PICICA: "Spinoza, em um dos mais belos capítulos da história da Filosofia, nos
ensinou que as Escrituras importam não porque são relatos precisos, mas
porque mesmo em sua natureza imaginária possuem uma dimensão real. O
imaginário é, portanto, real enquanto imaginário e, também, na realidade
que as imagens não deixam de nos passar. O comum da religião, a
possibilidade de comunhão entre o Homem e Deus (ou Natureza).
E religião não se confunde com "teologia", nunca se confundiu. A
religião não é sinônimo de platonismo do mesmo modo que a política, e
também a ciência, não estão livres disso, basta ver toda história do
totalitarismo no século 20º. Nem mesmo o monoteísmo é a expressão
necessária do platonismo, basta ver inúmeros movimentos históricos, dos
místicos essênios no tempo de Cristo ou mesmo a Teologia da Libertação
(que era tanto mais uma libertação da teologia) acolhendo os pobres
diante do terror das ditaduras militares na América Latina."
A Poética da Páscoa: Feliz Êxodo, Feliz Ressurreição
Ressurreição de Cristo -- Rafael |
A história da Páscoa, a Passagem, é amplamente conhecida. Eis o povo hebreu,
a multidão produtiva feita escrava na nascente civilização: eram,
àquela época, cativos no Egito, sujeitos ao poder soberano do Faraó.
Liderados por Moisés, escapam ao domínio do despotismo por meio da fuga.
Está tudo lá. A potência produtiva dos pobres, o êxodo, a linha de fuga
como expressão máxima de resistência, a debilidade congênita de
(qualquer) ordem imperial -- todas parasitárias -- e, sobretudo, o
desfecho na exceção verdadeira da multidão, no evento da miraculosa
travessia do Mar Vermelho.
A Páscoa cristã simboliza a passagem do Cristo e sua vitória sobre a
morte: a exceção constitutiva da biopolítica sobre a exceção destrutiva
do biopoder. Nenhuma sentença de morte, nenhum juízo imperial sobre a
vida e a morte, é capaz de, em último caso, negar a vida ou absorvê-la
por completo. É o que me interessa no cristianismo, isto é, seu aspecto
filosoficamente antifilosófico -- no sentido de oposto à tradição, seja
ao platonismo, as fórmula ideais de exclusão e da submissão, ou à
ditadura da Lei como fórmula derradeira da legitimação daquilo que, por
sua natureza, é ilegítimo.
O primeiro episódio em relação ao segundo é o eterno retorno daquilo que
há de mais intenso, daquilo que força as coisas ao seu limite. A
potência da multidão e o testemunho dado com o próprio corpo contra o
Império. Fluxos livres, jeitos que não se deixam fazer su(b)jeitos e
passam para além de esquemas. Nada mais belo. Retomar a Páscoa, em
tempos de cólera, é fundamental. Seja por uma questão de continente ou
por outra, de conteúdo.
Spinoza, em um dos mais belos capítulos da história da Filosofia, nos
ensinou que as Escrituras importam não porque são relatos precisos, mas
porque mesmo em sua natureza imaginária possuem uma dimensão real. O
imaginário é, portanto, real enquanto imaginário e, também, na realidade
que as imagens não deixam de nos passar. O comum da religião, a
possibilidade de comunhão entre o Homem e Deus (ou Natureza).
E religião não se confunde com "teologia", nunca se confundiu. A
religião não é sinônimo de platonismo do mesmo modo que a política, e
também a ciência, não estão livres disso, basta ver toda história do
totalitarismo no século 20º. Nem mesmo o monoteísmo é a expressão
necessária do platonismo, basta ver inúmeros movimentos históricos, dos
místicos essênios no tempo de Cristo ou mesmo a Teologia da Libertação
(que era tanto mais uma libertação da teologia) acolhendo os pobres
diante do terror das ditaduras militares na América Latina.
Não é religião ou política (laicidade, modernidade ou ciência), mas um
confronto aberto ao que desgraça ambas. É assumir uma fé prática, sem
esperança ou medo -- ou crenças no futuro -- ancorada no amor
incondicional, em uma paixão pelo real e pelo atual que nos permite
resistir até o fim diante, até mesmo, do que há de mais desesperador.
Uma fortaleza existencial e re-existencial, voltada ao que há de comum
entre o eu e o todo, o nós e a natureza. Não ter medo de rezar enquanto a
chuva cai para, mas não rezar por medo: encontrar o Paraíso que está
aqui e agora, à nossa mão. A religião, mesmo o monoteísmo, como
liberdade e potência.
Fonte: O Descurvo
Io e Te (Eu e você) de Bernardo Bertolucci