PICICA: "Vemos
alardeada a propaganda de que somos a sexta maior economia do mundo,
vemos o capital financeiro internacional publicizar as boas condições de
investimento no país da Copa do Mundo, das Olimpíadas, do “Risco
Brasil” atraente aos investimentos estrangeiros, mas não há mudanças
estruturais em setores fundamentais para a alavancagem de um projeto de
desenvolvimento nacional, como a educação e a saúde.
No
caso da educação, os dados nadam em sentido contrário ao otimismo
alardeado por governo e pelo sistema financeiro. De acordo com Relatório
da Unesco “Educação para Todos”[4],
no ranking de 128 países, conhecido como índice de Desenvolvimento de
Educação para Todos (IDE), perdemos, nos últimos dez anos, 16 posições:
passamos de 72º para 88º. Estamos em penúltimo lugar na América do Sul."
Greve do ensino público superior e projeto de nação
Qual é o papel das universidades públicas federais de um país em que as elites se desincumbiram do projeto de formação da nação?
04/06/2012
Rafael Villas Bôas
da UnB, campus de Planaltina[1]
Significa algo sermos a sexta economia do planeta ao mesmo tempo em que estamos na 88ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento em Educação (IDE). Qual é o papel das universidades públicas federais de um país em que as elites se desincumbiram do projeto de formação da nação, enquanto as grandes maiorias clamam pelos direitos que historicamente lhes foram negados?
Quem se graduou na década de 1990 na universidade pública brasileira não deve ter vislumbrado como um caminho natural, ou promissor, durante os anos de formação, a perspectiva de se tornar um professor de universidade federal. A precarização da infra-estrutura e a falta de contratação de novos docentes foram táticas do desmantelamento que as federais sofreram pelo governo FHC, tornando mais próximo o horizonte da privatização.
As greves que os professores universitários fizeram naquela década foram fundamentais para barrar a inclusão das universidades no programa de privatização do governo do PSDB e permitiram a articulação com outros segmentos de trabalhadores. Para os estudantes, aqueles momentos foram formativos porque a ação política se encontrou com o debate sobre as principais questões da agenda nacional. A universidade foi à rua.
O horizonte mudou com a política de expansão do ensino superior público federal promovida pelos dois governos Lula. Novas universidades, novos campi, novos cursos, reabertura de vagas para contratação de docentes e ampliação do acesso ao ensino superior. Bandeiras históricas da luta sindical e do movimento estudantil foram, em parte, contempladas. A carreira docente se tornou novamente uma possibilidade viável para os futuros pesquisadores.
Entretanto, as políticas de inclusão da população no ensino superior visam atender demandas muitas vezes alheias àquelas forjadas pelos que propunham, na década de 1960, a Reforma Universitária, como uma das reformas de base que garantiria a formação de quadros compromissados com o projeto de nação, democrático e popular, que se forjava[2]: as vagas ociosas das instituições privadas são cobertas com dinheiro público, mas a suposta fiscalização do Estado não garante que a dinâmica das privadas se assemelhe a das universidades públicas, daí a política desenfreada de mercantilização, rebaixamento dos salários dos professores, ausência de incentivo à pesquisa e à extensão; nas públicas o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI tem como foco a expansão quantitativa de vagas discentes, da estrutura física, sem abordar no mesmo compasso a política de valorização salarial dos docentes, e demandas para processos formativos de qualidade, como maior investimento para pesquisa, etc[3]; a política de pesquisa é hierarquicamente superior ao ensino e à extensão, e pelos critérios de produtividade na base de pontuação da plataforma Lattes, tem-se um fenômeno míope de auto-centramento, que não prevê possibilidade de participação ativa dos segmentos organizados da sociedade na discussão sobre a agenda de pesquisa das universidades, ao mesmo tempo em que abre os flancos para todo tipo de parceria com a iniciativa privada, que age como uma espécie de indutora de demandas e investimentos.
Portanto, a despeito da resistência à privatização, a universidade não passou incólume ao projeto hegemônico imposto pelo novo ciclo de modernização conservadora, que prioriza o investimento na expansão de setores que nos garantem, em contexto de crise sistêmica, melhor posicionamento no cenário internacional, com a exportação de commodities derivadas de produtos agrícolas e minerais, mas que mantém a condição periférica de inserção no sistema mundial, como mercado emergente.
Vemos alardeada a propaganda de que somos a sexta maior economia do mundo, vemos o capital financeiro internacional publicizar as boas condições de investimento no país da Copa do Mundo, das Olimpíadas, do “Risco Brasil” atraente aos investimentos estrangeiros, mas não há mudanças estruturais em setores fundamentais para a alavancagem de um projeto de desenvolvimento nacional, como a educação e a saúde.
No caso da educação, os dados nadam em sentido contrário ao otimismo alardeado por governo e pelo sistema financeiro. De acordo com Relatório da Unesco “Educação para Todos”[4], no ranking de 128 países, conhecido como índice de Desenvolvimento de Educação para Todos (IDE), perdemos, nos últimos dez anos, 16 posições: passamos de 72º para 88º. Estamos em penúltimo lugar na América do Sul.
Se comparada com seus pares latino-americanos, a universidade brasileira, a despeito de suas ilhas de excelência, está longe de corresponder às demandas por educação condizentes ao tamanho de sua população e de seu território. Enquanto países como Bolívia, e Equador elevam para mais de 30% o percentual de jovens que tem acesso à universidade, o Brasil tem 14,1 milhões de analfabetos entre a população com mais de 15 anos, aproximadamente o mesmo de 1964, e apenas 3% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos chegam ao ensino superior público[5].
A universidade federal brasileira que os recém-contratados professores encontram é pública, mas a dinâmica que rege as condições de trabalho é liberal[6]. Não consta em nossos concursos que teremos que demonstrar habilidades no campo do empreendedorismo, mas na prática é um pressuposto implícito saber se virar na esfera da livre iniciativa do mundo acadêmico, para disputar as verbas sempre escassas dos editais das agências de fomento. A faculdade se preocupa com a gestão da verba de custeio e com a infra-estrutura geral, e o professor fica com a incumbência de captar, administrar e prestar contas dos recursos para viabilizar suas condições de trabalho. Sem isso, dificilmente conseguirá atuar no campo da pesquisa e da extensão. O que temos garantido à nossa espera é uma vasta demanda de créditos e disciplinas a cumprir e uma estrutura precária de trabalho.
Uma das conseqüências desse modelo de universidade empreendedora, de gestão liberal, com foco na prestação de serviços, é a dessolidarização dos laços entre os docentes, e de nosso segmento com os técnicos e estudantes. A “comunidade acadêmica” é composta por funcionários terceirizados, técnicos efetivos que recebem baixíssimo salário, professores que têm a carreira mais mal remunerada das profissões do funcionalismo público federal que exigem a qualificação de doutor, professores substitutos, e por estudantes, desde os tradicionais filhos da elite e da classe média, até o grande contingente da primeira geração da classe trabalhadora pobre que chega à universidade – mas que encontra muita dificuldade de se manter nela durante o curso por conta da falta de renda e do despreparo da assistência estudantil para recebê-los e mantê-los.
Conseqüência de um processo de expropriação do protagonismo político que a universidade brasileira desempenhou outrora, desprovida de qualquer concepção de planejamento estratégico vinculado ao compromisso com a reelaboração do significado da construção de um projeto de nação, a universidade é expressão da educação como pivô de ascensão social, ambição de uma geração dessolidarizada, vítima de mais de duas décadas de hegemonia neoliberal.
Todavia, os movimentos sociais das classes populares não abandonaram o pleito pela democratização do acesso à universidade, em consonância com suas perspectivas de projeto de país. Desde a década de 1990 a universidade brasileira é pressionada pelos movimentos sociais do campo, pelo movimento negro e pelo movimento indígena para adotar medidas de democratização de sua estrutura concentrada: antes da adoção da política de cotas para negros,[7] apenas 2% da população negra brasileira tinha acesso ao ensino superior público, de um universo de quase 50% da população do país formada por negros e afro-descendentes (mais de 90 milhões de pessoas). Com a criação do Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (Pronera), em 1998, vários cursos superiores foram criados em parcerias de movimentos do campo com universidades visando suprir a demanda de quadros profissionais para a vida no meio rural brasileiro.
Na UnB, o curso regular de Licenciatura em Educação do Campo tem demanda crescente por vagas no vestibular: na sexta edição do vestibular, se inscreveram 900 pessoas, para 60 vagas, o que significa quase um vigésimo dos 20 mil escritos no vestibular do meio do ano de 2012, para mais de 105 graduações que a universidade oferece. Indício do empenho das populações do campo na qualificação de professores de suas próprias comunidades assentadas e quilombolas.
Diante disso, cabe nos indagar sobre quais critérios de desenvolvimento devemos considerar se nossa meta é a retomada de um projeto de nação? Com quem devemos procurar interlocução, escutar e compartilhar experiências se queremos que a universidade pública retome a missão de formar quadros para o cumprimento do projeto de construção da nação, renegado pela classe dominante?
Das corporações transnacionais, da iniciativa privada brasileira, já sabemos o que esperar: delegam para as universidades a capacitação de quadros para seus serviços, numa espécie de desoneração fiscal indireta, na medida em que se desincumbem do investimento em Ciência e Tecnologia, por meio das parcerias que estabelecem com as universidades.
É no âmbito da missão com o compromisso público, com as demandas sem fins lucrativos dos segmentos organizados da sociedade civil que estamos em déficit. Nossa agenda de pesquisa não compreende como interlocutores essas organizações, os movimentos sociais, as formas organizativas de diversos segmentos da classe trabalhadora. Sequer em termos de estrutura física - alojamentos, restaurantes universitários nos novos campi, etc – e assistência social, estamos preparados devidamente para receber esse novo contingente.
Mas, cabe ressaltar que, a despeito da hegemonia liberal que impera também na universidade pública brasileira, há confrontos em andamento, há pressões pela democratização da estrutura de nossas instituições, expressas, por exemplo, na disputa pela democratização do sistema de eleição dos reitores das universidades federais: atualmente temos, com a recente votação do Conselho Universitário da UnB pelo sistema paritário, 38 de 54 universidades federais adotando esse sistema, o que representa cerca de 70% do total[8]. E, além da luta pelos avanços da democracia participativa interna, há protagonistas coletivos do lado de fora, que pela legitimidade de suas lutas e demandas, podem colaborar para a ressignificação do papel da universidade na construção de um projeto de nação.
O movimento negro logrou vitória épica nas últimas décadas, com o fim da supremacia ideológica do mito da democracia racial, na medida em que obrigou o Estado brasileiro a assumir sua responsabilidade com o regime escravocrata que nos legou a manutenção do racismo como prática social sistêmica. A UnB foi pioneira entre as federais na adoção do sistema de cotas para afro-descendentes, e recentemente venceu no Supremo Tribunal Federal batalha travada com o partido Democratas, que alegava ser inconstitucional nossa medida, e tinha como porta-voz o senador Demóstenes Torres, hoje em evidência por ser membro de uma quadrilha de contraventores.
Como o debate da luta legítima pela reconstrução de nosso plano de carreira deve ser parte desse projeto maior, a greve pode ser o momento da retomada dos vínculos com interlocutores organizados de outros segmentos da classe trabalhadora. O espaço de nossos campi pode ser ressignificado por meio das ações de greve que pudermos inventar e recuperar das lutas passadas: oficinas abertas, aulas públicas, seminários, mostras teatrais, produção, exibição e debate de filmes, visita às escolas de ensino médio para debatermos o ensino brasileiro, produção de jornais, revistas, blogs, para divulgarmos nossas posições, nossas reflexões, etc. Orientadas pela ação formativa, pela troca de experiência, pela escuta em busca do aprendizado das experiências que vêm de fora da universidade, e pela premissa da transferência dos meios de produção das linguagens, técnicas, conhecimentos que adquirimos e acumulamos, poderemos estabelecer efetiva comunicação com diversas organizações da sociedade, superando a dependência da imprensa empresarial de grande porte, que antes de problematizar a greve, de colaborar para o debate, tem sempre a postura de tratar a greve (qualquer que seja) como um mero inconveniente, decorrente da paralisação de uma prestação de serviços, quando não partem para a hostilização direta.
Se hoje é evidente que o projeto de crescimento econômico, que não altera nossa condição de país periférico no sistema mundial, delega às universidades públicas a posição secundária e instrumental de prestadora de serviços, devemos como parte da classe trabalhadora brasileira rediscutir qual nosso papel para reelaboração de um projeto de nação que atenda às demandas da maioria da população brasileira.
[1] Professor do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UnB. Correio eletrônico: rafaelvb@unb.br
[2] Vide pesquisa “Educação superior no Brasil - 10 anos pós-LDB” / Mariluce Bittar, João Ferreira de Oliveira, Marília Morosini (Organizadores). Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira, 2008. Disponível em http://www.oei.es/pdf2/educacao-superior-brasil-10-anos.pdf, acessado 04/06/2012.
[3] Vide artigo “Reuni: heteronomia e precarização da universidade e do trabalho docente”. LEDA, Denise Bessá; MANCEBO, Deise. In Revista Educação e Realidade. 34(1): 49-64. Porto Alegre: UFRGS: jan/abr 2009.
[4] Fonte: http://www.unesco.org/new/en/education/themes/leading-the-international-agenda/efareport/reports/2010-marginalization/ acessado em 01/06/2012.
[5] http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/ acessado em 04/06/2012. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/2009).
[6] Vide artigo de Valdemar Sguissardi “Modelo de expansão da educação superior no
Brasil: predomínio privado/mercantil e desafios para a regulação e a formação universitária”. In Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 105, p. 991-1022, set./dez. 2008. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/es/v29n105/v29n105a04.pdf, acessado em 04/06/2012.
[7] A Universidade de Brasília foi a primeira federal a instituir o sistema de cotas, em junho de 2004, após cinco anos de debates (http://www.unb.br/estude_na_unb/sistema_de_cotas, acessado em 02/06/2012).
[8] Vide reportagens da Agência de Notícias da UnB, acessado em 02/06/2012: http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=6645 e http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=6659
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