julho 21, 2013

"Lulismo fora do eixo", por José Arbex

PICICA: "Os defensores da política "pós-rancor" combinam a "mais pérfida prática reacionária com um discurso aparentemente libertário".
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"Bastaram duas semanas de mobilizações em Barcelona e Madri para desarticular três décadas de retórica conciliadora de Luiz Zapatero e com­panhia. Os "precariados" do Oriente Médio, Nor­te da África e Zona da Euro mostram que não é nos circuitos digitais que se trava a guerra con­tra o capital, mas nas ruas. Nas barricadas. Estas sim, são as mesmas que se erguiam nos tempos de Marx, assim como é o mesmo rancor que se ex­pressa nas palavras de ordem contra a miséria e os gestores do neoliberalismo.

Nenhum liquidificador abolirá a luta de classes."

Lulismo fora do eixo

José Arbex Jr.
"Imaginem um liquidificador em que se possa colocar as ramificações da esquerda, com estraté­gias e lógicas de mercado das agências de publi­cidade, misturando rock, rap, artes visuais, teatro, um bando de sonhadores e outro de pragmáti­cos, o artista, o produtor, o empresário e o públi­co. Tudo junto e misturado. O caldo dessa batida é uma nova tecnologia de participação e engaja­mento que funciona de forma exemplar para a circulação e produção musical, mas que, acima de tudo, é um grande projeto de formação política. O Fora do Eixo cria, portanto, uma geração que se utiliza sem a menor preocupação ideológica de aspectos positivos da organização dos movimen­tos de esquerda e de ações de marketing típicas dos liberais. Ë, como disse o teórico da contracul­tura Cláudio Prado, a construção da geração pós-rancor, que não fica presa à questões filosóficas e mergulha radicalmente na utilização da cultura digital para fazer o que tem que ser feito."

O fantástico liquidificador das ideologias é as­sim descrito por Alexandre Youssef, articulista da revista Trip (de onde foi extraído o trecho acima citado, publicado em 12 de maio de 2011), mem­bro do Partido Verde e coordenador do setor de Juventude durante a gestão de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo. Ele tem o mérito indis­cutível da franqueza. Não é todo dia que alguém reúne graça e entusiasmo para cantar as virtudes de um "projeto de formação política" que combi­na, sem qualquer pudor ideológico, métodos or-ganizativos da esquerda com "ações de marketing típicas dos liberais". Claro: tudo isso é feito sem rancor, sentimento ultrapassado e cultivado pe­las pessoas que teimam em se prender a "questões filosóficas" antigas, incapazes de perceber que a cultura digital mudou o mundo. Minai, não foi o FaceBook que provocou a revolução árabe?

Não. Não foi a mais moderna tecnologia que provocou a revolução árabe, mas os mais arcai­cos entre os problemas enfrentados pela humani­dade: a fome e a pobreza. A imensa maioria dos árabes nunca teve acesso à Internet, ao FaceBook e a nada que se pareça com "cultura digital". Nem teve acesso a mesas fartas e empregos dignos. Se­ria melan-cômico presenciar o resultado de uma preleção contra o rancor endereçada aos milhões de manifestantes que, colocando em risco as pró­prias vidas, foram às ruas para derrubar ditado­res em algumas das principais capitais árabes. Em contrapartida, os soldados e oficiais da Otan que, historicamente, lançaram e ainda lançam milha­res de toneladas de bombas sobre uma população civil indefesa, esses não agem movidos pelo ran­cor, mas subordinados a frios interesses geopolí-ticos, e estão perfeitamente integrados à "cultura digital". Os seus brinquedinhos de guerra são produtos da tecnologia de ponta, e incluem robôs e bombardeiros não pilotados. Tudo muito avançado.

O texto de Youssef não teria a menor impor­tância, se ele não fosse expressão de um processo em curso, no Brasil e em todo o planeta, de coop-tação de amplos setores da juventude e da es­querda para políticas de conciliação e abandono da guerra ao capital. Toda essa conversa de "su­peração do rancor" está a serviço de uma ideolo­gia (embora, obviamente, Youssef afirme o con­trário) segundo a qual já não é mais possível falar em luta de classes. Os grandes cenários de em­bates, agora, são os circuitos culturais, não mais o chão de fábrica, o campo e as praças públicas. Ou melhor: todos servem de palco para a grande guerra simbólica.

E como isso aconteceu? É simples. O capitalis­mo pós-fordista, desenvolvido no pós-guerra, te­ria superado a divisão entre trabalho intelectual e manual, para integrar funcionários cada vez mais qualificados a funções que combinam gerência e produção. Além do mais, o vasto acesso ao ensi­no superior, franqueado às populações de baixa renda, teria mudado radicalmente o perfil da for­ça de trabalho, em particular nos países de capi­talismo mais desenvolvido. Essas transformações teriam sido fundamentais para a "culturalização" das classes médias urbanas, para o surgimento da contracultura (incluindo o movimento hippie, en­tre outros) e de novas demandas, que não se limi­tam mais a emprego, salário e conquistas sociais. Do ponto de vista dos novos "setores urbanos mé-' dios", nas palavras do ativista Pablo Ortellado, "as demandas são crescentemente 'pós-materiais' para usar um jargão sociológico."

Desgraçadamente, as manifestações de cente­nas de milhares de jovens e trabalhadores desem­pregados na Grécia, Portugal, Espanha e, mais re­centemente, Itália mostram que as reivindicações são bastante "materiais". Assim como são "ma­teriais" as demandas de trabalhadores franceses, que não aceitam os contínuos ataques promovi­dos pelo capital às suas conquistas históricas ou as de alguns setores do movimento sindical es­tadunidense, que começa a dar crescentes sinais de vida. E mais "materiais" ainda as necessida­des de cerca de l bilhão de seres humanos famin­tos (segundo dados da própria ONU) e outro tan­to de subnutridos. Alguém teria que avisá-los de que eles poderiam saciar a própria fome a carên­cia de nutrientes com bus virtuais. É fantástico o show da vida.

POLÍTICA "PÓS-RANCOR"

Para outros advogados da política "pós-rancor", o proletariado teria sido substituído pelo "precaria-do", uma massa difusa, formada pêlos milhões de trabalhadores e jovens que habitam as imensas fa­velas e bairros da periferia. Tais "multidões" (para usar um conceito proposto pelo italiano Toni Negri, segundo quem não existe mais imperialismo, em­bora haja império) já não se identificariam como classe, mas como grupos que defendem interesses específicos (género, raça, opção sexual, sujeitos de direitos difusos etc.), e que ganham força a partir do momento em que adquirem visibilidade social. Para tanto, podem e devem se valer das novas tec-nologias de comunicação e produção de bens sim­bólicos e culturais. A "antiga" e "superada" luta de classes passaria a ser travada nos circuitos midiáti-cos, em que mesmo os protestos de rua viram espe-táculo e "performance". A "vanguarda", agora, se­ria formada pêlos "gestores culturais", justamente os mais capacitados a articular os esquemas desti­nados a dar visibilidade a determinados eventos e grupos (e a captação de recursos e patrocínios, ob­viamente, ganha um papel estratégico e, como tal, regiamente remunerado nesse processo).

No Brasü, especificamente, a política "pós-ran­cor" ganhou um impulso formidável em 2002, com a campanha do "Lulinha paz e amor". O sindicalis­ta barbudo foi substituído por um senhor modera­do e sorridente, trajando terno e gravata e juran­do respeito ao capital, mediante o compromisso firmado pela Carta ao Povo Brasileiro. Com a ser­vil capitulação ideológica petista, a avenida para o "vale tudo" estava escancarada.

No admirável novo mundo do lulismo, tor­nou-se particularmente emblemática a história do grupo Fora do Eixo (FDE), mencionada por Yous-sef como um exemplo fulgurante de como se faz política nos novos tempos. O FDE foi criado em 2005, pelo publicitário cuiabano Pablo Santiago Capilé, como um "coletivo de gestores da produ­ção cultural", inicialmente com pólos em Cuiabá, Rio Branco, Uberlândia e Londrina (portanto, fora do eixo tradicional formado por São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília). Com a proposta de revelar no­vos valores culturais "independentes", e adotan-do o modelo organizativo baseado na formação de "coletivos" (núcleos orgânicos sem patrões nem empregados), o FDE conseguiu o apoio do progra­ma Cultura Viva do Ministério da Cultura, durante a gestão de Gilberto Gil e depois sob Jucá Ferreira. Ao mesmo tempo, trabalhou com o patrocínio de empresas e grupos privados vinculados aos circui­tos cultural e digital, espelhando-se na experiên­cia de grupos semelhantes, como o Creative Com-mons estadunidense.

Como resultado, hoje, segundo os dados da pró­pria organização, o FDE é uma próspera empresa de gestão cultural que agrega 57 coletivos em todo o país, com capacidade para realizar 5 mil shows em 112 cidades. Teoricamente, os "gestores" não são assalariados, mas, claro, recebem pelo seu tra­balho, o que transforma a participação nos "co­letivos" em meio de vida (os "coletivos" adotam moedas próprias e normas internas de distribuição de recursos). A retórica dos "gestores" é, aparente­mente, combativa, com alguns vernizes de rebel­dia: evoca o estímulo à arte independente, o direito de usar drogas, a luta contra o racismo e todo tipo de discriminação etc etc etc. Seu "público alvo", portanto, são os milhões que formam o "precaria-do". Coerente com tal retórica, o FDE, em contato com outros grupos assemelhados, participa da or­ganização de atos e manifestações, mas tudo de­vidamente "enquadrado" e delimitado pela conve­niência política.

Um exemplo foi a sua atuação na organização da "Marcha da Liberdade", realizada no dia 28 de maio, em protesto contra a repressão feroz que se abatera sobre a "Marcha da Maconha", no começo do mês. Capilé, um dos organizadores, agora nega, mas durante a reunião que preparou o ato de 28 de maio mencionou a possibilidade de patrocínio da Coca-Cola à marcha, sem necessariamente ter que expor a marca (a empresa estaria apenas cul­tivando "boas relações" com os ativistas). A pro­posta foi vetada pelo coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR) e Movimento Passe Livre, segundo re­latos divulgados pelo coletivo Passa Palavra. Além disso, o FDE e grupos congéneres posicionaram-se contra a proposta de incluir, como pauta da mar­cha, a reivindicação de proibir aos policiais o uso de armas de fogo para reprimir manifestações. Não haveria mesmo razão para uma proposta tão ran­corosa: liberdade é apenas uma calça velha, azul e desbotada, certo?

A experiência do FDE é o próprio retraio do lu­lismo: combina a mais pérfida prática reacionária com um discurso aparentemente "libertário". Suas ações são motivadas por interesses pecuniários próprios, mas apresentadas como se fossem ges­tos de altruísmo. Na lógica mercantüista tão bem apresentada por Yousseff, mesmo as manifestações são transformadas em happenings e oportunidades de bons negócios com patrocinadores interessados em vender uma imagem dinâmica e "progressista". As "antigas" e "rancorosas" reivindicações dos tra­balhadores e jovens pelo acesso real e material ao mundo da cultura e das artes são açambarcadas, administradas e domesticadas por um vasto em­preendimento, que envolve fundos públicos, pa­trocínios de corporações e de empresas privadas e "gestores culturais" que se encarregam de encon­trar os artistas e promover os eventos. Finalmente, a técnica da "gestão cultural" é transportada para o ativismo militante e justificada com um discur­so "pós-rancoroso", o mais adequado ao mundo das reivindicações "pós-materiais". O FDE e con-gêres constituem a expressão Mista do movimen­to "cansei".

Se existe algo de real nas alegações dos "pós-rancorosos", incluindo os "lulinhas paz e amor", é a afirmação de que a batalha ideológica trava­da nos "circuitos culturais" adquiriu importância muito maior e central do que à época de Karl Marx. Isso é óbvio, já que as tecnologias de comunicação experimentaram um desenvolvimento vertiginoso no século 20. E, além disso, a humanidade sofreu as experiências de génios do mal da comunica­ção, como é o conhecido caso de Joseph Goebbels, cujas técnicas de propaganda passaram a ser ado-tadas e aprimoradas por Hollywood e outros cen­tros produtivos da indústria cultural (outro concei­to "rancoroso" e ultrapassado, aliás).

Mas nada disso autoriza a afirmação de que o proletariado foi dissolvido no "precariado" e que desapareceu a luta de classes, agora substituída por uma difusa batalha cultural, se tanto. A ex-tração da mais valia continua sendo o "segredo" do capital, e o imperativo do crescimento da taxa de lucro a sua lei compulsória. Isto é, não há re­produção do capital sem a exploração cada vez maior do trabalho humano livre. Mudaram os pa­râmetros que condicionam a luta de classes, as circunstâncias culturais e ideológicas em que ela se desenvolve, assim como as formas de articula­ção entre as várias classes exploradas e oprimidas. Mas nenhum "circuito cultural" aboliu as classes, que não podem ser sociologicamente quantifica­das (classes não constituem um mero dado esta­tístico), mas que dão o ar da graça em momentos de crise e de ameaças às conquistas sociais, como demonstram a revolução árabe e a Zona do Euro.

Bastaram duas semanas de mobilizações em Barcelona e Madri para desarticular três décadas de retórica conciliadora de Luiz Zapatero e com­panhia. Os "precariados" do Oriente Médio, Nor­te da África e Zona da Euro mostram que não é nos circuitos digitais que se trava a guerra con­tra o capital, mas nas ruas. Nas barricadas. Estas sim, são as mesmas que se erguiam nos tempos de Marx, assim como é o mesmo rancor que se ex­pressa nas palavras de ordem contra a miséria e os gestores do neoliberalismo.

Nenhum liquidificador abolirá a luta de classes.

José Arbex Jr. é jornalista.

Fonte: ControVérsia

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