PICICA: "Mas agora é tarde. Sim, impludam todos
os estádios! Construam obras colossais e faturem montanhas de ouro!
Superfaturem tudo: desde a demolição até a pintura dos camarotes da CBF e
patrocinadores! Joguem no entulho e nos esgotos a céu aberto a
dignidade e a esperança do povo brasileiro. Enterrem de uma vez por
todas a promessa de cidadania! Caprichem na maquiagem urbana e escondam
(pela milésima vez) a miséria brasileira, bem mais antiga que o futebol.
E quando a multidão enfurecida cobrar a dignidade que lhe foi roubada,
digam com um cinismo vil que se trata de uma massa de baderneiros e
terroristas.
Digam qualquer mentira, mas aí talvez seja tarde. Ou tarde demais."
Digam qualquer mentira, mas aí talvez seja tarde. Ou tarde demais."
Estádios novos, miséria antiga. Leia artigo de Milton Hatoum.
"Destruir um patrimônio da arquitetura amazônica é um lance de extrema crueldade e ignorância"
Estádio Vivaldo de Lima, Vivadão, de Manaus, demolido em 2010
(crédito: Arquiteto Severiano Porto)
Milton Hatoum*
Autor de contos, poemas e romances, como "Dois Irmãos", "Cinzas do Norte" e "Relatos de um certo Oriente", o amazonense Milton Hatoum é um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos, com trabalhos traduzidos para o alemão, inglês, francês, italiano, russo, espanhol e outros idiomas.
Neste artigo, ele discute a perda de um dos ícones da arquitetura amazonense e joga uma pá-de-cal sobre as esperanças de qualquer legado social da Copa de 2014.
A arquibancada do Parque Amazonense era um treme-treme, o esqueleto de madeira podia desabar antes do primeiro gol, mesmo assim eu não perdia uma partida do clássico Rio Negro x Nacional. Quando chovia ou ventava, mangas maduras caíam na arquibancada e eram disputadas pelos torcedores. Como não havia drenagem no campo, a chuva torrencial transformava o gramado num parque aquático, o jogo era cancelado, e aproveitávamos para brincar na piscina formada pela natureza.
O Parque, situado num bairro humilde e arborizado de Manaus, era um dos destinos de quem gostava de futebol. No fim dos anos 60 foi construído o estádio Vivaldo Lima, vulgo Tartarugão, projetado por Severiano Mário Porto. Formado no Rio, esse arquiteto mineiro se mudou em 1966 para Manaus, onde viveu por mais de 30 anos. O projeto do Vivaldo Lima ganhou o prêmio Nacional de Arquitetura; outros projetos de Severiano foram premiados no Brasil e na Argentina.
Ele fez dezenas de projetos que, a meu ver, traduzem uma compreensão profunda de Manaus e da região amazônica. As soluções técnicas para proteção do sol e da chuva, o uso consciencioso da madeira na estrutura, janelas, portas, escadas e painéis, um sentido estético que integra a estrutura à fachada e ao espaço interior, tudo isso fez dos projetos desse mineiro-carioca-amazonense um lugar para se viver e trabalhar com conforto.
Inaugurado em abril de 1970, o Tartarugão chegou a receber mais de 50 mil torcedores em uma partida em 1980. Era um projeto grandioso, mas essa grandiosidade tinha fundamento: o arquiteto havia previsto, para as próximas três décadas, um crescimento demográfico incomum, explosivo de Manaus. Para os jogos da Copa do Mundo em 2014, o Tartarugão poderia ser restaurado e tornar-se um estádio perfeitamente adaptado aos torcedores amazonenses. Mas de nada adiantou o olhar visionário de Severiano Porto. O estádio foi demolido para dar lugar a uma obra gigantesca, caríssima, faraônica, com capacidade para 47 mil torcedores.
Destruir um patrimônio da arquitetura amazônica é um lance de extrema crueldade e ignorância. O que há por trás dessa crueldade e incultura? A ganância, a grana às pencas, o ouro sem mineração, sem esforço. O Tribunal de Contas da União já descobriu um superfaturamento na demolição do Vivaldo Lima e em todas as etapas da construção do novo estádio. Aos R$ 580 milhões do orçamento previsto, será acrescido um valor astronômico. Afora o superfaturamento e a demolição de uma obra premiada, há outra questão, demasiadamente humana: Manaus é uma das metrópoles brasileiras mais carentes de infraestrutura. Os serviços públicos são péssimos, na zona leste da cidade proliferam habitações precárias (eufemismo de favelas), a violência atinge níveis alarmantes.
Isso vale para Manaus e para as outras cidades que vão sediar os jogos da Copa. Vale para o Recife e Rio, e também para São Paulo, cuja prefeitura optou pela renúncia fiscal para ajudar a construir o tal do Itaquerão. E isso numa cidade em que faltam centenas de creches, mais de 1 milhão de habitantes sobrevivem em favelas e cortiços, milhões sofrem diariamente com a precariedade e o caos do transporte público.
Mas agora é tarde. Sim, impludam todos os estádios! Construam obras colossais e faturem montanhas de ouro! Superfaturem tudo: desde a demolição até a pintura dos camarotes da CBF e patrocinadores! Joguem no entulho e nos esgotos a céu aberto a dignidade e a esperança do povo brasileiro. Enterrem de uma vez por todas a promessa de cidadania! Caprichem na maquiagem urbana e escondam (pela milésima vez) a miséria brasileira, bem mais antiga que o futebol. E quando a multidão enfurecida cobrar a dignidade que lhe foi roubada, digam com um cinismo vil que se trata de uma massa de baderneiros e terroristas.
Digam qualquer mentira, mas aí talvez seja tarde. Ou tarde demais.
* Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo (22jun2012)
Fonte: Portal 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário