PICICA: "a atitude da multidão nas
ruas de, a um só tempo, rejeitar os grandes meios de comunicação como
símbolos tão conectados à corrupção que eles rejeitam quanto os partidos
e fazer sua própria mídia, filmando e denunciando através dos
celulares, quando nas ruas, e se mobilizando através das redes sociais, é
paradigmática da miséria política das propostas reformadoras do sistema
representativo."
A crise da media(ção) em tempos (i)mediatos
“Do gueto nasce o caos que desestabiliza os mass media,
pegos na emboscada da guerra interior, da violação dos direitos
humanos, do espetáculo fascinante e incessantemente renovado da imolação
e da agonia.” – Paul Virilio, A arte do motor, São Paulo, Estação Liberdade, 1996 [1993], p. 18.
Após as ‘jornadas de junho’, um dos motores
do movimento dos movimentos que parece ter se consolidado no debate
político é o da crise da representação. Por toda parte, os analistas,
sejam os do oligopólio midiático ou os das burocracias partidárias, da
direita à esquerda, sem distinção da posição em que se encontram no
arranjo institucional (situação ou oposição), parecem convergir no
diagnóstico de que os descolamentos entre os eleitores e seus
representantes, os cidadãos e as instituições, foram algumas das
principais determinações do evento.
À esse diagnóstico respondem as lideranças
partidárias e os militantes com anúncios da promoção de uma reforma do
sistema político — a mídia, para quem a corrupção e a distorção da
representação são, a bem da verdade, o combustível das suas próprias
intervenções políticas, apenas acompanha –, e, a depender da orientação
em questão, com a problematização oposta dos problemas encontrados:
financiamento público exclusivo de campanha, voto distrital, lista
fechada, aberta ou mista, etc..
Sem que algumas dessas demandas não sejam,
de fato, importantes na democratização do sistema político-eleitoral, o
que não se pode perder de vista é outro ponto, verdadeiramente
fundamental: que o problema da representação não se resume ao campo
institucional da política, mas atravessa todos os segmentos da
sociedade, incluindo-se, certamente, a mídia, cuja própria etimologia se
assenta na ideia da representação (mediação). Não à toa, aliás, a
imprensa e os partidos políticos nascem, em termos verdadeiramente
significativos, juntos, como gêmeos siameses durante a emergência da
sociedade burguesa oitocentista, na aurora da modernidade. São
representantes genuínos do surgimento de um novo tipo e uma nova lógica
de representação que pretende gerir a crise do poder e da soberania,
dando-lhes uma solução em consonância com o ditado: vão-se os anéis, mas
ficam os dedos, após o proletariado emergir dos escombros das
revoluções burguesas, ameaçando a própria ordem novíssima, recém
instaurada.
Por essa razão a atitude da multidão nas
ruas de, a um só tempo, rejeitar os grandes meios de comunicação como
símbolos tão conectados à corrupção que eles rejeitam quanto os partidos
e fazer sua própria mídia, filmando e denunciando através dos
celulares, quando nas ruas, e se mobilizando através das redes sociais, é
paradigmática da miséria política das propostas reformadoras do sistema
representativo.
Com essas ações, os manifestantes demonstram
desejo e capacidade de serem sua(s) própria(s) mídia(s), abolindo,
revolucionariamente, dessa forma a própria noção da mediação. Como
alertou o filósofo político italiano Paolo Virno ‘uma oposição a esse
percurso, que se conduz em nome dos valores da representação’ é
‘ineficaz e patética’, ‘tão eficaz quanto pregar a castidade aos
pássaros’¹.
Da mesma forma, as máscaras, a identidade anonymous e,
particularmente, a declaração de um dos militantes do Movimento
Passe-Livre, que, perguntado sobre sua identidade, respondeu que seria
‘ninguém’ (declaração que já recebeu tratamento mais detido num artigo fantástico de Peter Pál Pelbart) –
a mídia, ávida por encontrar um representante e levar o jogo para o
próprio terreno, fracassando miseravelmente ante a sagacidade política
do militante – são sintomas do desgaste da delegação mediada como forma
de resolução dos conflitos sociais e políticos.
Revendo o diagnóstico, certamente míope,
tanto dos grupos de mídia quanto dos partidos políticos, seria possível
dizer mesmo que não vivemos uma crise de representação, mas que
apenas se descortinou — diante de inovações que redefinem radicalmente o
tempo (produtivo, histórico e antropológico), fazendo-nos aquilatar sua
extensão e vislumbrar um horizonte também radicalmente novo, onde se
vive no plano do imediato* — pela primeira vez o fato de que a representação é ela a mesma a expressão de uma crise,
a crise que se instaura entre a potência dinâmica da multidão e o seu
engessamento nas tramas e mitologias (a mistificação do povo como
fundamento de um poder unitário, que nunca pode lhe ser restituído, que
radica sua legitimidade em um contrato originário, a ser defendido
contra o próprio povo…) dos poderes constituídos.
Nota:
1. VIRNO, Paolo, ‘Virtuosismo e revolução’ In: Virtuosismo e revolução, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008 [1994], p. 139.
Fonte: O lado esquerdo do possível
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