PICICA: "Quando discursou em rede nacional na noite de sexta-feira (21/6), após
os conflitos que marcaram os protestos ao longo da semana em todo o
país, a presidente Dilma Rousseff fez o discurso da lei e da ordem:
saudou o “vigor” das manifestações mas condenou enfaticamente os
“arruaceiros”. Não deu uma palavra sobre a brutalidade policial, que foi
flagrante e precisaria ser enfaticamente condenada por uma questão de
princípio, embora, evidentemente, a administração das polícias seja uma
tarefa para os governadores.
Esse aspecto do discurso, em particular, mereceu muitas críticas nas
redes sociais, exatamente por parte daqueles que apontavam a necessidade
de aproveitar a indignação da classe média para alertar sobre a
violência cometida cotidianamente contra os pretos e pobres.
ECOS DO PROTESTO
Desmilitarização da polícia, a pauta urgente
Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 27/06/2013 na edição 752
A truculência na repressão indiscriminada e gratuita a manifestantes que participaram de várias das passeatas nos últimos dias, desde a quinta-feira sangrenta (13/6) na Avenida Paulista, impôs a urgência de uma velha demanda: a desmilitarização das polícias e a discussão sobre o papel dessa instituição num Estado democrático.
A indignação contra a violência policial se espalhou imediatamente nas redes sociais, muitas vezes acompanhada de vídeos incontestáveis: soldados lançando bombas de gás e disparando balas de borracha contra pessoas que esperavam a abertura dos portões do metrô para voltar para casa, ou estavam em bares, ou observavam o movimento e levantavam as mãos, encurraladas pela polícia.
A avalanche de denúncias, entretanto, animou muita gente a lembrar um detalhe essencial, que teve o poder de síntese de um slogan: na favela, as balas não são de borracha. Noutras palavras: os que sentiram agora o peso das forças da ordem precisam acordar para a gravidade do que ocorre cotidianamente na periferia social.
A propósito, o site da ONG Justiça Global resume, no início do artigo em que defende a desmilitarização das polícias: “A polícia que reprime as manifestações é a mesma que executa pessoas nas favelas e periferias e a mesma que implanta nos morros as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)” (íntegra aqui).
O exemplo mais recente veio agora mesmo, na segunda-feira (24/6): no início da tarde, uma pequena manifestação de jovens na Praça das Nações, em Bonsucesso, no Rio, convocada pelo Facebook, levou a PM a mobilizar, segundo O Globo, “250 homens e até um blindado”, o famoso “caveirão”, para “garantir a segurança e coibir saques”. No início da noite, teria havido um início de arrastão e, para perseguir os bandidos, os policiais iniciaram uma “operação” nas favelas do chamado Complexo da Maré. Resultado: um morador morto, logo depois um sargento do Bope e, em seguida, a chacina. Total oficialmente reconhecido até quarta-feira (26/7): nove mortos.
A palavra de ordem pela desmilitarização da polícia ressurgiu com força depois disso: na manhã da quarta-feira, estava nos precários cartazes de papelão presos nas grades do prédio da Secretaria de Segurança, onde um grupo de moradores se reuniu para protestar. E foi incorporada pelos que se mobilizam para a passeata marcada para quinta-feira (27), no Centro do Rio.
Os métodos da polícia
Quem participou dos protestos no Rio de Janeiro pôde conhecer, se já não sabia, os métodos da repressão. No dia 17/6, incapaz de cercar e conter os que depredavam a Assembleia Legislativa, policiais começaram a prender indiscriminadamente pessoas que apenas assistiam ou documentavam o ato: a maioria jovens universitários, mas também um morador de rua. “Algumas mochilas foram retidas, mochilas que depois apareceram, na delegacia, com pedras e outras coisas que foram colocadas lá como provas”, anotou Carmen Astrid, uma das presas. Filha de exilados políticos chilenos, ela não se dizia surpresa, apenas não entendia qual era a acusação: “Me sentia no Processo de Kafka. Se um policial diz que você fez algo, é a palavra dele que vale”.
Dias depois, na entrevista coletiva de que participou, após a soltura dos jovens, o fundador da ONG Rio da Paz, cujo filho também tinha sido preso, declarou:
“Eu me senti negro, pobre, morador de favela, numa viela escura de uma
comunidade pobre. Porque, ao pedir informação para o policial, era como
se eu estivesse falando com um androide. Com uma estátua de mármore, com
um boneco de gesso. Nenhuma explicação, nenhuma justificativa”.
Pai de uma das jovens que estava no IFCS, o professor João Batista de Abreu relatou:
“Os que embarcariam no metrô foram orientados por advogados a não
saltar na estação do Largo do Machado. Do lado de fora da estação, por
volta de 21h, havia um cerco de 15 policiais fardados aguardando os que
desembarcavam. Ao lado deles, três homens fortes, todos com cassetetes
na mão, ameaçavam espancar os que saíssem correndo, no que eles
considerassem atitude suspeita. Quando interpelados por uma senhora de
65 anos, começaram a destratá-la, dizendo que ela deveria estar em casa.
Havia um forte sentimento de que eles tinham recebido carta branca para
agir. O comentário geral é de que esses homens, à paisana e sem
identificação, teriam sido contratados pela Companhia do Metrô para
agredir os estudantes. Como não pertencem aos quadros do Metrô, seria
mais fácil depois escondê-los”.
A médica Daniela Judice, que trabalha ali, comentou:
“Meu plantão acaba às 20h. Tentávamos sair quando, de repente, gritaria
e fumaça entrando pelo hospital. O gás pimenta subiu pelas escadas até
alcançar a pediatria, no sétimo andar. Vários funcionários passaram mal.
Mães e crianças aspirando aquele horror. No SÉTIMO andar! Nos isolamos
no CTI. Conseguimos sair de lá às 22h15. Passo pela Presidente Vargas,
que parecia vítima de um tornado”.
O discurso terrorista e discriminatório
Ao analisar o comportamento da polícia no tumulto em frente à Assembleia Legislativa, diante de cenas em que um policial descarrega uma metralhadora para o alto, o comentarista do RJTV Rodrigo Pimentel, ex-membro do Bope – inspirador do “capitão Nascimento”, personagem do filme Tropa de Elite –, declarou: “Isso é desastroso, uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano...”.
Porque, como sabemos, favela não é ambiente urbano, é território livre para a barbárie.
Para quem tem alguma memória, Pimentel repetia então o raciocínio do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, sobre uma operação policial na favela da Coreia, Zona Oeste do Rio, há alguns anos, quando traficantes que tentavam fugir foram mortos com tiros disparados de um helicóptero: “Um tiroteio na Coreia é uma coisa, em Copacabana é outra”.
O próprio Beltrame, na coletiva sobre os excessos policiais nas manifestações da semana passada, declarou, medindo as palavras: “De nada adianta demonizar a polícia. A polícia é a que o Estado brasileiro tem. Demonizar a polícia talvez seja benéfico para vândalo”.
O mesmo discurso terrorista de sempre, que silencia toda crítica, para afastar a hipótese de que essa crítica sirva ao “inimigo”. Quem não está conosco está contra nós.
A questão estrutural
Quando discursou em rede nacional na noite de sexta-feira (21/6), após os conflitos que marcaram os protestos ao longo da semana em todo o país, a presidente Dilma Rousseff fez o discurso da lei e da ordem: saudou o “vigor” das manifestações mas condenou enfaticamente os “arruaceiros”. Não deu uma palavra sobre a brutalidade policial, que foi flagrante e precisaria ser enfaticamente condenada por uma questão de princípio, embora, evidentemente, a administração das polícias seja uma tarefa para os governadores.
Esse aspecto do discurso, em particular, mereceu muitas críticas nas redes sociais, exatamente por parte daqueles que apontavam a necessidade de aproveitar a indignação da classe média para alertar sobre a violência cometida cotidianamente contra os pretos e pobres.
Porém o problema é estrutural, e uma visita a um artigo do falecido criminalista Augusto Thompson ajudaria a esclarecer. Ele mostra que os policiais são treinados para incorporar o estereótipo de criminoso, associado à pobreza e à cor da pele, e afirma que a polícia que temos é a que convém ao sistema: “Venal, submissa ao jogo das pressões, atrabiliária, preconceituosa”.
O criminalista indica ainda as armadilhas discursivas que desviam o foco da questão estrutural: bastaria apresentar a “podridão policial” como problema conjuntural, fruto de defeitos e vícios individuais, e anunciar o saneamento – ou, como popularmente se diz, a “faxina”.
“Logo o órgão começará a cumprir suas atribuições de forma limpa,
justa, correta, quando, então, viveremos no melhor dos mundos.
Ciclicamente promovem-se campanhas de depuração nas hostes policiais,
aplicam-se mais recursos no setor, aprimoram-se equipamentos,
garantindo-se que já, já, a perfeição será atingida”.
Luta de classes
Thompson aponta a manobra operada através dos meios de comunicação com o objetivo de convencer a população de que a questão relativa à distribuição de uma justiça criminal perversa decorre de mero acidente, “ou, ainda, em último caso, porque de um povo que não presta fica inviável recrutar gente de bem para integrar o corpo policial (‘cada povo tem a polícia que merece’)”.
O resultado é que as pessoas esquecem que o problema está nos próprios fundamentos do sistema, feito para funcionar exatamente assim, e gastam suas energias “em brados de revolta contra a polícia que atualmente existe”.
Diante dos acontecimentos das últimas semanas, estaríamos, talvez, em condições de levantar essas questões estruturais: porque finalmente as pessoas estão percebendo o que é esta polícia é que precisaríamos, urgentemente, protestar e exigir o fim desta polícia, ou então não estaremos vivendo no que minimamente se poderia chamar de democracia.
Porém, passada a indignação inicial, talvez tudo volte a ser como sempre. Os acontecimentos na Maré, que vararam a madrugada de segunda para terça-feira, oferecem uma boa oportunidade para saber de que lado estamos e o que queremos de fato.
Afinal, como disse um poeta da periferia paulistana durante uma das recentes manifestações em São Paulo, “esta não é uma luta qualquer; é uma luta de classes”.
***
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Fonte: Observatório da Imprensa
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