O delírio da vista
06/07/2013
Por Haroldo Lima
O
delírio da multidão levou as manifestações pelo Passe Livre na Grande
Vitória a um momento sem precedentes: em oito anos, fomos da liberação
das cancelas de um pedágio à oportunidade de desmantelá-lo para sempre,
abrindo caminho para a profanação da cidade.
Por Haroldo Lima
Não é só uma passagem. Quando
o governo do Espírito Santo aumentou a tarifa do Sistema Transcol pela
segunda vez em menos de um ano, em 2005, e rechaçou violentamente
estudantes que questionavam o reajuste em frente a Ufes, com balas de
borracha e gás de efeito moral , não esperava o enraizamento da luta
pelo Passe Livre de forma tão articulada, de modo que, em pouco mais de
oito anos, se desdobrasse em um dos momentos mais potentes dos
movimentos sociais capixabas.
Com a popularidade nas nuvens, Paulo Hartung (PMDB), governador do ES à
época, viu pouco mais de 100 estudantes se transformarem em três mil
manifestantes em menos de 72 horas, após a violência da tropa de choque
contra a manifestação. No domingo, antes de mais uma semana de lutas
começar, o reajuste foi reconsiderado. Daquele momento em diante, a
pauta do Passe Livre no Espírito Santo tornou-se comum e, entre refluxos
anuais constituintes, levou mais gente às ruas sempre que a tarifa
subia. O ato dos três mil proporcionou uma imagem fortíssima para os
movimentos do estado. Com a Praça do Pedágio tomada, as cancelas foram
abertas na principal via de ligação entre Vitória e Vila Velha. Até
2013, foi uma imagem muito potente, mas ainda assim só uma imagem.
Inaugurada em 1989, a Ponte Deputado Darcy Castello, conhecida como
Terceira Ponte, foi custeada por meio de um contrato de concessão que,
após sua conclusão, garantia a concessionária explorar um pedágio em
Vitória como forma de arcar os custos da obra e proporcionar lucros à
empresa que a bancou. Com data marcada para expirar (2001), o contrato
foi vendido em 1998 para um grupo de empresários capixabas. Logo após a
manobra, o Governador Victor Buiaz renovou o contrato por mais 25 anos –
mesmo com a obra quitada. Nesse novo acordo, o governo também uniu o
contrato da ponte com o de exploração da Rodosol – ES060 – a via privada
que corta o litoral Sul e só se paga no verão, apesar de também possuir
um pedágio. Em uma tacada, o morador da Grande Vitória passou a
sustentar a ponte e uma via privada que, segundo pesquisas, não dá
lucro. O consórcio com o Sistema Rodosol sobreviveu a três CPI (1994,
1995 e 2003), só a última gerou um relatório. A CPI de 2003 foi
engavetada mesmo com 20 irregularidades apontadas. A Terceira Ponte é
trecho mais caro do país (R$0,57 por Km), a R$1,90. O preço do pedágio
impacta diretamente o usuário de transporte público que faz uso do
Sistema Transcol.
A repressão policial, claro, cresceu proporcionalmente aos protestos
seguintes. E com ela a tentativa de desmantelamento das manifestações
pelo discurso do “vandalismo”. Se em 2005 a opinião geral condenou a
violência do choque, nos atos seguintes, com o “vandalismo” pautado pelo
poder, o apoio arrefeceu, até que começaram a pipocar na rede vídeos e
relatos do cerco policial ao movimento de 2012.
Sob
a administração Renato Casagrande (PSB) – em chapa de coalizão formada
com o PT e amplamente apoiada pelo poder capixaba – um grupo de
estudantes secundaristas paralisou a principal via do centro da Capital
naquele ano, justamente em frente ao Palácio Anchieta, sede simbólica do
governo. Transmitida ao vivo pela TV, a caçada aos manifestantes pelo
choque dividiu a tela com um ônibus incendiado bem perto dali. Os
protestantes foram incriminados automaticamente. Enquanto parte da
sociedade se escandalizava com o ônibus incendiado, um novo protesto
tomava forma nos arredores da universidade.
Os atos do movimento Passe Livre Grande Vitória têm um trajeto
determinado desde 2005: partem da Ufes, atravessam a Reta da Penha
(principal via de articulação da Capital) e culminam na Praça do
Pedágio, que dá acesso à Terceira Ponte. Liberar as cancelas do pedágio é
questão de honra nas grandes marchas do movimento estudantil. Com três
mil nas ruas e amplo apoio da população, havia sido fácil criar uma
imagem em 2005. No ato de janeiro de 2012 em protesto à violência da
manhã, os manifestantes marcharam em direção à praça para liberar o
pedágio, mas antes de se aproximarem, a cavalaria tomou de assalto o
protesto, encurralou manifestantes, agrediu aqueles que registravam com
celulares e câmeras os abusos da polícia e prendeu 14 pessoas que
tentavam escapar no roletaço pós-ato. Antes, bombas e tiros de borracha
haviam sido disparadas pelo choque no interior da universidade,
assustando e sufocando espectadores de Estrada para Ithaca, em sua última sessão no Cine-Metrópolis, e prédios ao redor do Centro de Vivência da Ufes.
A ação da polícia foi registrada e tomou a rede. O governo e o discurso
da mídias foi constrangido. Se no começo do movimento a mídia condenou a
violência policial e carregou a opinião geral, nesse ano a ação da rede
desarticulou o discurso de garantia da ordem e defesa do bem privado e,
mais uma vez, colocou mais gente na rua na Marcha dos Cinco Mil, como
então ficou conhecida a manifestação pós-violência. Outra imagem muito
forte da Praça do Pedágio tomada marcou o movimento.
Como em diversos locais onde o Movimento Passe Livre constitui-se em
novo projeto de cidade (Florianópolis e Porto Alegre entre elas), a
violência da polícia paulista em 13 de junho levou a luta mais uma vez
para as ruas de Vitória. Em uma manifestação gigante para os padrões
locais, puxada dessa vez pelo Passe Livre Grande Vitória e agentes
autônomos, as vias da Capital foram tomadas por 30 mil pessoas em marcha
no dia 17 para o que gostaria de chamar de delírio da vista, um
evento constituinte e primeira guinada para o que viria depois, com o
direcionamento da luta na Capital contra o pedágio-imposto do Consórcio
Rodosol.
Da Ufes, 30 mil partiram mais uma vez para a Praça do Pedágio. Se com
pouco mais de três mil pode-se criar uma imagem potente, com apoio
popular, os 30 mil indignados liberaram cancelas atravessaram a ponte. A
imagem da Terceira Ponte tomada por uma multidão carregou as redes e os
meios de comunicação em comoção popular. Por outro lado, a vista da
ponte – antes espaço privado, um não-lugar privilegiado – deixou
enxergar por delírio a possibilidade de uma cidade em que o mundano se
sobrepõe ao divino pela multidão, mesmo com a vista transcendente do
Convento da Penha, marco histórico e cultural do povo capixaba.
Pelo delírio da vista,
os protestos em Vitória, a partir desse marco, têm um novo significado.
De lá, marcharam em direção à residência oficial do governador, em Vila
Velha, onde o choque recebeu mais uma vez manifestantes com violência
exacerbada. Cobravam diálogo, uma resposta ao impedimento de delirar
cotidianamente. De transitar, de ter o acesso à cidade pelo público.
Com ares nacionalistas, 100 mil capixabas se reuniram ao redor da Ufes
para outro grande ato no dia 20 de junho. As representações que podiam
ser identificadas no movimento dos anos anteriores, mesmo sendo puxadas
pelo Passe Livre Grande Vitória, são rechaçadas nesse momento. Em
disputa, as ruas não aceitam bandeiras de movimentos e principalmente de
partidos, famílias protestam, janelas piscam, o morro e a periferia
começa a integrar os movimentos do centro. A se configura em
subjetivação nas praças para outro momento constituinte: a destruição de
cancelas e cabines do pedágio.
Parte dos manifestantes atravessou a ponte rumo à Vila Velha, enquanto a
Praça do Pedágio ainda estava totalmente tomada, quando indignados
confrontaram o choque à espreita. Duzentos protestantes
predominantemente negros chamaram a força policial para enfrentamento e
colocaram abaixo a estrutura da Praça do Pedágio sem medo das câmeras de
monitoramento, sem medo do abate cotidiano imposto pela polícia nas
periferias da Grande Vitória, que viria depois com perseguições e
detenções de suspeitos escolhidos fenotipicamente nas ruas.
Chamo esse segundo momento de evento constituinte porque há política em
cada janela estilhaçada. Ao atacar o pedágio, a multidão desestruturou o
centro nervoso dos mecanismos de poder imperantes na cidade. Levou à
divindade da praça o mundano que pode haver na periferia como
resistência à violência e segregação, pela produção de outras
subjetividades – os fluxos que a atravessam pela cultura, pelos caminhos
comunicacionais, pela reafirmação de identidades frente ao aparato
imperial de coerção. Confinados nas bordas, os 200 da multidão
reafirmaram na praça seu status de cidadãos, tomaram para si e
possibilitaram ao outro o entendimento de que é partir do trânsito pelas
vias da cidade e pelo vontade de uma pólis fundada no desejo de
cooperação e produção, que o mundano sobrepõe-se ao divino.
Ironicamente, em uma cidade duramente católica.
Organizados em assembleias livres, o movimento da Grande Vitória têm
muito a aprender com os eventos constituintes. Qualquer tipo de
organização vai fracassar frente aos desejos produzidos pela multidão na
rua. Exemplo disso é a manifestação subsequente, do dia 25, quando mais
uma vez a multidão reagiu à segregação imposta pela cidade
transcendente, rebelando-se contra ela. Lojas e fachadas de prédios de
luxo do bairro em que o poder se encastela foram dizimadas com a mesma
fúria aplicada contra a Praça do Pedágio. Em resposta, a reação do poder
veio mais uma vez da instância palaciana. Casagrande recomendou a
população capixaba a não participar dos protestos devido aos rumos
violentos que as manifestações haviam tomado.
O fascismo de estado também trabalha intermitentemente via segregação
dos espaços. Nesse momento, mostrou-se publicamente ao tentar separar às
claras a multidão entre protestantes e vândalos negros. “Magrinhos”
foram presos às dezenas – 120 em apenas uma noite. As redes de
solidariedade e cooperação se fortaleceram.
Vitória vive um momento sem precedentes no campo das lutas, assim como
outras cidades do Brasil. Com o desmantelamento das cancelas no dia 17,
os capixabas puderam delirar deliberadamente com a vista da ponte. Logo
depois o pedágio voltou a funcionar com cobrança manual, impedida pela
agência reguladora da concessão devido aos congestionamentos causados na
Capital. A cobrança eletrônica foi retomada na mesma semana em que a
Assembleia Legislativa desengavetou um projeto de extinção do consórcio.
Colocado para votação no último dia dois, a bancada aliada pediu vistas
ao projeto após uma manobra do mesmo governador eleito com a doações da
Rodosol para sua campanha.
No dia da votação os movimentos debandaram para a casa. Um confronto
entre seguranças e manifestantes em protesto no interior das Ales
possibilitou que a casa fosse tomada – a sala da Presidência continua
ocupada – pela mesma multidão que antes não ousava delírio tão profundo.
De casa, a população assiste solidária à luta, envia suprimentos, apoia
e estimula.
Até agora, temos história e desejo. A potência dos protestos mostrou
que antes, e desde sempre, nunca foi só uma passagem. Os fatos futuros
podem ser acompanhados pelas redes colaborativas da multidão.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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