julho 30, 2013

"Henri Lefebvre e a atualidade urgente do Direito à Cidade", por João Tonucci

PICICA: "Segundo Lefebvre, com a industrialização, uma extrema segregação se impõe aos grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo morfologicamente a cidade e ameaçando a vida urbana. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, perdem o sentido da cidade como obra criativa e coletiva. O habitat (a moradia reduzida à função, o habitante submetido à cotidianidade alienada) substitui o habitar (o viver plenamente a cidade). O urbanismo, ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade fragmentadora, intensifica as segregações através da separação funcional das atividades e da sociedade no espaço."


Henri Lefebvre e a atualidade urgente do Direito à Cidade

João Tonucci 

Em meio à pluralidade do vozerio e da imagética multitudinária que invadiu as ruas brasileiras de forma surpreendente em junho de 2013, reiteradas vezes defrontamo-nos com bandeiras e gritos pelo direito à cidade. A expressão está na boca de todos, apropriada e difundida (outros diriam banalizada) por grupos tão distintos quanto movimentos sociais urbanos autônomos e organismos internacionais como Banco Mundial e UN-Habitat. A existência de uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade, elaborada entre 2004 e 2005 ao longo do Fórum Social das Américas, Fórum Social Urbano e V Fórum Social Mundial[1], atesta a fama mundial e atualidade da ideia.

Poucos, entretanto, sabem que o conceito foi originalmente formulado pelo filósofo marxista francês Henri Lefebvre (1901-1991), que no catártico ano de 1968 publicou um pequeno livro intitulado Le droit à la ville. Até então, Lefebvre se permitira investigar temas à margem do marxismo oficial e dogmático (como a vida cotidiana, a alienação, a festa, a espontaneidade, o mundo rural, a modernidade etc.) a partir de uma renovação do método dialético, e se colocara, logo no pós-II Guerra, numa posição de crítica ao socialismo de estado, o que lhe custou não apenas a censura – e subsequente expulsão – do Partido Comunista Francês, mas também uma posição periférica no panteão do pensamento crítico, que só há pouco começa a ser revertida.

le droit a la ville

O interesse de Lefebvre pela questão urbana remonta anteriormente ao livro Introdução à modernidade (1962), em que o autor discorre algumas notas críticas acerca da experiência de Mourenx, cidade nova planejada nos Pirineus franceses, a poucos quilômetros de Navarrenx, sua querida terra natal. Os espaços racionalmente organizados, as vias cartesianamente desenhadas, as máquinas de morar dos grandes conjuntos habitacionais, a separação criteriosa de todas as funções urbanas: esse espaço concebido por tecnocratas a serviço da modernização representava para Lefebvre a negação de tudo que a cidade tinha de mais positivo: o encontro, a diversidade, o imprevisível.  Mas é na pequena coletânea de ensaios O direito à cidade, rascunhados ao longo da década de 1960, que Lefebvre realiza a sua primeira incursão substantiva em torno da problemática urbana, que iria se desdobrar em outras obras fundamentais ao longo da década de 1970 (como A revolução urbana – 1970 e A produção do espaço – 1974).

Para Lefebvre, a cidade, dos gregos à idade média, constituiu-se como uma totalidade orgânica, obra máxima da civilização. Socialmente produzida, a cidade é diferente de todos os demais produtos: o que lhe dá especificidade é o primado do valor de uso sobre o valor de troca. Como se usa a cidade? Através das suas ruas, quarteirões, monumentos e espaços públicos, através da festa, momento de consumo improdutivo de energias e recursos em favor somente do prestígio e do prazer. Para Lefebvre, não pode haver cidade sem centralidades, sem um centro dinâmico repleto de urbanidade, momentos vividos, espaços públicos vibrantes, encontros encantadores e surpresas a cada esquina.
O desenvolvimento do capitalismo industrial rompe essa unidade, destrói as barreiras e a simbiose entre a cidade e o campo, coloniza e secciona a vida cotidiana. A cidade tradicional explode no tecido urbano informe e estendido, formado por fragmentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios, cidades-satélites etc.). A cidade, outrora valor de uso (fruição, beleza), é transformada em mercadoria, produto com valor de troca, espaço privado para realização do lucro. Neste processo, a realidade urbana da cidade (amplificada e estilhaçada) perde os traços anteriores de totalidade orgânica, sentido de pertencimento, espaço demarcado, monumentalismo enaltecedor.

É a partir do caso de Paris que Lefebvre vai tecer suas reflexões. O risco da democracia urbana, que se torna evidente nas jornadas de 1848, e vai se confirmar na Comuna de 1871, assusta a burguesia ascendente. Qual a resposta política? Expulsar os trabalhadores do centro da cidade, remodelando-a à imagem e semelhança da nova classe dominante. É este o sentido principal das reformas urbanas empreendidas pelo Barão de Haussmann em Paris entre 1853 e 1870, que dilaceraram o coração tortuoso e vivo da cidade medieval, abrindo-a em vastos bulevares a serem povoadas por edificações padronizadas.

Mas a haussmannização também é nossa velha conhecida: da abertura da Avenida Central por Pereira Passos ao Porto Maravilha no Rio de Janeiro, do Plano de Avenidas de Prestes Maia à Nova Luz em São Paulo, da Planta Geral da Cidade de Minas por Aarão Reis às novas vias abertas para dilacerar as favelas de Belo Horizonte. Para não falar das remoções forçadas do PAC e das obras da Copa, da expulsão dos pobres para a periferia precária praticada pelo mercado imobiliário, dos longínquos conjuntos habitacionais – antes BNH, hoje Minha Casa Minha Vida.

