agosto 06, 2012

"Quando a ideologia é a droga", por Marcos Rolim

PICICA: "Nossas diferenças de perspectiva no debate sobre a política de drogas e sobre as internações compulsórias são conhecidas e demarcam dois campos que, no Brasil e no mundo, têm disputado alternativas de políticas públicas. Não se pode assegurar, é evidente, que as políticas de descriminalização e que promovem um recorte no mercado das drogas, com posturas de tolerância frente às drogas mais leves, sejam as mais adequadas para o Brasil. O que é possível assegurar é que as políticas proibicionistas e a correlata ideia de “um mundo sem drogas” – com a ênfase nas abordagens em favor do absenteísmo que tanto agradam a psiquiatria conservadora – estão produzindo há décadas, em todos os lugares, um dos mais impressionantes fracassos da modernidade." EM TEMPO: O tema é tabu entre parlamentares amazonenses. Fora do alcance dos refletores alguns são liberais; publicamente, entretanto, vestem o manto do conservadorismo. Tanto assim que se contentam com a ausência de uma rede pública de atenção aos abusadores de álcool e outras drogas. A que existe está nas mãos de particulares, que vivem às expensas dos recursos públicos. Tais parlamentares não estão sós. Seus acólitos costumam reduzir a questão das drogas ao campo das minorias, enquanto a mídia alardeia a expansão do consumo. A história da república está repleta de  minorias solenemente ignoradas. Mais recentemente, os drogados somaram-se aos loucos, os homossexuais e os indígenas. Tais 'minorias' são criminalizadas por suas demandas por inclusão social, liberdade de orientação sexual e direito ao território. Ao fecharem os olhos para essas minorias, penalizando-as com políticas públicas discriminatórias, a cultura política não só volta a cair em círculos viciosos de repetição de espaços e lugares já conhecidos, como ao desprezar a alteridade, deixando de abrigar em si o outro, a favor de uma ideologia, estamos diante da pior das dependências.

QUANDO A IDEOLOGIA É A DROGA - réplica ao deputado Osmar Terra

Marcos Rolim

O deputado Osmar Terra publicou no jornal Zero Hora da última terça-feira (31/07) uma resposta (http://migre.me/a85Yy) à minha crônica “Drogas?

É preciso pensar” (http://migre.me/a862w) em que cobrei dos que assinaram o “Manifesto Contra a Descriminalização do Uso de Drogas” (http://migre.me/a85Tm) as referências científicas que amparam as suas afirmações.

Esta réplica é feita em nome da qualificação do debate e da melhora dos argumentos do deputado Terra, pessoa por quem sempre mantive respeito e consideração e que poderia ter produzido um texto muito melhor em defesa de suas posições do que o tal "Manifesto".

Nossas diferenças de perspectiva no debate sobre a política de drogas e sobre as internações compulsórias são conhecidas e demarcam dois campos que, no Brasil e no mundo, têm disputado alternativas de políticas públicas. Não se pode assegurar, é evidente, que as políticas de descriminalização e que promovem um recorte no mercado das drogas, com posturas de tolerância frente às drogas mais leves, sejam as mais adequadas para o Brasil. O que é possível assegurar é que as políticas proibicionistas e a correlata ideia de “um mundo sem drogas” – com a ênfase nas abordagens em favor do absenteísmo que tanto agradam a psiquiatria conservadora – estão produzindo há décadas, em todos os lugares, um dos mais impressionantes fracassos da modernidade.

Não por outra razão, um número cada vez maior de países– inclusive na América Latina – tem alterado suas políticas de drogas, apostando cada vez mais em métodos como a redução de danos e diferenciando as abordagens sobre os diferentes tipos de drogas. O “Manifesto”, articulado por Terra e assinado por grande número de políticos de direita e outros segmentos conservadores, faz de conta que este movimento não existe e não apresenta uma só evidência a favor da política de drogas em vigor no Brasil; exatamente aquela que procura preservar. Mas é esta política de drogas que deve ser objeto de debate, por conta dos efeitos devastadores que tem produzido. Por isso, entendo que não devemos mais engolir gato por lebre, nem admitir argumentos de autoridade. Nos termos em que foi redigido, o “Manifesto” é uma fraude política e uma peça publicitária delineada para obscurecer a razão e estimular os preconceitos. Que algumas pessoas sérias o tenham assinado é tão-somente lamentável.

Terra disse que, como se tratava de um manifesto, as referências não foram indicadas, mas que “cada frase” teria “embasamento em evidências e publicações internacionais”. Citou, então, três relatórios 1) do UNODOC, sobre a Suécia, 2007; 2) do Espad, do Centro Europeu de Monitoramento para Drogas, 2011 e 3) do International Narcotics Control Board, 2011.

