junho 03, 2012

Bruno Cava resenha "O Anti-Édipo", de Deleuze & Guatarri

PICICA: "Pode-se tomar a (enorme) liberdade de trocar a palavra ‘esquizofrenia’, presente desde o subtítulo, por ‘comunismo’. Também com Marx, o comunismo de Deleuze-Guattari, isto é, a esquizofrenia como libertação absoluta do desejo, aparece quando o capitalismo não consegue mais impor e interiorizar os limites com que governa. A esquizofrenia é o limite derradeiro, o bólide com velocidade de escape da órbita do capital. Os fluxos esquizos a todo momento se modificam em intensidade, contornam os limites, se redefinem e se recriam, processo que os autores chamam de ‘desterritorialização-reterritorialização’. A esquizofrenia é o modo de funcionamento do nômade. Em vez de uma deriva perpétua, o nômade migra de acampamento em acampamento, sempre mais ali, onde o poder ainda não está à espreita, onde ele não pode ser totalmente explorado e classificado. E não há no nômade nenhum Holandês Voador, a vagar pelos mares até o fim dos tempos. O comunista precisa da terra e do sentido da terra. A desterritorialização sem reterritorialização acaba produzindo o esquizofrênico hospitalizado, uma produção do capitalismo que impede a materialidade do comunismo."

O Anti-Édipo
Resenha de DELEUZE, Gilles; GUATTARI, F
élix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. ed. 34. 2010 [1972].



Quando se pensa no Maio de 68 europeu, logo vêm à mente alguns livros. Geralmente, lembramos de Eros e civilização (1955), de Marcuse, ou A sociedade do espetáculo (1967), de Debord; às vezes de Os condenados da Terra (1961), de Fanon; ou talvez A arte de viver para as novas gerações (1967), de Raoul Vaneigem. Cânones de seu tempo, foram livros que ficaram registrados como inspiradores da geração, frequentemente citados em retrospectivas, documentários e memórias. O anti-Édipo veio depois da grande turbulência, em 1972. O primeiro da série de livros resultado das núpcias intelectuais entre um filósofo e um médico, daí por diante amados e odiados pelo binômio Deleuze-Guattari.

No começo da década de 1970, a onda já tinha quebrado na cabeça de muitos militantes daquele ciclo. Tempos de frustração, nuvens carregadas, revisionismo. Nada disso deprimiu os autores, que escreveram uma obra sem qualquer compromisso com fardos históricos. Em vez de sentar no sofá e se ressentir, fizeram um livro que age. Que articula novas armas para novos desafios. Não dá pra ler O Anti-Édipo sem dar uns pulinhos de vez em quando. Nele, você passeia por um mundo barroco de jogos, armadilhas, provocações, labirintos, boutades, sacanagens, palavrões, astúcias, gracejos, sacadas, imposturas e impudicícias. Uma experiência tão sexy quanto um livro de filosofia pode proporcionar. E sem a menor vergonha. Um livro-vadia que dá a pensar, que alucina, no meio do que algo se passa e está sempre se passando. Não é para sedentários. É pra ler viajando, ainda que sem sair do lugar. Um livro que jamais apetecerá velhas Guermantes.

Erra feio quem, por desconhecimento ou ódio, atribui a Deleuze-Guattari a aura do pós-modernismo radical chic. Esta espécie de anemia que conjuga bem com o liberalismo fim-de-século, “antitotalitário”, antimilitante e multicultural. Nada menos justo. O livro não prega o respeito às diferenças, mas a agressividade como constitutiva delas. Não propõe vias ecléticas ou conciliadoras, mas a revolução. Nada aquém do que a desordem de uma revolução. Em nenhum momento, se pretende tolerante: o livro ofende sem parar o próximo e confessa o amor pelo distante. E sem deixar que se aproxime muito, pois a relação à distância mesma é que produz. Está atravessado por uma leitura intensiva e ao mesmo tempo distanciada de Marx e Freud, mas também Nietzsche, Spinoza, Kant, Artaud, para citar alguns. Possui uma teoria do estado, uma teoria da moeda, uma teoria do poder constituinte, uma psiquiatria materialista, uma filosofia da imanência, o projeto da esquizoanálise, e muito mais.

O maior protagonista do Anti-Édipo é o desejo. Sem estragar o conceito com antropocentrismos. O humano não deseja propriamente falando, como se fosse o sujeito do desejo. O desejo é que acontece nele, e o faz ser o que ele é — ou não. O desejo em mim é o mesmo desejo no lobo, na samambaia, nas rochas, na Lua, numa poesia de Pessoa ou numa canção de rock. O desejo ativa forças impessoais, não-figurativas, não-simbólicas, forças conspiratórias do Ser. Ele gera o real. Toda a realidade se cria no desejo e pelo desejo, num movimento para dentro e para fora, que se diferencia inclusive em si mesmo, uma vastidão intensiva. Por sermos tocados pelo desejo, sempre há algo em nós que nos convoca para além do que somos. O desejo nos chama de um nome estranho e nós respondemos — outros. Ele é primeiro e doa (ou rouba) tudo, sem contrapartida nem equivalência. Por isso, nenhuma pessoa, nenhuma coisa, nada basta em si próprio. Sempre se pode ativar um excedente, uma carga delirante que desborda e embaralha. Aqui, nenhum vitalismo à vista: tem desejo de vida e tem desejo de morte. Do contrário, as pessoas nunca se suicidariam.

O desejo está em tudo e tudo está nele. Tudo se cria, respira, numa variação contínua. O desejo pulsa no interior das coisas, das relações, dos afetos, das impressões, do que existe e pode existir. Uma metonímia infinita, um continuum de matéria e espírito, a contiguidade última. Daí a coextensividade de que nos falam os autores, entre homem e natureza, entre cultura e universo, que os fluxos desejantes percorrem sem distinção real. Isto não significa que homem e natureza se unam nalguma pasta cósmica e indiferenciada. Mas, sim, que cultura e meio ambiente se dobram e redobram entre si, uma essência natural do homem, uma essência humana da natureza. A natureza funciona como processo de produção, enquanto a humanidade é soprada de todas as formas, figuras e máscaras do universo. Um pan-desejo essencialmente revolucionário, só por querer como, com efeito, ele quer: infinitamente.

Mas sucede também o desejo por fascismo. Isto é real. As pessoas não foram enganadas para apoiar ditaduras. Elas quiseram. E muitas pessoas efetivamente desejaram e desejam a mão que bate, explora, que faz sofrer o outro. O problema é menos de falsa consciência do que explicar porque a servidão voluntária pode acontecer. Portanto, não é questão de denunciar ideologias, mas compreender a materialidade do funcionamento do próprio desejo. Como podemos realmente desejar aquilo que nos reduz a potência de agir e existir? A pergunta de Deleuze-Guattari não é simplesmente por que, em face do intolerável, algumas pessoas se revoltam? Mas, por que não se revoltam todas o tempo todo? Eis um materialismo à altura de Marx. Embora o desejo seja infinito movimento e não tenha finalidade intrínseca, existem maneiras de recalcá-lo. Bloquear a sua potência revolucionária, usá-lo para oprimir e submeter. Toda uma maquinaria histórico-política, com suas forças de reprodução e repressão sociais, para esclerosar os fluxos produtivos, fazê-los voltar contra si mesmos, como na vontade de poder, do dinheiro, de ser amado, em toda essa abjeção de servo. No fascismo, apaixonamo-nos não só pelo poder, mas pelo poder em nosso eu-querido, nossa vaidade de pertencer àlguma raça de senhores.

Nesse sentido, Deleuze-Guattari se propõe a realizar uma crítica da economia política do desejo. Para isso, como o melhor Marx, o Marx dos Grundrisse, eles desbravam a formação do capitalismo. Três máquinas sociais, apropriadoras das forças desejantes, são descritas no capítulo 3. A máquina primitiva dos selvagens, a máquina despótica dos bárbaros e a máquina capitalista dos civilizados. A tarefa consiste em compreender como, na materialidade, operam essas maquinarias. Por meio de qual regime de funcionamento o desejo acaba sendo conduzido à servidão voluntária, como são organizados o social e o desejo? Com fôlego de maratonista, o capítulo aborda como o capitalismo — esse Inominável — pôde ter ocorrido, a partir das formas pré-capitalistas, na contingência dos encontros e acasos que nos levaram até ele. Mas também almeja encontrar, dentro e contra a máquina capitalista, as faíscas no vento, as faíscas que anseiam pelo barril de pólvora.

Segundo o Anti-Édipo, onde está a alteridade radical ao capitalismo?

Pode-se tomar a (enorme) liberdade de trocar a palavra ‘esquizofrenia’, presente desde o subtítulo, por ‘comunismo’. Também com Marx, o comunismo de Deleuze-Guattari, isto é, a esquizofrenia como libertação absoluta do desejo, aparece quando o capitalismo não consegue mais impor e interiorizar os limites com que governa. A esquizofrenia é o limite derradeiro, o bólide com velocidade de escape da órbita do capital. Os fluxos esquizos a todo momento se modificam em intensidade, contornam os limites, se redefinem e se recriam, processo que os autores chamam de ‘desterritorialização-reterritorialização’. A esquizofrenia é o modo de funcionamento do nômade. Em vez de uma deriva perpétua, o nômade migra de acampamento em acampamento, sempre mais ali, onde o poder ainda não está à espreita, onde ele não pode ser totalmente explorado e classificado. E não há no nômade nenhum Holandês Voador, a vagar pelos mares até o fim dos tempos. O comunista precisa da terra e do sentido da terra. A desterritorialização sem reterritorialização acaba produzindo o esquizofrênico hospitalizado, uma produção do capitalismo que impede a materialidade do comunismo.

Como Marx, Deleuze e Guattari apontam no capitalismo uma contradição fundamental. Por um lado, o capital precisa fomentar a produção desejante, necessita do trabalho vivo, da produtividade geral do mundo, para continuar canalizando riqueza. Afinal, sem vampirizar a potência das pessoas, o capital — trabalho morto que é — resta improdutivo. Por outro lado, o capital não pode perder o controle das potências que explora, as mesmas que precisou fortalecer em primeiro lugar. É preciso governar o que se quer ingovernável, o desejo que quer sempre mais. É preciso inscrever os agentes de produção e as forças produtivas na maquinaria do capital, que então se atribui o mérito pela (limitada) produção de riqueza. Daí que a classe capitalista não pode deixar de impor limites, estabelecer medidas e métricas, regular os fluxos selvagens, conter o dilúvio de quereres. Esses limites podem ser tanto da ordem externa (a polícia, as leis, a propriedade, a burocracia), quanto interna (as identidades, a culpa, a interiorização da dívida). E não se acredite o capitalismo vá sucumbir às próprias contradições, como se houvesse um fim da história. Isso seria hegelianismo de esquerda. Nunca ninguém morreu de contradição. Pelo contrário, a máquina capitalista aprendeu a perseverar na crise, mediante um estado-crise que habitualmente se alimenta das contradições que provoca, das angústias e medos que suscita, das fomes e desastres que deixa acontecer.

No Anti-Édipo, não existe nenhuma proposta de contenção da produção, da circulação, do consumo. É o inverso: não há consumo suficiente! O mal do capitalismo não está em produzir demais, mas na antiprodução que dissemina. O capital é quem forja a escassez e a divisão do trabalho. O modo capitalista frustra o compartilhamento generalizado de tudo, negando a superabundância. O momento revolucionário está em extrapolar as contenções, em elevar a potência de existir até o ponto em que ela não possa mais ser axiomatizada e expropriada. Não se trata de sair do mercado mundial, de aspirar a um “fora” utópico da ordem capitalista, mas acelerar o processo. O capitalismo se conserva graças a uma infernal econometria de dívidas e cobranças, em que todos devemos mais do que podemos pagar. Ele pode ser tornado sempre mais insustentável. Esse comunismo desarranjado vive quando se desmontam os axiomas do mercado e do estado, do indivíduo e do coletivo, — tudo isso que recalca, confina, acumula, reproduz. O comunismo vive quando se rompe o que permite medir as coisas e as pessoas por seus valores, sob o critério da equivalência geral, quantificante e abstrata. Quando a máquina não suporta mais. Como um aneurisma, um mau funcionamento localizado, um excesso de todo inesperado, capaz de sobrecarregar o complexo sistema de fluxos e extração de fluxos e vazar o sangue dos poros. A revolução acontece quando os diques se rompem. Só o desejo, pensado e agido, pode orientar-nos nesse dilúvio.

De fato, é um livro marxista, militante e revolucionário.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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