que o governo já não podia fazer tudo que queria e que um jornal como Movimento tinha respaldo em setores significativos da sociedade." Em tempo: Nos anos 1970, durante minha formação como médico pela Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade do Amazonas (hoje Universidade Federal), fui o maior vendedor do jornal Movimento entre meus colegas. A história é a seguinte: um colega de nome Guttemberg, contemporâneo da faculdade era o representante do jornal em Manaus, mas vendia muito pouco; e como eu gozava da estima de muitos colegas, vendi jornal como água. Durou pouco a façanha. Quando os coleguinhas viram o caráter "subversivo" do jornal, a venda caiu. Não é à toa que os consultórios médicos estão cheios de revistas VEJA (vixe!). Salvo os médicos sanitaristas, que tomam contato com a realidade brasileira, a alienação política da categoria - honrosas exceções - é lastimável. Naqueles duros tempos de censura da ditadura militar, ter acesso a um jornal de propriedade coletiva (que façanha!), foi uma benção. Por isso, sou profundamente agradecido ao jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, editor do Movimento, alma dessa importante publicação da chamada imprensa nanica. Atualmente ele edita o Retrato do Brasil. A matéria do Carlos Azevedo corrobora meu testemunho. Grande Raimundo Rodrigues Pereira!
Quando os jornalistas enfrentaram a ditadura
Publicamos trecho do livro sobre a história de “Movimento” — que não precisava criticar a mídia, por ser muito melhor que ela…
Por Carlos Azevedo, autor de Jornal Movimento: uma reportagem
[Leia também nosso texto sobre o livro de Carlos Azevedo e sua importância, nos tempos da internet]
O jornal Movimento chegou às bancas pela primeira vez em 7 de julho de 1975, uma segunda-feira. E nasceu feio. A capa não convidava o leitor, dava a impressão de que nem fora paginada, toda negra. Logo abaixo do logotipo com o nome do jornal, vazado em branco, lia-se “Ano 1 nº 1 Cr$ 5,00”.1 Mais nada, nem data trazia. Na metade superior, sobre o fundo negro, uma foto obscura, um homem em pé, o rosto não aparecia, parado entre os trilhos de uma estrada de ferro. Havia papéis rasgados, pedaços de pau e objetos espalhados ao redor; um relógio de parede, amassado, jazia junto a um dormente, com os ponteiros paralisados às 4 horas e 55 minutos. À esquerda da foto, uma legenda na vertical que, posta às pressas, ficou torta, e em pequenas letras brancas dizia: “Central do Brasil, Rio”. Na metade inferior da página, se lia: “cena brasileira: SUBÚRBIO CARIOCA por Aguinaldo Silva”. Na parte de baixo, duas chamadas de matéria dançavam soltas na escuridão de tinta.
Vinte e um mil leitores o compraram. Gravemente mutilado pela censura prévia, ainda assim aquele era um jornal ansiosamente esperado. Grande parte dos que o compraram sabia que o que estava ali não era apenas um jornal, mas o retrato de uma batalha, da luta pela liberdade de opinião. Adquiri-lo era uma tomada de posição e um ato de apoio.
Que Brasil era esse de 1975 em que esse jornal estreava estropiado? A ditadura militar que havia derrubado o Estado de direito acabara de completar onze anos. Em longo processo de repressão e crimes contra os direitos humanos, havia liquidado a oposição, inclusive as tentativas de resistência armada, e tinha o controle completo do País. Como uma onda poderosa, ocupara toda a praia.
Porém, já começava a refluir. A bonança da economia capitalista do período pós-Segunda Guerra chegava ao fim. Os Estados Unidos foram levados a romper os acordos de Bretton Woods que garantiam o dólar com as reservas americanas de ouro. Uma inflação expressiva passou a atingir sua moeda. E, para sair da crise, a potência central do mundo capitalista promoveu uma violenta elevação dos juros. Os países produtores de petróleo se defenderam impondo brutal aumento aos preços do óleo. O Brasil, dependente de empréstimos e importador de petróleo, fora colhido no contrapé, registrava endividamento crescente e ficara sem capitais para investimentos. A população ressentia o empobrecimento.
A tentativa de institucionalização do regime militar brasileiro, ensaiada com as eleições de 15 de novembro de 1974, resultara numa derrota eleitoral espetacular, para surpresa inclusive do próprio partido de oposição consentida. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) elegeu 16 em 22 senadores e sua bancada na Câmara Federal saltou de 87 para 160 deputados. Além disso, passara a ser maioria em inúmeras assembleias legislativas. O eleitorado havia se posicionado maciçamente contra o governo. Essa derrota causou inconformidade nas Forças Armadas, principalmente nos setores diretamente ligados aos organismos de repressão, que passaram a acusar o governo de complacência com a oposição.
Tentando evitar o isolamento e dar sequência a um recuo lento e organizado, ao qual deu o nome de “distensão”, o governo manobrava. Procurava recuperar aliados perdidos nos meios civis, por isso, em janeiro de 1975, liberou da censura o jornal conservador O Estado de S. Paulo, e suspendeu o envio de listas de assuntos proibidos a todos os outros grandes jornais. Ao mesmo tempo, porém, voltava a fazer o uso do AI-5 para punir parlamentares. E, para vingar-se da derrota eleitoral, desencadeou uma onda de prisões contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB), acusado de infiltração no MDB.
Apesar disso, em fevereiro, circulava o primeiro de uma série de panfletos intitulados “Novela da Traição”, que acusavam o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do general presidente Geisel, de ser responsável pela derrota eleitoral e por dar espaço à “subversão”. Em maio, o jornal francês Le Monde noticiava:
A direita militar tenta reagrupar suas forças contra o governo Geisel (…) circulam panfletos nos quartéis e escolas de oficiais para denunciar “a traição da Revolução de 1964” e conclamam “os chefes militares e civis a reagir quando chegar o momento”.
As tensões se acentuavam dentro do regime.
Em despacho com o presidente em 1º de julho de 1975, o ministro da Justiça, Armando Falcão, anotou:
Sobre o novo jornal, Movimento, dirigido por um grupo de elementos esquerdistas, entre os quais o ex-deputado Francisco Pinto, determinei ao Departamento de Polícia Federal as seguintes providências:
1 – Apreensão do primeiro número do jornal, com circulação anunciada para o próximo dia 7 2 – Instauração de inquérito policial, para enquadramento na Lei de Segurança Nacional 3 – Estabelecimento de censura prévia. Motiva este procedimento o fato de o jornal, no espelho que chegou ao meu conhecimento, estampar matéria em que se ensina como incendiar vagões da Central do Brasil, incitando, pois, o povo à depredação de trens (a PF descobriu ontem que exemplares do jornal já estão circulando em universidades)2
Na tarde do mesmo dia, a redação na rua Virgílio de Carvalho Pinto, 625, no bairro de Pinheiros, São Paulo, funcionava a pleno vapor. Preparava o jornal de número um, a ser lançado na semana seguinte. Em meio ao burburinho da redação – telefone, máquina de escrever, discussões –, Sérgio Buarque de Gusmão, editor de Nacional, ouviu um chiado de walkie-talkie:
Entra um cara meio gordo, chega bem no meio da sala e diz:
– Com licença.
Olhei para o Flávio Aguiar, na mesa em frente, ele fez aquele sinal de “já entrou, né?”.
– Sem rodeios, nós somos da Polícia Federal.
Aí, tinha uma coisa, essa coisa brasileira, com essa origem lusitana, que é um formalismo patético. O cara foi levar um ofício da Polícia Federal, para dizer que o jornal estava censurado com base no AI-5.
Ao mesmo tempo, outra equipe da PF visitava a gráfica onde o jornal iria ser impresso. A ordem era apreender o folheto de lançamento e enquadrar quem desobedecesse às ordens na Lei de Segurança Nacional. Se não se chegasse a um “acordo” sobre censura prévia, o número um seria também apreendido. Sérgio Buarque telefonou para o editor, Raimundo Pereira:
Ligamos para o Raimundo. Ele chegou, começou a reclamar, o policial ligou pra alguém e falou:
– Olha, o sujeito aqui tá criando caso… O Raimundo reclamava:
– Como é que vocês vão censurar uma coisa que ainda não saiu? Mas não teve jeito, né? 3
As ordens, diziam os delegados da PF, vinham do próprio presidente Ernesto Geisel, que naquela manhã estivera com o folheto de propaganda do jornal nas mãos e o analisara junto com o ministro da Justiça.
Mais tarde, Antonio Carlos (Tonico) Ferreira, diretor responsável, e Raimundo Pereira foram “convidados” para uma reunião com o chefe da Polícia Federal em São Paulo, para estabelecer as condições para o jornal circular. Os jornalistas responderam que não admitiam acordo para o estabelecimento da censura. “Ela é um ato de força e dessa forma deve ser aplicada por decisão unilateral e arbitrária do presidente da República”. Exigiram documento legal da Polícia Federal com a decisão de censurar o jornal. Dois dias depois receberam o ofício 437/75, de 4 de julho de 1975, que dizia:
De ordem superior, levo ao conhecimento de V.S. de que a partir desta data, fica instituída a censura prévia no jornal semanário “Movimento” e, à vista dessa determinação, não poderá o mesmo ser distribuído sem a devida permissão desta Superintendência, sob pena de apreensão e da aplicação das medidas legais cabíveis no caso. Assinado: General José Guimarães Barreto, Superintendente Regional.4
CORPO A CORPO COM A CENSURA
Quem leu Movimento número um não pôde imaginar o tamanho da batalha que foi travada para aquela edição chegar às suas mãos. Na semana de lançamento, os editores e a equipe se revezaram entre a redação, a sede da Polícia Federal e as oficinas. O esforço para suprir os “buracos” da tesoura não foi pequeno; os censores vetaram nada menos que quatro propostas de capas do jornal, além de 18 matérias inteiras, 8 fotografias, 10 ilustrações e 12 charges.
O principal chamariz da edição de estreia, uma “Cena Brasileira” especial com quadros relatando histórias em várias partes do Brasil complementada por um ensaio sobre indicadores sociais, jamais chegaria às bancas. Outras matérias foram parcialmente cortadas; a Cena Brasileira “Bananas”, matéria não assinada, mas de autoria de Murilo Carvalho, teve
- a. o lead, o “pé” e o “olho” vetados; a solução foi usar uma foto com aparência de rasgada ao meio para transmitir o fato ao leitor.
- b. Pior: a exigência de entregar todo o material em um só lote atrapalhou o planejamento gráfico, que previa um fechamento em três turnos. No final,
- b. o jornal foi entregue à distribuidora Abril com 17 horas de atraso. Na segunda-feira, chegou apenas ao Rio, em São Paulo e outras poucas cidades; na maioria, chegou vários dias depois e até com mais de uma semana de atraso – caso da capital federal, Brasília.
Meses depois, em um relatório enviado aos acionistas, a direção admitiria:
Nos surpreendeu a censura duplamente prévia; antes de cada número sair e antes do próprio jornal existir nas bancas. Sem dúvida fomos otimistas demais ao supor que o jornal teria algumas edições iniciais sem censura, em que se pudesse apresentar seu projeto inicial.5
Ou, nas palavras de Tonico Ferreira: “Minha maior frustração foi que não pudemos mostrar o projeto do jornal.”6
MUITA COISA PASSOU, E ERA BOM JORNALISMO
Entretanto, informações significativas ainda haviam conseguido passar pela censura. A matéria de capa era uma “Cena Brasileira”, aquela seção de reportagens sobre a vida e a luta do povo que tornaria célebre o jornal. “Subúrbio carioca”, texto de Aguinaldo Silva, narrava mais um quebra-quebra nos trens que saíam atrasados da Central do Brasil e dava significado à foto da primeira página:
A depredação começou metodicamente. Os passageiros desceram do trem, armaram-se de paus e pedras, e começaram a quebrá-lo (os gritos de “onde está o maquinista?” não obtiveram resposta: ele já havia sumido). Vidros, janelas, bancos foram quebrados e arrancados, amontoados dentro dos vagões e incendiados. Parte da multidão seguiu para a estação, de onde expulsou os funcionários da bilheteria, arrancando depois móveis e telefones dos lugares, e atirando-os sobre a linha. De um telefone público, numa rua próxima, aos berros, um funcionário da estação (que um usuário viu e preferiu ignorar), gordo e careca, e de camisa aberta ao peito (onde se podia ver uma guia de Ogum), gritava para o Serviço de Segurança da Central:
– Começou tudo outra vez! Começou tudo outra vez!