Muito bem. Em atenção a estas indicações, li cada um dos relatórios. Nada do que está escrito neles sustenta a afirmação do “Manifesto” de que a experiência de descriminalização do uso de drogas em Portugal tenha sido um fracasso.

O relatório do UNUDOC sobre a experiência sueca (http://migre.me/a82Uh) revê as principais evidências a respeito das políticas restritivas aplicadas na Suécia desde os anos 70 com relativo sucesso – especialmente se levarmos em conta os níveis mais baixos de consumo de drogas ilegais em comparação com a média européia. Mas o relatório reconhece que o fato da Suécia manter 0,44% de sua população entre 15 e 64 anos com problemas de uso “pesado” de drogas ilegais – pouco menos que a média europeia de 0,52% - assinala um limite importante. Chama atenção, ainda, para as particularidades desta experiência, lembrando que a Suécia foi o primeiro país a aplicar políticas de redução de danos com programas de uso de metadona e, ao lado da Holanda, um dos pioneiros em programas de troca de seringas para usuários de drogas. Deveria se lembrar, ainda, que a política restritiva ao consumo de drogas na Suécia sempre foi delineada como uma política pública de saúde que envolveu, também e fortemente, as bebidas alcoólicas que só podem ser vendidas em liquor stores e em quantidades limitadas. Tudo isto parece ter pouco a ver com a estupidez praticada no Brasil em nome da “guerra contra as drogas”. Em outubro de 2011, a propósito, havia em toda a Suécia 5.150 presos (http://migre.me/a83Qg), o que – tomando-se uma população equivalente - significa seis vezes menos encarcerados do que no RS.

O relatório do Espad (http://migre.me/a7Yjs) agrega dados interessantes sobre consumo de drogas lícitas e ilícitas em 36 países europeus. Sobre as drogas ilegais, destaca países como República Tcheca e França como os de maior prevalência de consumo entre jovens de 15/16 anos (percentuais de 39% a 43% de usuários) e países como Bósnia e Herzogovina, Montenegro e Noruega como os de menor prevalência (por volta de 6% de usuários). Em média, 21% dos garotos e 15% das meninas entre 15 e 16 anos experimentaram (pelo menos uma vez) alguma droga ilícita; a grande maioria deles usou maconha.

Com relação a Portugal, o estudo demonstra que das oito variáveis estudadas (tabaco, álcool, abuso de álcool, maconha, outras drogas ilícitas, tranqüilizantes sem prescrição, inalantes e volume de álcool consumido na última vez) os jovens portugueses estão na média em cinco deles e abaixo da média em três. Conclusão: “a impressão geral é que os hábitos de uso de substâncias relatados pelos estudantes portugueses é bastante similar àqueles da média dos estudantes do Espad”.

Já o relatório do International Narcotics Control Board(http://migre.me/a7Zbt) aponta maior prevalência para o consumo de maconha entre adultos europeus na Itália, República Tcheca e Espanha (entre 14,3% e 10,6%) e a menor prevalência na Romênia, Malta e Suécia (entre 0,4 % e 1,2%). Diz que o uso de maconha é estável na Europa, com declínio em alguns países. Aumentos de casos de abuso têm sido encontrados em países como Bulgária, Estônia, Finlândia e Suécia. Os dados são praticamente os mesmo para outras drogas como cocaína. Não é apresentada qualquer avaliação sobre a experiência portuguesa de descriminalização do uso de drogas nestes documentos.

O deputado Terra reconheceu em sua resposta que não há dados no Brasil sobre a prevalência de drogas ilícitas nos envolvidos em acidentes de trânsito. A expressão “boa parte” utilizada no “Manifesto” é, assim, totalmente arbitrária e sem fundamento. A menção que Terra faz ao “trabalho científico” de Julio Ponce e Vilma Leyton, que alertaria sobre “a responsabilidade de drogas ilícitas em boa parte dos acidentes” não ajuda, porque o trabalho é um singelo artigo de revisão bibliográfica, de apenas três páginas (http://migre.me/a7Zzo) cujo único dado sobre o Brasil refere-se a estudo com motoristas de caminhão que encontrou uma prevalência de uso de drogas de 7% (na urina) e 3% (no sangue) com destaque para o álcool e as enfetaminas; drogas legais, portanto.

Após a resposta do deputado Terra, ficou claro que os autores e subscritores do “Manifesto” fizeram uma afirmação totalmente desprovida de base científica sobre o “fracasso” da experiência portuguesa de descriminalização do uso de drogas, entre outras. O que parece evidenciar que Terra tem razão em pelo menos um ponto: posturas ideológicas e sem compromisso com evidências só farão mal a este debate. Às vezes, se deve acrescentar, elas são mesmo uma droga que pode criar dependentes.

Fonte: Marcos Rolim

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