Segundo Lefebvre, com a industrialização, uma extrema segregação se impõe aos grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo morfologicamente a cidade e ameaçando a vida urbana. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, perdem o sentido da cidade como obra criativa e coletiva. O habitat (a moradia reduzida à função, o habitante submetido à cotidianidade alienada) substitui o habitar (o viver plenamente a cidade). O urbanismo, ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade fragmentadora, intensifica as segregações através da separação funcional das atividades e da sociedade no espaço.

É contra esse estado de coisas que Lefebvre formula a ideia iluminadora do direito à cidade. Ele assim a define (Lefebvre, 2010, p. 139):

[...] o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais etc.). A proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria) [...]

Uma leitura apressada e descuidada pode sugerir que Lefebvre está propondo uma nostalgia romântica, um retorno ao paraíso perdido anterior à modernização capitalista, quando tudo seria integrado, artesanal e autêntico. Mas no seu pensamento não há idealização do passado, tampouco regresso possível à cidade tradicional ante a completa urbanização da sociedade.  O que se busca é um novo humanismo, aquele do homem urbano, mesmo que seja em meio às colossais megalópoles explodidas, vastos espaços de desolação e insignificância. Lefebvre fala da construção de uma nova cidade, sobre novas bases, numa outra escala. Cidade voltada à apropriação, através sobretudo da arte, que reconstitui o sentido da obra e da fruição. Em oposição à cidade eterna e aos centros estáveis, a cidade efêmera, as centralidades móveis. A criação de novos lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontro, onde a troca não esteja subordinada ao comércio e ao lucro.
O autor insiste: o direito à cidade não é um direito de visitar os centros de cidades históricas, ou do trabalhador passar o dia na cidade da qual foi expulso: trata-se de um direito à vida urbana transformada e renovada. O direito à cidade aponta para o fim das segregações, a reconquista da cidade pelas classes e grupos minoritários dela excluídos. A praxis urbana anunciada vai na direção da reunião daquilo que se acha disperso, dissociado e separado, na direção da simultaneidade e do encontro. Enfim, o que Lefebvre está propondo é, ao lado da revolução econômica (planificação orientada para as necessidades sociais) e da revolução política (controle democrático do aparelho estatal, autogestão generalizada), uma revolução cultural permanente: transformar o mundo (Marx) e indissociavelmente mudar a vida (Rimbaud).

*   *   *

As jornadas de junho brasileiras revelaram duas grandes insatisfações coletivas (sem querer reduzir a elas a potência diversa das ruas): a primeira, quanto à precariedade dos serviços públicos básicos (particularmente transporte urbano, estopim das manifestações), e a segunda, quanto à legitimidade e amplitude das formas de representação e participação política instituídas. A despeito do pleno-emprego, do crescimento e da estabilidade, o que se expressou foi o desejo por algo mais: o aprofundamento e radicalização da democracia, da transparência pública e do controle social, e o fortalecimento das experiências e realidades do mil brasis – dos índios, dos negros, dos gays, dos jovens etc. – que resistem às pretensões neo-liberais-desenvolvimentistas dos grandes projetos e dos grandes eventos do Brasil-Maior.

As cidades, mais do que o locus privilegiado de explosão das manifestações, são também objetos de contestação e luta, na medida em que amplificam e transformam as contradições acumuladas ao longo dos últimos anos de transformação social e econômica no país. Ante o avanço violento do capital imobiliário, da indústria automobilística e das grandes obras na última década, nossas cidades têm sucumbido a um intenso processo de mercantilização e privatização que atende aos interesses minoritários das elites em detrimento das necessidades cotidianas de seus moradores. Não é de se estranhar que as pautas levantadas nas manifestações sejam também por melhores condições de vida nas cidades, por cidades mais justas, mais diversas e democráticas. Como Lefebvre já anunciara, a luta política se deslocou decisivamente do chão-de-fábrica para todo o urbano.

A realidade urbana (induzida pela industrialização) tornou-se causa indutora, e a problemática urbana impôs-se à escala mundial.  Hoje, ante o reconhecimento da irreversível urbanização planetária e da explosão dos problemas ditos “urbanos” em todo o mundo, o direito à cidade encontra-se cada vez mais associado à garantia de acesso às infraestruturas e serviços urbanos básicos (habitação, transporte, saneamento etc.). Algumas vezes, aparece também como sinônimo de gestão urbana democrática, de abertura dos processos de planejamento da cidade à participação direta. Todos esses sentidos estão certamente contemplados na acepção original. Mas o direito à cidade para Lefebvre tem um sentido com uma potência radical que vai além da demanda por “coisas” e “processos” que estão e se dão na cidade: trata-se da luta pela cidade como obra, totalidade, realização coletiva.

É aí que reside a atualidade urgente do direito à cidade lefebvriano. Entendido não enquanto somente a garantia de acesso às condições mínimas de reprodução social – necessárias, sem dúvida –, mas enquanto direito efetivo à vida urbana, ao encontro, à obra em detrimento do produto. O direito à cidade não apenas como acesso à cidade, mas direito do usuário a transformar democraticamente a cidade. Não reduzido à um direito juridicamente constituído, ele se afirma como bandeira de luta contra as múltiplas segregações que se impõem através da tecnocracia estatal e do neoliberalismo capitalista, contra a mercantilização brutal do espaço urbano em curso. O grito pelo direito à cidade ecoado no último junho – e ainda ressoante – certamente não dá conta de sintetizar os múltiplos sentidos das vozes da multidão, mas expressa uma latente necessidade, expressa no próprio ato de reconquista coletiva das ruas: o desejo de constituição do comum no encontro com o outro, na luta pela produção e apropriação do que sempre foi o nosso comum – a cidade.

Referências:

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

MERRIFIELD, Andy. Henri Lefebvre: a critical introduction. New York: Routledge, 2006.



Fonte: Olho da Rua

Nenhum comentário: