PICICA: "Em Multidão, Antonio Negri e Michael Hardt
afirmam que a civilização ocidental fundamentou a ordem do mundo (e das
cidades) em origens e finalidades dadas: “quem nasce bem governa bem”.
Desde a antiguidade, aqueles que poderiam interromper essa lógica entre
eugenia e finalismo – os pobres, mulheres, escravos, estrangeiros,
loucos e todos os que não se encaixam no perfil “homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer” nos termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari – eram tidos como monstros que não tem direito à cidade enquanto espaço urbano (urbe) e não tem direito à cidadania enquanto espaço político (pólis).
No século XVII, Thomas Hobbes cria o Leviatã. Mas, à diferença do
monstro bíblico que representava a desobediência humana à ordem divina, o
seu é um monstro domado, domesticado, submisso: uma multiplicidade
social hierarquicamente ordenada em um corpo político. Já no século XIX,
o monstro reaparece pelas mão de Marx que nos mostra o quão monstruosa é
a exploração capitalista: muito além da mais valia…. a alienação; muito
além do econômico e material… o pessoal e subjetivo. Seguindo seus
passos, Hardt e Negri (e também Foucault em outros termos) afirmam que
monstruosa é a exploração capitalista porque monstruosa é a resistência da multidão.[iv]
Foram pelo menos três as questões que provocaram meu interesse pelo
monstro enquanto figura conceitual: sua suposta ambivalência, ou seja,
uma ruptura com a dicotomia bem versus mal que, por isso mesmo, demanda um crivo ético para se evitar a relativização geral – o “vale tudo”; sua
produção desmedida e excessiva que não cabe na mensuração da economia
cultural e criativa assim como não cabe na medida da política
representativa, partidária e eleitoral; a primazia da resistência sobre o poder."
Sobre Museus e Monstros
por Barbara Szaniecki
Anos atrás, em viagem à Espanha, percorri o Museu do Prado inteiro arrastando meu caçula para ver El sueño de la razon produce monstruos (1797-1799) de Francisco de Goya. Não podíamos perder aquela oportunidade: monstros haviam me acompanhado ao longo da escrita de tese – Leviatãs, Golens, Cyborgs, Calibãs, etc – mas não eram monstros produzidos pelo sono da razão e sim pelo acordar ou abertura da razão a uma multiplicidade de formas de vida. Esses monstros da ambivalência, do excesso, da desmedida e da resistência eu os havia encontrado na leitura de Antonio Negri e dela estava impregnada quando me deparei com um cartaz-faixa que, pendurado no alto de uma imensa ocupação em pleno centro da cidade de São Paulo, gritava “Zumbi somos nós!”[i]. Impactada pela sublime visão da Prestes Maia, decidi pesquisar sua potente produção social, cultural e artística, e a ela dedicar um texto: Outros monstros possíveis[ii]. Anos mais tarde, voltei a me deparar com o monstro, desta vez na cidade do Rio de Janeiro em plena “ressignificação” criativa e “revitalização” urbana. Nesse processo, a museificação (ou simplesmente institucionalização) da cultura e da arte carioca organiza em termos econômicos a primeira e legitima em termos políticos a segunda. É no seio desse projeto que remove favelas, gentrifica bairros populares e elimina qualquer possibilidade de alteridade e heterogeneidade na cidade, que foi inaugurado o MAR – Museu de Arte do Rio[iii] em 1o de março desse ano de 2013. E, com a inauguração do MAR, o vernissage da exposição O abrigo e o terreno: arte e sociedade no Brasil I com a proposta de abrir o debate sobre os antagonismos urbanos e com a presença dos artistas que haviam atuado na Ocupação Prestes Maia em São Paulo entre muitos outros. O conflito estourou e, diante da museificação da arte e da cultura, a cidade monstruou novamente…
Negri e o Monstro Paulistano
Frente 3 de Fevereiro – Zumbi Somos Nós