Um artigo sob a retranca “Ensaios Populares” saía em defesa dos direitos da mulher. Discutia a revisão do código civil, feita sem amplo debate e com participação popular zero, cujo resultado mantinha, por exemplo, a preponderância do homem sobre a mulher nas questões de família. O título: “Por que o marido?”.
À página 5, “A esfinge chamada distensão” era a abertura de uma matéria sobre a conjuntura política, de duas páginas, não assinada. Para o jornal, o MDB, por acreditar na política de distensão, havia ficado perplexo com o fato de o general Geisel haver usado o AI-5 para cassar o mandato do senador Wilson Campos, do partido do governo, acusado de corrupção, o qual o Senado havia recusado cassar. A matéria dizia que o MDB não havia decifrado a esfinge que era a política da distensão, e que ela, agora, o devorava. A distensão era, afinal, a esfinge política que permitia sempre achar que a intenção do governo é a melhor possível, que sempre ele adotou uma opção em vista de outra pior que poderia ter acontecido.
Assinada por Bernardo Kucinski, uma longa matéria trazia questões incômodas em contraposição ao “aplauso geral” sobre o acordo nuclear Brasil-Alemanha, tanto da oposição quanto da situação. Para o jornalista, o sigilo nas negociações levantava dúvida sobre a seriedade da coleta de informações, já que os maiores especialistas do Brasil não haviam sido consultados. O fato de que os reatores importados da Alemanha traziam tecnologia da americana Westinghouse mostraria “os limites do rompimento” com os interesses norte-americanos. Além disso, a matéria estampava uma declaração do ministro alemão de tecnologia e pesquisa contradizendo o governo brasileiro: mesmo que não houvesse excedente de urânio, o Brasil teria que assegurar fornecimento à Alemanha.
E havia muito mais: denúncias de corrupção, de fraudes da multinacional Esso na venda de combustíveis, uma grande matéria sobre greves operárias na Argentina; a editoria de Cultura trazia o artigo “O nascimento de um regime”, de Paulo Sérgio Pinheiro, em que, utilizando referências de livros como 1964: Golpe ou contra golpe?, de Helio Silva, O governo Castelo Branco, de Luis Viana Filho, e outros, fazia um estudo sobre a origem da ditadura militar. Na página seguinte, uma resenha do livro A revolução dos bandidos, de Eric Hobsbawn. Nas últimas páginas, 23 e 24, contos de Hermilo Borba Filho e Moacyr Scliar.
Mesmo mutilado, o novo semanário trazia novidades e, sobretudo, um novo ângulo de observação da realidade para o leitor. Estimulava o debate político, a reflexão. Apesar do seu poder de retaliação, a censura havia deixado passar textos importantes. Sinal de que o governo já não podia fazer tudo que queria e que um jornal como Movimento tinha respaldo em setores significativos da sociedade.
–
1 Equivalentes a R$ 8,50 em janeiro de 2011 (IGP-DI FGV).
2 Arquivo Nacional/Ministério da Justiça – Fundo DSI/MJ (Despacho com o Sr. Presidente). In: Souza, Maurício Maia. Henfil e a censura: o papel dos jornalistas. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicação e Artes, USP. 3 Entrevista de Sérgio Buarque de Gusmão em 21 de outubro de 2009.
3 Sérgio Buarque de Gusmão – entrevista em 21 de outubro de 2009.
4 Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.
5 Relatório aos acionistas nº 2, outubro de 1975. Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão. 6 Entrevista de Antonio Carlos Tonico Ferreira em 22 de outubro de 2009.
Fonte: Outras Palavras
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