PICICA: "Como apontou um texto do DAR do começo deste ano,
vivemos um momento dúbio em relação ao debate de drogas, em que por um
lado cresce o movimento, mas por outro fortalecem-se também os velhos
ideais conservadores que formaram e sustentam nosso país. Nossa
importante vitória frente às absurdas proibições e nosso fortalecimento
convivem com a militarização crescente, que se agrava na onda dos
megaeventos, com o imenso peso político de grupos religiosos
praticamente fundamentalistas e com o caráter repressivo de alternativas
supostamente médicas, como a internação compulsória de usuários de
crack, ganhando cada vez mais espaço nas políticas públicas. Se queremos
uma mudança de fato, e não apenas uma “revolução passiva” na qual os de
cima absorvam os desejos de mudança provenientes de setores populares e
movimentos sociais, a fim não de implementá-los em sua totalidade mas
de contê-los, ao aceitá-los parcialmente, em sua lógica, certamente
devemos avançar na compreensão não só do chão que estamos pisando mas do
horizonte que norteia nossa caminhada."
Drogas: Estado, (anti)proibicionismo, (anti)capitalismo
18 de setembro de 2012
Não é porque identificamos uma
inevitabilidade do mercado e do Estado que temos de trabalhar com
estratégias que os fortaleçam. Lidar com isso é um dos principais
desafios do movimento antiproibicionista. Por Júlio Delmanto [*]
Este texto nasce a partir de uma série
de debates realizados a respeito do Estado no interior do Coletivo
Desentorpecendo a Razão (DAR) [1]. Apesar de se
alimentar da discussão coletiva, a idéia aqui não é fazer uma síntese do
pensamento presente no DAR, uma vez que este é bastante amplo e
diverso, mas sim expor nossos debates atuais tanto para ajudar na
compreensão do antiproibicionismo por parte de outros setores da
esquerda como para, quem sabe, fomentar uma troca de formulações e
experiências a respeito da prática política autônoma e suas relações com
o Estado.
Forjada
a partir de interesses econômicos, políticos e morais de determinados
setores estadunidenses, e depois implementada globalmente a partir da
sinergia destes paradigmas com necessidades locais de controle social, a
proibição das drogas finalmente passa por um momento de questionamento
cada vez mais amplo. Da Rede Globo ao PSTU, passando por intelectuais,
cientistas, artistas e políticos, diversos novos atores juntam-se a, ou
ao menos apóiam, um movimento que antes era formado praticamente apenas
por usuários de maconha. Até entre aqueles que não têm nas liberdades
individuais e no direito ao próprio corpo uma preocupação central cresce
o entendimento de quantas mortes, prisões e arbítrios estão no pacote
proibicionista de suposta defesa da saúde pública.
Mesmo com o também crescente poder
político do pensamento conservador e religioso no Brasil, a entrada de
novos atores neste debate e um contexto internacional de abertura de
alternativas [2] levam a que não seja exagero coadunar com a afirmação do estadunidense Ethan Nadelmann,
que após ver a proposta de legalização da maconha derrotada por pequena
margem em plebiscito na Califórnia, em 2010, declarou que a dúvida não é
mais em relação a se um dia legalizaremos as drogas, mas quando.
Acrescentemos o que talvez seja, se não mais, no mínimo igualmente
importante: e como.
Articulado na negativa da proibição,
como o próprio nome bem diz, o antiproibicionismo congrega na prática
uma ampla gama de proposições, atuações e enfoques, com diversos graus
de convergência e diálogo. Desde os defensores da legalização para o
livre mercado [3] aos influenciados pelo pensamento
anarquista, defensores da “deslegalização”, passando pelos estatizantes
ou defensores apenas do uso científico ou medicinal, há grande
diversidade neste campo. Deixando de lado, por enquanto, a alternativa
de legalização sob livre mercado, ou legalização liberal, avaliemos aqui
duas propostas relevantes com enfoque de esquerda, como as do professor
de História e trotskista Henrique Carneiro – um dos precursores do
antiproibicionismo no Brasil – e a do pesquisador de relações
internacionais e anarquista Thiago Rodrigues.
Legalização ou desregulamentação?
No artigo Legalização e controle estatal de todas as drogas para a constituição de um fundo social para a saúde pública,
Henrique Carneiro parte inicialmente da caracterização das drogas em
“três circuitos de circulação” na sociedade contemporânea: “o das
substâncias ilícitas, o das lícitas de uso recreacional e o das lícitas
de uso terapêutico”. Sua proposta é de que os três “devem ser objeto de
um tipo de empreendimento que não permita a intensificação do estímulo
contínuo ao consumo e, consequentemente, lucros sempre crescentes,
inerentes ao interesse privado”, com a criação de um “fundo social”,
“constituído com o faturamento de um mercado legalizado e estatizado de
produção de drogas psicoativas em geral, tanto as ilícitas como as
legais”.
Já Thiago Rodrigues, membro do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol),
grupo identificado com a tradição do anarquismo individualista, critica
tanto a postura proibicionista – incluída aí a descriminalização apenas
do consumo, qualificada de “proibicionismo renovado” por manter o
tráfico criminalizado – quanto as alternativas de legalização, sejam
liberais ou estatizantes. No artigo Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis,
por exemplo, aponta: “Em todos os casos mencionados — proibicionismo
com enfoque na demanda, políticas de redução de danos,
descriminalização, legalização estatizante ou liberal— percebe-se um
ímpeto que contesta em graus variados o proibicionismo. No entanto,
nenhuma das propostas foge à mesma lógica em que repousa a Proibição;
todos estão no campo da normatização”.
Rodrigues prossegue: “O inconteste
avanço com relação à Proibição esbarra na vontade de produzir outras
estruturas e padrões que não se pode perceber como necessariamente
favoráveis ao consumo de drogas”. “Nas medidas de redução de danos, o
fatalismo referente ao uso de drogas norteia as ações [4];
nas reformas de descriminalização, o usuário é enredado por redes mais
sutis que as grades do sistema prisional, mas não deixa de sê-lo; na
defesa da legalização pela via do monopólio estatal, há a possibilidade
de um controle potencializado dos usuários e na legalização liberal, uma
redução do uso de psicoativos em termos utilitários e individualistas. O
direito, terreno onde se cristalizam as demandas morais, segue sendo o
agenciador a mediar a relação entre os indivíduos e as drogas
psicoativas; razão pela qual se pode pressupor o porquê da grande
difusão destas visões alternativas como legítimos vetores críticos ao
proibicionismo”.
Para o autor, a legalização “não
levantaria as guardas deste Estado provedor de vida, mas, em sentido
oposto, tornaria mais sofisticada a normalização dos corpos ao produzir
novos lugares, circuitos e identidades”. Sua proposta segue a linha de
Thomas Szasz: “Nem proibir, tampouco permitir; simplesmente
desregulamentar”.
Nota-se, portanto, que, querendo ou não,
de uma forma ou de outra, deparamos inevitavelmente com o debate a
respeito do Estado, sendo a compreensão deste um elemento importante em
relação a uma tomada de posição a respeito de qual o melhor caminho “pós
proibicionista” a ser defendido e almejado.
Estado? Que Estado?
Inicialmente, as proposições de Thiago
Rodrigues parecem mais próximas às concepções anticapitalistas com as
quais dialoga o DAR e sua trajetória. “O Estado é a forma na qual os
indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses”,
sintetizaram Marx e Engels em A ideologia alemã, que definiram também o Estado como “garantia de propriedade e interesses burgueses”.
Entendendo o Estado como
necessariamente, e não apenas ocasional ou atualmente, a serviço da
dominação e da exploração, Rodrigues formula sua alternativa em diálogo
com a visão de John Holloway, para quem “o Estado está limitado e
condicionado por existir somente como parte de uma rede de relações
sociais. Essa rede se centra, de maneira crucial, na forma como o
trabalho está organizado. O fato do trabalho estar organizado sobre a
forma capitalista significa que o que o Estado faz ou pode fazer está
limitado e condicionado pela necessidade de manter o sistema de
organização capitalista do qual é parte” [5].
O diálogo é implícito mas facilmente
identificável, uma vez que tanto Rodrigues como Holloway são tributários
da concepção foucaultiana do Estado como prática, como conjunto de
relações congeladas, mas não como lócus único do poder. Poder que não se
detém, se exerce, segundo o filósofo francês, estando assim presente no
Estado, sim, mas também disseminado pela sociedade em diferentes formas
e intensidades. Como aponta Holloway, diante da constatação da
multiplicidade das relações de poder deve corresponder uma
multiplicidade de resistências, que visem não a tomada do poder estatal
mas a diluição mesma do poder.
Em
sua prática, o Coletivo DAR tem caminhado próximo a estas concepções no
sentido de entender essa funcionalidade estrutural do Estado e, talvez
sobretudo, essa “universalidade do normativo” que Foucault aponta em Vigiar e punir,
lembrando a “onipresença dos dispositivos de disciplina” em uma
sociedade em que “há juízes da normalidade em toda parte”: “Estamos na
sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do
assistente-social-juiz; todos fazem reinar a universalidade do
normativo; e cada um no ponto em que se encontra aí submete o corpo, os
gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos”.
Elegemos assim como elemento central no
planejamento de nossas ações e prioridades a busca por uma mudança de
mentalidade, pela disseminação do entendimento de liberdade para além do
enfoque nas instituições como meios de transformação, implicitamente
corroborando a definição que Holloway dá ao papel que elas cumprem, o de
canalizar a revolta.
Diante da universalidade do normativo
nos parece apropriada a busca por alternativas que retirem do Estado a
legitimidade para controlar corpos e vontades, mesmo que em um ambiente
não proibitivo. No entanto, a proposição de Rodrigues parece esquecer de
um “pequeno” detalhe: o capitalismo. Se é em seus marcos que estamos
discutindo as possibilidades de transformação das políticas de drogas,
não nos parece prudente olvidar o mercado nesta discussão.
Não
à toa, no texto acima citado, Rodrigues fia-se diversas vezes em
escritos do psiquiatra estadunidense Thomas Szasz, representante da
tradição ultraliberal daquele país, defensor do mercado como única
entidade regulamentadora legítima da atividade humana [6].
Uma “deslegalização” não significaria na prática uma legalização
liberal, com o mercado provendo todas as substâncias para os
consumidores, mas da forma que o horizonte do lucro considerar mais
adequada? O exemplo da indústria tabagista, e das inúmeras substâncias
tóxicas adicionadas ao tabaco na busca pelo máximo lucro, é bem
ilustrativo de como a liberdade apregoada pelo mercado pode significar
imposição de condutas aos consumidores.
Henrique Carneiro provavelmente
afirmaria que não diverge da descrição do Estado feita por Marx e
Engels, e que sabe bem a que interesses ele serve, mas que não é capaz
de fazer como Rodrigues e alinhar-se, mesmo que involuntariamente, aos
interesses do mercado. Sua defesa da legalização com forte controle
estatal inclusive podia parecer a mais improvável até que o presidente
uruguaio a apresentasse ao Congresso do país neste ano, defendendo que o
Estado deste pequeno país passe a ter o monopólio da distribuição e da
venda de maconha legal a seus cidadãos [7].
Mas de que Estado fala Henrique Carneiro
quando defende controle estatal? Do mesmo Estado brasileiro que é o
terceiro que mais encarcera pessoas no mundo e certamente um dos que
mais assassina? Não estaria aqui o professor incorrendo no que Holloway
classifica como “noção instrumental do Estado”?
Para o pensador irlandês radicado no
México, os movimentos revolucionários marxistas “sempre foram
conscientes da natureza capitalista do Estado”, mas têm uma visão
“instrumental” acerca dessa natureza: instrumento da classe capitalista.
Para ele, a noção de instrumento implicaria que a relação entre Estado e
capitalistas seria externa, isolando o Estado de seu contexto,
fetichizando-o, abstraindo-o da rede de relações de poder onde está
imerso. “O erro dos movimentos marxistas revolucionários não foi negar a
natureza capitalista do Estado, e sim compreender de maneira equivocada
o grau de integração do Estado na rede de relações sociais
capitalistas”, aponta Holloway.
Assim, diante da proposta de Henrique
surgem algumas dúvidas. A primeira dela foi comentada acima, ou seja, é
possível que o Estado, por sua própria natureza, exerça um tipo de
controle que não esteja marcado por sua “integração na rede de relações
sociais capitalistas”? Pode o Estado servir como contraponto ao arbítrio
do mercado sendo ele mesmo parte dessa história?
E mais: é desejável que o Estado cumpra
essa função? Se estamos com Marx, e entendemos o Estado como parte desta
separação entre auto-atividade humana e produção da vida material, como
garantidor da divisão social do trabalho e da propriedade privada, como
fiador da falsa dicotomia entre político e econômico, por que o
elegeríamos como o mecanismo de controle social do mercado das drogas
hoje ilícitas? Por que fortaleceríamos um mecanismo que na prática joga
todo o tempo contra nós?
Avaliando
o que classifica como “novas governabilidades” na América Latina,
resultado da potência dos movimentos sociais e também da intenção das
elites em reconstituírem a crise do modelo de dominação, Raul Zibechi
descreve no artigo A arte de governar os movimentos sociais [8]
um cenário em que novas formas de controle buscam não mais tentar
impedir, através da força, o crescimento dos movimentos populares, mas
sim colocar em jogo outros elementos a fim de que o fenômeno que eles
representam se anule em si mesmo. Neste contexto, o autor mostra a
importância para o Estado das estratégias de diálogo e construção de
políticas públicas junto aos movimentos sociais. Este “compartilhamento
de espaço-tempos” geraria um duplo reconhecimento: por um lado está o
Estado reconhecendo a importância e o peso dos movimentos, mas por
outro, e não menos importante, estão os movimentos reconhecendo e
legitimando as novas governabilidades estatais.
Investindo no Estado o poder de legislar
sobre nossas condutas privadas, o poder de legislar sobre nossos
corpos, não estamos agindo de forma análoga a este duplo reconhecimento?
Reconhece o Estado nosso direito a ingerir o que bem entendermos, mas
nós reconhecemos também o direito deste Estado a proceder desta forma, a
dizer o que podemos ou não fazer, e como.
Além disso, se a proposta de Rodrigues
parece ter se “esquecido” do mercado, a de Carneiro tampouco lida com o
papel simbólico de zelar pelo “interesse público” que o Estado diz
exercer. Por que o Estado investiria na produção de substâncias
alteradoras de consciência se não dá conta nem de prover educação e
saúde para a população? Como justificar isso? Uma resposta poderia ser:
“sim, também defendo a estatização da saúde, da educação, do transporte,
etc.” Seria essa nossa alternativa de combate ao domínio do mercado, o
fortalecimento de um super-Estado? Onde fica a emancipação humana nessa
história, ela pode conviver com o Estado?
Por fim, última objeção: se deixamos ao
Estado a prerrogativa de legislar sobre esse mercado, deixamos a ele
também o direito de reprimir os que fujam das regras estabelecidas? Não
deixamos aberto assim um flanco para a criminalização seletiva de
setores sociais, uma vez que qualquer criminalização é sempre seletiva?
Por que acreditar que um Estado penal que encarcera seletiva e
arbitrariamente os setores indesejados de sua população procederia de
maneira justa e parcimoniosa apenas no âmbito da regulamentação das
drogas? E ainda que o fizesse, optaríamos por fortalecê-lo mesmo sabendo
como são seus procedimentos com todo o restante da aplicação da
Justiça?
Inconclusões
Bom, ok, a proposta de Thiago Rodrigues
parece interessante ao retirar a legitimidade estatal, mas problemática
ao lidar com o mercado; a de Henrique Carneiro parece interessante ao
retirar a legitimidade do mercado, mas problemática ao fortalecer o
Estado. O que fazer então?
Uma
espécie de “terceira via” pode ser representada pelo modelo das
cooperativas, muito fortes na Espanha, por exemplo. Como a lei do país
já permite um número mínimo de pés de maconha para cultivo e consumo
pessoal, diversos usuários se juntam em cooperativas sem fins lucrativos
nas quais cada um utiliza-se desse limite pessoal de forma coletiva.
Por não funcionar como uma empresa, a cooperativa não incentiva o
consumo nem o propagandeia. Além disso, garante a qualidade do produto e
o envolvimento do usuário no processo de produção. Por não ser uma
iniciativa estatal, é passível de menos controle e nem conta com
investimento “público”.
O modelo é interessante, poderia até
apontar para concepções autogestionárias, no entanto parece improvável
que possa dar conta de uma produção em larga escala, necessária diante
de tamanha demanda global. Além disso, quanto mais fechada uma
alternativa mais margem ela abre para o surgimento de mercados ilegais,
invariavelmente regidos pela violência. Onde ficam os consumidores de
drogas que simplesmente não querem ter uma ligação “não alienada” com o
processo de produção de sua substância preferida? São obrigados a se
engajarem no processo de produção e se não o quê? Havendo essa demanda
não haverá oferta ilegal? Não se pode almejar aqui a saída holandesa de
regulamentação da compra e do consumo em determinados locais, mas em
paralelo à incoerente manutenção da criminalização da produção. Além
disso, como ficam as substâncias cuja produção é sintética, que não
envolvem essa tradição de cultivo e essa relação com as plantas que coca
e cannabis representam?
Obviamente que qualquer das alternativas
apresentadas representa um enorme avanço em relação à atual conjuntura
proibicionista, sendo portanto a luta pelo fim da guerra às drogas o
foco principal do movimento. Antiproibicionismo, articulado na negativa
da proibição. Parece evidente também que, diante da atual conjuntura,
não haverá alternativa que consiga “fugir” seja do Estado seja do
mercado, a não ser que esperássemos sentadinhos o fim do capitalismo
para aí pensar como queremos que se dêem produção, distribuição e
consumo das substâncias psicoativas.
Analisar essa realidade não significa
necessariamente aceitá-la, e muito menos colaborar com ela. Não é porque
identificamos uma inevitabilidade do mercado e do Estado no presente
momento que temos de trabalhar com estratégias que os fortaleçam. Lidar
com isso certamente é um dos principais desafios do movimento
antiproibicionista, e ainda há pouco debate e pensamento a respeito
dessas questões em seu interior. Cogitamos que, para além do
antiproibicionismo, talvez nos esteja colocada a demanda da construção
de um antiproibicionismo anticapitalista.
No
texto já citado, Raul Zibechi esboça alguns pontos que parecem
interessantes de serem aplicados aqui. Podem ser um bom ponto de partida
para que um debate mais estratégico seja feito pelo movimento,
ampliando também o diálogo com outros setores da esquerda. Zibechi
propõe: 1) compreender as novas governabilidades em toda a sua
complexidade. Como resultado de nossas lutas mas também como uma
tentativa de nos destruir. 2) Proteger nossos espaços e territórios da
atuação estatal. 3) Não nos somarmos à agenda do poder, criar nossa
própria agenda. 4) Delimitar campos, a fim de deixar bem claro até que
ponto iniciativas com outros setores podem ser benéficas. 5) Não tomar a
unidade como horizonte fundamental, pensando nas resistências múltiplas
como positivas e no risco da unidade surgir como imposição, como freio
aos movimentos de abajo.
Como apontou um texto do DAR do começo deste ano,
vivemos um momento dúbio em relação ao debate de drogas, em que por um
lado cresce o movimento, mas por outro fortalecem-se também os velhos
ideais conservadores que formaram e sustentam nosso país. Nossa
importante vitória frente às absurdas proibições e nosso fortalecimento
convivem com a militarização crescente, que se agrava na onda dos
megaeventos, com o imenso peso político de grupos religiosos
praticamente fundamentalistas e com o caráter repressivo de alternativas
supostamente médicas, como a internação compulsória de usuários de
crack, ganhando cada vez mais espaço nas políticas públicas. Se queremos
uma mudança de fato, e não apenas uma “revolução passiva” na qual os de
cima absorvam os desejos de mudança provenientes de setores populares e
movimentos sociais, a fim não de implementá-los em sua totalidade mas
de contê-los, ao aceitá-los parcialmente, em sua lógica, certamente
devemos avançar na compreensão não só do chão que estamos pisando mas do
horizonte que norteia nossa caminhada.
Notas
[*] Jornalista, mestrando em História Social. Membro do Coletivo DAR e da Marcha da Maconha São Paulo.
[1] Nascido em 2009 através da articulação de ativistas de diferentes trajetórias políticas e acadêmicas, o Coletivo DAR
é uma organização do chamado movimento antiproibicionista, conjunto de
entidades, indivíduos, redes e articulações que questionam a proibição
das substâncias psicoativas tornadas ilícitas há cerca de um século. Um
dos organizadores da Marcha da Maconha de São Paulo, o grupo busca em
sua atuação cotidiana ampliar o enfoque presente na defesa apenas da
legalização da maconha, feita pela Marcha, tentando não só debater o
proibicionismo em relação a todas as substâncias mas também conectar a
busca por sua transformação às formulações e agendas de outros
movimentos sociais. Com o tempo consolidou-se em nossas formulações e em
nossa prática a compreensão de que não basta um trato justo às drogas
em um mundo injusto, cabendo a nós também nos preocuparmos com lutas que
visem transformações sistêmicas, levando-nos portanto à definição do
DAR como um coletivo antiproibicionista e também anticapitalista.
[2] Ver, por exemplo, os casos de Chile, Colômbia, Uruguai, Estados Unidos. O tema ganhou atenção também na Cúpula das Américas, realizada em abril de 2012.
[3] O caso mais emblemático talvez seja o de George Soros, financiador de longa data de diversas campanhas e iniciativas contra a guerra às drogas.
[4] Neste ponto, o
autor mostra desconhecimento em relação à amplitude do que se costuma
classificar como “redução de danos”, partindo do equivocado pressuposto
de que as técnicas de redução de danos primam pela busca da abstinência,
quando em verdade partem da premissa de que há e sempre haverá consumo
de drogas, cabendo às ações públicas ou privadas primarem pela
informação e pela busca de um uso o mais seguro e consciente possível. A
mentalidade da redução de danos, por partir de uma concepção das drogas
como definidas por seu uso, e não a priori negativa, faz com que esse tipo de pensamento seja completamente oposto à abordagem proibicionista tradicional.
[5] Baseamo-nos aqui na versão em espanhol de Mudar o mundo sem tomar o poder,
obra publicada em português pela Editora Boitempo. A tradução é livre e
provavelmente pouco exata. A previsão é de que seja lançado neste ano
no Brasil o novo livro de Holloway, Crack capitalism, pela
editora Publisher, obra na qual ele busca avançar na proposição de
transformação não ancorada na tomada do Estado, formulando a defesa da
criação de “fendas” como forma de minar o sistema a partir de focos
múltiplos de resistência e autonomia.
[6] No livro Nuestro derecho a las drogas,
por exemplo, Szasz critica a guerra às drogas por permitir que
produtores tenham suas terras expropriadas quando constatada produção de
substâncias ilícitas. Assim, para Szasz, a guerra às drogas chega a ser
“literalmente uma guerra contra a propriedade”.
[7] Interessante, e
importante, notar aqui que a proposta de Carneiro é menos estatista do
que a do presidente Pepe Mujica, uma vez que enquanto este defende o
monopólio estatal, num primeiro momento sem previsão sequer de
legalidade para a produção própria para consumo pessoal, o professor
defende apenas o “controle estatal do grande atacado e produção”, dando
espaço em sua proposta a “um campo imenso de iniciativas individuais,
familiares, comunitárias e microempresarias que poderiam ser não só
mantidas, mas estimuladas no campo do cultivo e da produção dessas
substâncias. Tanto bebidas como vinhos, cervejas ou aguardentes, como
cultivadores de fumos de qualidade, ou de “canabicultores”, deveriam ser
estimulados com apoio creditício e fiscal”.
[8] Em espanhol El arte de gobernar los movimientos sociales, tradução livre. O artigo está no livro Los movimientos sociales y el poder; la otra campaña y la coyuntura política mexicana, publicado em 2007.
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