Em Multidão, Antonio Negri e Michael Hardt afirmam que a civilização ocidental fundamentou a ordem do mundo (e das cidades) em origens e finalidades dadas: “quem nasce bem governa bem”. Desde a antiguidade, aqueles que poderiam interromper essa lógica entre eugenia e finalismo – os pobres, mulheres, escravos, estrangeiros, loucos e todos os que não se encaixam no perfil “homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer” nos termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari – eram tidos como monstros que não tem direito à cidade enquanto espaço urbano (urbe) e não tem direito à cidadania enquanto espaço político (pólis). No século XVII, Thomas Hobbes cria o Leviatã. Mas, à diferença do monstro bíblico que representava a desobediência humana à ordem divina, o seu é um monstro domado, domesticado, submisso: uma multiplicidade social hierarquicamente ordenada em um corpo político. Já no século XIX, o monstro reaparece pelas mão de Marx que nos mostra o quão monstruosa é a exploração capitalista: muito além da mais valia…. a alienação; muito além do econômico e material… o pessoal e subjetivo. Seguindo seus passos, Hardt e Negri (e também Foucault em outros termos) afirmam que monstruosa é a exploração capitalista porque monstruosa é a resistência da multidão.[iv] Foram pelo menos três as questões que provocaram meu interesse pelo monstro enquanto figura conceitual: sua suposta ambivalência, ou seja, uma ruptura com a dicotomia bem versus mal que, por isso mesmo, demanda um crivo ético para se evitar a relativização geral – o “vale tudo”; sua produção desmedida e excessiva que não cabe na mensuração da economia cultural e criativa assim como não cabe na medida da política representativa, partidária e eleitoral; a primazia da resistência sobre o poder.
Contudo, apesar das resistências, foi-se constituindo ao longo dos séculos uma tradição eugênica por meio da expulsão ou eliminação de diferentes maneiras daqueles tidos como monstros – imperialismo, colonialismo, fascismo, nazismo, racismo. Uma das experiências de biopoder mais marcantes do Brasil pós-colonial e recém-republicano foi, sem dúvida, Canudos. Naqueles tempos, nossos políticos e nossas ciências sociais estavam preocupadas em promover a unidade nacional – homogeneização dos corpos e de suas expressões – que levasse o país ao progresso. Em Os Sertões, por exemplo, Euclydes da Cunha fica estarrecido ao perceber como Canudos resiste à razão republicana através de táticas metamorfoseantes de uma população multiforme comandada por um Antonio Conselheiro monstruoso. Ao final da Guerra, parte desses combatentes se instalaram no “Morro da Favela” hoje denominado Morro da Providência no Rio de Janeiro. Canudos procurou resistir à construção do Estado-nação brasileiro por meio de uma inclusão submissa que foi totalmente funcional à Razão do Estado e à organização dos mercados e que, hoje, mostra novamente a sua cara nas cidades brasileiras prestes a acolher megaeventos e já sofrendo o neodesenvolvimentismo nos três níveis de governo. à essa eugenia social e cultural, a cidade – morro e asfalto – resiste monstruando.
Com efeito, a configuração de grande parte das cidades brasileiras nunca se enquadrou na dicotomia centro versus periferia. Favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas são produtoras de múltiplas centralidades, de fluxos e de devires mil. Voltemos por um momento à Ocupação Prestes Maia em São Paulo através da qual procurei observar como coletivos de arte e de cultura lutaram junto aos moradores, chamaram a atenção da mídia e conseguiram defender sua moradia. Se tratava de um edifício abandonado por muitos anos e com imensa dívida de IPTU que, em 2002, foi ocupado por 468 famílias (cerca de 2000 pessoas). Os novos moradores ativaram as instalações materiais de água, luz, esgoto e lixo e imateriais como biblioteca e internet; as crianças passaram a freqüentar as escolas nos arredores, os adultos se inseriram na economia local como catadores e camelôs dentre outras atividades; e, juntos, organizaram inúmeras atividades culturais, sociais e políticas. Os moradores da ocupação costumam ser extremamente produtivos e intensamente cidadãos. Sua produção excede os parâmetros do trabalho no mercado – o emprego com horário, salário, subordinação, disciplina e controle – e sua cidadania excede os parâmetros da representação no Estado – o partido com candidato, campanha, horário eleitoral, voto. Excede porque resiste e resiste porque excede. Se trata de uma produção e de uma política que extrapola as articulações do mercado e do Estado e suas parcerias público-privadas perfumadas assim como as formas ongueiras, e é nesse excesso que se faz monstruosa.
Em São Paulo, enquanto os poderes públicos condicionaram a assistência aos moradores à desocupação e liberação do prédio para a iniciativa privada, os moradores insistiram em dar ao prédio um destino social: habitação para quem cria diferentes modos de produzir e agir, em suma, formas de viver (n)a cidade. Era um conflito evidente entre duas concepções e práticas de “revitalização”: a gentrificação imposta pelo Estado e pelo mercado hoje sócios por meio do label “economia criativa”[v] e a vida social, cultural e artística da população local que, em seus múltiplos agenciamentos com outras redes e coletivos, se faz multidão. “Zumbi somos nós!” insistia, persistia, resistia o monstro. No rastro da minha pesquisa sobre uma estética da multidão[vi], me interessei pela produção de cartazes de coletivos de artistas[vii] com suas táticas de reprodução, movimento e metamorfose. Subverter o discurso da falta em excesso e da ausência em potência desses sujeitos produtivos e políticos, é caminho necessário (mas não suficiente) para criar uma cidade resistente ao fundamento eugênico – aquele fundado na ordem e no progresso – e que se abrisse à criação da Multidão: “artistas somos nós em nossa potente constituição!”A figura do monstro se prestava a pensar essas questões, embora o foco político sempre foi e continua sendo o “fazer multidão”. Foi sobretudo através do impacto do cartaz-faixa Zumbi somos nós! pendurado no alto da Ocupação Prestes Maia que eu vi o que Negri queria dizer quando incitava a recusar a dialética entre um sujeito (Estado ou capital, e suas velhas e novas articulações: dos partidos e sindicatos às ONGs e novos circuitos de ativismo hashtag-guiado) e um objeto para então afirmar a luta entre sujeito e sujeito. Os SEM – sem teto, sem trabalho, sem direitos, sem cultura, sem mídia – como potência absoluta: sem nada a perder, o SEM tudo pode.
A monstruação carioca e o MAR
Dez anos nos separam da primeira ocupação do edifício Prestes Maia em São Paulo. Nesse ínterim, a Prefeitura do Rio de Janeiro procurou dar início a um novo ciclo econômico baseado em uma “ressignificação” criativa da “revitalização” urbana que empreendia. O modelo é conhecido: é o do Soho de Nova York cujo sucesso foi exportado para outras cidades mundo afora por Richard Florida[viii] através de suas consultorias. Eventualmente pode obter êxito semelhante em áreas reduzidas como a dos arredores da Praça Tiradentes até Lapa. Mas a realidade é mais complexa e, no Rio de Janeiro, adquire aspectos perversos: áreas urbanas que passam por decadência do ciclo econômico baseado em suas atividades industrias e portuárias e consequente estigmatização social da sua população se tornam alvo de especulação imobiliária por meio da compra de imóveis a preços irrisórios por parte de grandes grupos; o encarecimento da vida no bairro – do aluguel dos imóveis às despesas de supermercado – promove a expulsão gradual do morador local. Esse fenômeno é conhecido por “remoção branca” e, no contexto carioca de megaeventos vem acompanhada de um projeto de remoção literal por parte da Prefeitura e de “pacificação” via UPPs do Governo do Estado. A dita “classe criativa” participa às vezes sem perceber desse ciclo: ao procurar moradia barata, aciona um processo que inicia como valorização simbólica quando o bairro fica na moda e aconchegante para os moradores e se encerra como valorização material quando o bairro fica caro e “exclusivo” no sentido que exclui os próprios moradores, e um exemplo recente desse fenômeno é o bairro de Santa Teresa. Mas ela pode ser convocada pelo poder público, suas instituições e parcerias público-privadas a ter um papel mais ativo nesse ciclo. Ela pode, por exemplo, ser convidada a ocupar criativamente aquilo que é tido como área de baixa densidade populacional ou mesmo vazio urbano e aceitar o convite sem conhecer os critérios de seleção daqueles espaços. Ela pode participar voluntaria ou involuntariamente de uma arte de “rejuvenescimento” da cidade que mascara uma realidade de expulsão e destruição ou, nos termos de Cristina Ribas, uma “arte de provocar ruínas”[ix] e novos vazios urbanos. O cálculo do poder no Rio de Janeiro é preciso como um corte cirúrgico: museus, feiras[x], editais e permissões para ocupações criativas de imóveis públicos podem ser ativadores da cidade mas já parecem funcionar como “mimos” que atenuam a crítica dos ditos criativos e chegam até a garantir seu silêncio sobre a remoção de favelas e ocupações sociais pela cidade. Onde está a crítica criativa carioca? Ou melhor, as críticas criativas cariocas? Mais plural…
Enquanto alguns nômades[xi] acompanhavam esse processos no front das remoções, nos últimos tempos eu vinha pesquisando a relação entre gentrificação da cidade e museificação da cultura no Rio de Janeiro. Para erguer museus gentrifica-se (a Aldeia Maracanã, por exemplo, é removida para abrigar um Museu Olímpico. Para quê? Para quem?) e, para remover ou legitimar a remoção, também erguem-se museus. O processo se revela gentrificação da sociedade e espetacularização da cidade[xii]. Nada contra museus, muito pelo contrário, os freqüento com prazer. Certa vez, em visita ao Museu da Maré[xiii], encontrei esse mapa pintado no muro e indicando a existência de museus parceiros como o Museu de Favela, o Museu Sankofa, o Museu Vivo de São Bento em Duque de Caxias, o EcoMuseu Nega Vilma, o Museu do Horto. Que variedade de museus na cidade e em seus arredores! Mas… quem os conhece? São museus com diferentes visões e práticas, são museus com forte vínculo com as comunidades nas quais inserem atividades em parte relacionadas à identidade sociocultural e à memória mas que vem sendo ampliadas e renovadas: são memórias vivas. Contudo, eles têm pouca ou nenhuma visibilidade e essa invisibilidade me instiga a pesquisar o que os torna tão pouco “criativos” aos olhos do poder público. A perspectiva de grandes eventos abre o caminho para grandes obras – assim como os velhos e novos negócios com empreiteiras – supostamente necessárias para a “revitalização urbana” acompanhada de sua “ressignificação criativa” – como caminho para superar a perda de capital política para Brasília e de capital financeira para São Paulo e tudo isso no meio de um processo de decadência econômica e consequente degradação social – que se sustenta em grande parte na construção de grandes museus (MAR[xiv] e Museu do Amanhã[xv]), e todos eles com algum tipo de parceria com a Fundação Roberto Marinho.[xvi] Em contraponto ou complemento a esse projeto de “criativ-ação” – talvez menos elitista e excludente que outrora, mais perversamente includente, ou seja, que inclui na medida da submissão a um modelo – da arte e da cultura do Rio de Janeiro e que vem se expandindo através do conceito de economia criativa, eu vinha ressaltando a importância da rede de Pontos de Cultura que, em suas práticas se revelam muito próximas àquelas das favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas onde, em alguns casos, eles se inserem. Daí, quando ponho em evidência a “parceria”, sempre definida em termos muito vagos, entre governos (federal, estadual e municipal) e a Fundação Roberto Marinho, quero apontar a relação delas com pelo menos três problemas que, por sua vez, estão interligados: o problema da sustentabilidade, o da visibilidade e o da espetacularização da cultura no Rio de Janeiro. Com relação ao primeiro: a economia criativa e seus museus que se beneficiam das leis de incentivo fiscal e se apresentam como parcerias público-privadas são vistos como sustentáveis enquanto os Pontos de Cultura beneficiários de editais públicos e as atividades culturais de favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas são vistos como insustentáveis. Alguns projetos artísticos e culturais passam então, malandramente, a se apresentar nos editais como “criativos” mas a malandragem não resolve o problema do modelo que lhe é imposto, muito pelo contrário, até pode legitimá-lo cada vez mais; com relação ao segundo: enquanto os Pontos de Cultura e as atividades culturais de favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas são condenados à invisibilidade ou a desqualificação[xvii], a economia criativa e seus museus desfrutam de boa visibilidade na grande mídia simplesmente porque… eles são as organizações Globo; e, finalmente, com relação ao terceiro: parte da acusação de insustentabilidade e da conseqüente invisibilidade se encontra no fato que as práticas artísticas e culturais desenvolvidas pela economia criativas e seus museus, se enquadram docilmente no contexto de espetacularização da cidade via megaeventos que o Rio de Janeiro está vivendo e ao atual contexto neo-desenvolvimentista brasileiro enquanto as iniciativas culturais desenvolvidas por Pontos de Cultura, favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanos são ligadas a contextos de resistência na cidade. Resistência a se enquadrar numa economia criativa das quais não somente eles não foram chamados a compartilhar os frutos como ainda são expulsos da cidade em processo de ressignificação e revitalização. Resistência aqui não é anti-poder – imagem invertida de um poder que oprime – e sim invenção de uma cidade que somente será potente se souber ser criativamente crítica e criticamente criativa: afirmativa de outras significações e vidas urbanas.
O Sertão não vai virar MAR[xviii]…
Nesse contexto de remoções e ameaças de remoções a favelas e ocupações cariocas o Museu de Arte do Rio (MAR)[xix] foi inaugurado com a presença da Presidenta Dilma Roussef, da Ministra da Cultura Marta Suplicy, do Governador do Estado do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro Eduardo Paes e… a família Marinho. O Museu estava lá, falicamente ostensivo numa área brutalmente violentada. Ele branco, ela negra. Mais uma vez, a história se repete. Somente no Morro da Providência, logo ali ao lado, são 820 famílias ameaçadas de remoção com contrapartidas do poder público tidas como insuficientes pela comunidade. Horto e a Vila Autódromo também estão prestes a se defrontar com essa dura realidade. Movimentos pela moradia e movimentos culturais protestavam do lado de fora. As monstruosas resistências de Canudos e de Palmares entre outras de outras de nossa história se fazem, ali, presentes. Provocado pela multidão com relatos sobre sua dramática situação de despejo, um artista famoso apalpa desafiadoramente a sua genitália na saída do museu. Ganhou por unanimidade o título carnavalesco de Muso do Mar e, escoltado pela polícia, entrou rapidamente num taxi. O Bloco Reciclato, entre apitaço e panelaço, afirmava “o sertão não vai virar MAR” e perguntava como artistas e coletivos de artistas que circularam com os movimentos pela moradia podiam, agora, expor os resultados no Museu que é um símbolo da gentrificação. É possível mostrar sua trabalho sem ser “capturado” pelo dispositivo MARítimo? É possível “criativos” atuarem criticamente – “dentro” e “contra” – esse MAR que coroa um projeto de cidade de expulsão dos pobres? É possível que o próprio MAR atue “dentro” e “contra” esse projeto de cidade? É possível criar outras institucionalizações da arte que não modulem por meio de seus sutis dispositivos a crítica constituinte da cidadania? As questões são pertinentes, as respostas nada evidentes…
Somente um mês após a inauguração e a visão daquele monumento à eugenia entrei no MAR. Passeei por três exposições – Rio de Imagens, O Co-le-ci-o-na-dor e Vontade Construtiva – para enfim chegar à exposição O Abrigo e o Terreno no térreo. Quando digo que passeei pelo museu, quero enfatizar que o MAR convida ao passeio. Naquele espaço clean, tinindo de tão branco e de tão limpo, pessoas passeiam com uma atitude… de flâneur. No MAR todo mundo vira um flâneur – um burguês francês do século XIX em pleno Rio de Janeiro do século XXI – à medida que seu olhar desencarna. Um olhar que vê mas não sente. Diante de uma obra constituída por uma pobre cama sendo suspensa e carregada por um poderoso trator, uma mulher se vira para sua amiga e diz “que engraçado!!!” Tudo ali se torna estranhamente “engraçado”. Fiquei me perguntando se tanta “graça” vinha da obra em si ou do contexto que a emoldura. Descartada a primeira opção, sobra a segunda. Tudo no museu marítimo – a monumentalidade do edifício, a política de governo e as parcerias público-privadas que o sustentam, a cerimonialidade de sua inauguração e a formalidade de suas exposições – me faz lembrar a famosa frase do Guy Debord que inspirou 1968: “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. Nele, o monstro parecia estar aprisionado. “Estamos vivendo uma caretice institucional” disse recentemente o artista Antonio Dias em passeio na ArtRio. Para além da caretice institucional, eu diria “uma institucionalização da caretice” na cidade: careti-Cidade. Do MAR à Maré, artistas e musos “Globalmente” consagrados tornam-se, via inúmeras formas de representação, modelito de produção e reprodução de arte contemporânea. É seu produzir separado do agir que alimenta a cultura do espetáculo em geral e a cultura do museu em particular: um emburguesamento cultural que combina muito bem – ton sur ton – com a gentrificação social em curso. Angústia. A estética da multidão estaria destinada a se tornar uma poética do consenso? O que fazer: desistir de qualquer forma de institucionalização?
Acho que podemos, à luz ou à sombra do monstro que, como já disse, traz as questões da ambivalência que demanda um crivo ético, do excesso que não cabe na economia do mercado e na representação do Estado e da resistência que é política e estética, urge repensar nossas relações com as instituições e representações: do artista com o museu, do professor e pesquisador com a universidade, dos movimentos com os governos, e dos movimentos entre eles. Foi a capacidade de articular o produzir e o agir numa Cultura Viva que me aproximou enquanto dizáiner e pesquisadora de design – uma criativa qualquer – dos Pontos de Cultura, próximos eles próprios das práticas sociais e culturais de favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas. Me parece necessário mas ainda insuficiente dizer que, diante do vampirismo institucional – do museu ao poder municipal passando pelos monopólios corporativos – é preciso fortalecer todas essas alianças monstruosas que constituem a carne da multidão: reconhecendo e fazendo reconhecer que grande parte de nossas criações são na realidade co-criações; exigindo mistura social e remix cultural como necessários à criatividade no Rio de janeiro; e até afirmando a potência criativa do conflito: sem conflito não há criatividade. Comentamos ao longo do texto a precisão cirúrgica do corte efetuado pelos poderosos no Rio de Janeiro que envolve questões de classe, de raça e de gênero: sempre que houver criatividades sendo sutilmente cooptadas e criatividades sendo expulsas violentamente da cidade, não hesitemos, MONSTRUEMOS!
[v]
ROSLER, Martha The Artistic Mode of Revolution: From Gentrification to
Occupation Em
http://www.e-flux.com/journal/the-artistic-mode-of-revolution-from-gentrification-to-occupation/
[vii]
Coletivos como A Revolução Não Será Televisionada, artbr, Associação
dos Moradores do Prestes Maia, BijaRi, C.O.B.A.I.A., Catadores de
Histórias, Centro de Mídia Independente, Cia.Cachorra, Contra-filé, EIA –
Experiência Imersiva Ambiental, Dragão da Gravura, Elefante, Espaço
Coringa, Esqueleto Coletivo, FLM – Frente de Luta por Moradia, Fórum
Centro Vivo, Frente 3 de Fevereiro, Grupo Calango de Teatro, Humanus
2000, Integração Sem Posse, Los Románticos de Cuba, Menossões, MSTC –
Movimento Sem Teto do Centro, Nova Pasta, Os Bigodistas, Rádio Xiado,
TrancaRua.
[viii]
FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa… e seu papel na
transformação do trabalho, do lazer, da comunidade e do cotidiano. Porto
Alegre: L&PM.
[ix]
RIBAS, Cristina. A arte de provocar ruínas: especulações na Zona
Portuária em revista GLOBAL/Brasil número 14:
http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=697
[xii]
PIRES, Vladimir S. Metrópole, cultura e breves reflexões sobre os novos
museus cariocas. Em revista Lugar Comum número 35 e 36, setembro 2011 –
Abril 2012. http://bit.ly/16mePCL
[xiv] Museu de Arte do Rio, orçado em R$ 43 milhões, é “iniciativa da prefeitura do Rio com apoio do Governo do Estado e realização da Fundação Roberto Marinho” http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2010/06/zona-portuaria-do-rio-vai-ganhar-museu-de-arte.html
[xv] Museu do Amanhã (Museu da sustentabilidade) orçado em R$ 215 milhões “O
Museu do Amanhã é uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro e da
Fundação Roberto Marinho, com o Banco Santander como Patrocinador Master
e o apoio do Governo do Estado, por meio de sua Secretaria do Ambiente,
do Governo Federal, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos
(FINEP), e da Secretaria dos Portos.” http://portomaravilha.com.br/web/esq/projEspMusAmanha.aspx
[xvi] SILVA, Gerardo e SZANIECKI, Barbara. Rio: dois projetos para uma cidade do conhecimento publicado em http://www.outraspalavras.net/2010/09/28/rio-dois-projetos-para-uma-metropole-conhecimento/ e http://www.overmundo.com.br/overblog/rio-dois-projetos-para-uma-cidade-do-conhecimento
[xvii] Declaração do Secretário Municipal de Cultura, Sérgio Sá Leitão no twitter http://bit.ly/12ESwlR. “Finalmente acabou uma das maiores tolices da cidade: a “aldeia” Maracanã! O Museu do Índio fica em Botafogo.”
[xviii] Bloco Livre Reciclato: o sertão NÃO vai virar MAR: http://on.fb.me/14tHote
“ReciclAto Convida! E atenção: Dilma, Eduardo Paes, Eike Batista,
Adilson Pires, Sergio Cabral já confirmaram presença! Você vai perder
esta? “COMO SE LEGITIMA A GENTRIFICAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE?! O Museu de
Arte do Rio integra o projeto de especulação imobiliária e apagamento de
memória do porto, com sabemos.
Nesse museu, no dia 1 de março, será lançada a exposição “O abrigo e o terreno” – “Nesta, Herkenhoff dividiu a curadoria com a jovem Clarissa Diniz, para selecionar trabalhos de arte que abordem a questão da moradia. Estão lá obras do grupo Dulcinéia Catadora, instalações de Ernesto Neto e até um carro alegórico do coletivo Opavivará! ” Olhem que interessante…artistas que circulam pelos movimentos de moradia, fotografam, gravam em vídeo e depois vão expor em um museu que é um dos símbolos da gentrificação da zona portuária. Para analisarmos como o próprio estado violador de direitos vai construindo sua legitimação com o apoio da jovem elite cultural e artística para planificar a real luta pela moradia. Dizem que a Dilma e uns ministros estarão presentes. (por Rio Distópico )”
Nesse museu, no dia 1 de março, será lançada a exposição “O abrigo e o terreno” – “Nesta, Herkenhoff dividiu a curadoria com a jovem Clarissa Diniz, para selecionar trabalhos de arte que abordem a questão da moradia. Estão lá obras do grupo Dulcinéia Catadora, instalações de Ernesto Neto e até um carro alegórico do coletivo Opavivará! ” Olhem que interessante…artistas que circulam pelos movimentos de moradia, fotografam, gravam em vídeo e depois vão expor em um museu que é um dos símbolos da gentrificação da zona portuária. Para analisarmos como o próprio estado violador de direitos vai construindo sua legitimação com o apoio da jovem elite cultural e artística para planificar a real luta pela moradia. Dizem que a Dilma e uns ministros estarão presentes. (por Rio Distópico )”
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