julho 27, 2013

'Manifestações Intempestivas', por Ricardo Gomes

PICICA: "Não temos mais por que ficar em casa, a cidade é nossa, podemos e devemos transforma-la. Aliás, tudo começou assim, com este desejo, por isso não há o que temer, e sim o que enfrentar e expandir. Sem dúvida vivemos um momento impar na história recente da cidade, as ruas em chamas no Leblon, a tomada da ALERJ, a constância e intensidade das manifestações no palácio Guanabara , as milhares de pessoas na Av Rio Branco e na Pres Vargas, a disseminação de grupos de contestação da ordem e o fortalecimento de tantos outros grupos antigos que já faziam desde sempre uma vida outra em todos os espaços, e, claro, o preço da passagem que pela segunda vez em pouquíssimo tempo conseguimos abaixar. Tudo nos indica um momento de intensa mobilização e discussão. O poder estabelecido também reclama notoriedade, quer abrir os sigilos e formar uma grande arquivo de tudo o que rola em todos os lugares, todo mundo vigiado, ou melhor, abertamente vigiado. Mas nós também aprendemos a vigiar o poder.

Manifestações Intempestivas

Algo se passou, fugiu, atropelou. Uma faísca capaz de queimar muitos corpos perpassou ruas e lugares que há muito tempo não era tomada por uma materialidade tão múltipla quanto viva. Uma crença foi quebrada. Crença simples porem fundamental, uma quebra intensa que pode afetar das ruas do Leblon até o maternal. A fragilidade daquilo que sustentava os hábitos sujeitados foi posta de lado. Isto que se passou e que ainda passa, ou melhor, isto que quando insiste está sempre passando, não tem identidade fixa nem finalidade ultima fora de si mesmo. Conjunto de efetivação do excesso produtor de novos sujeitos e subjetividades. Isto que só é possível nomear temporariamente abre-se aos desejos de uma multiplicidade rebelde, isto é incontornável.

Não temos mais por que ficar em casa, a cidade é nossa, podemos e devemos transforma-la. Aliás, tudo começou assim, com este desejo, por isso não há o que temer, e sim o que enfrentar e expandir. Sem dúvida vivemos um momento impar na história recente da cidade, as ruas em chamas no Leblon, a tomada da ALERJ, a constância e intensidade das manifestações no palácio Guanabara , as milhares de pessoas na Av Rio Branco e na Pres Vargas, a disseminação de grupos de contestação da ordem e o fortalecimento de tantos outros grupos antigos que já faziam desde sempre uma vida outra em todos os espaços, e, claro, o preço da passagem que pela segunda vez em pouquíssimo tempo conseguimos abaixar. Tudo nos indica um momento de intensa mobilização e discussão. O poder estabelecido também reclama notoriedade, quer abrir os sigilos e formar uma grande arquivo de tudo o que rola em todos os lugares, todo mundo vigiado, ou melhor, abertamente vigiado. Mas nós também aprendemos a vigiar o poder.

Há quem fale em AI-5, mas somos mais, nós que somos especialistas em ‘AIs’ (nossos sambas já transformaram todas as forças negativas dos 'AIs' em potencia do futuro) não vamos nos assustar. Também sabemos imprimir e sacar quem na manifestação trabalha pelo poder (os famosos P2), desarticulamos eles, deixamos à mostra e nos protegemos. O modo de ser essencial da PM é o ‘X9’, povo contra povo. Sem romantismo, sabemos que muitos deles desejam a captura e destruição da multidão. É real, os corpos foram treinados para isso até o ponto de isto ser uma verdade naqueles corpos. Mas é justo por ser verdade que devemos entorta-los, não para seu esfacelamento físico, mas sim para que possa cessar imediatamente a realidade causadora do masoquismo estatal que tem sua força maior neste corpo fechado: a corporação da PM. No estado atual das coisas não podemos esquecer que a PM é uma maquina-da-ordem com garras próprias. Não é ‘simplesmente’ terrorismo de estado, e sim uma força com diversos interesses internos muitas vezes compatíveis com o estado. Não se trata, em hipótese nenhuma, de inocentar quem quer que seja, mas de tentar chegar na complexidade de forças que tentam destruir ou usar em benefício próprio a revolta popular. A PMERJ tem uma composição complexa, e mesmo a formação diferente de uma parte de novos agentes para atuar nas UPPs não foi suficiente para aplacar a máquina sádica surgida de dentro dela nos últimos anos - máquina que pode ser ‘vista’ na atuação das milícias em diversas comunidades do estado. A PMERJ é uma força que atravessa o estado mas que não se confunde necessariamente com seu núcleo executivo. Repito, isso não quer dizer que o Estado não tenha responsabilidade sobre a milícia, isso quer dizer somente que é um tipo de responsabilidade diferente, e acredito que é importante lançar essas diferenças para desenvolvermos a melhor maneira de atuar contra todo este estado de coisas. Houve, numa parte considerável da sociedade, o fortalecimento da cultura militarista e conservadora que se articulou com diversos grupos e soube se aproveitar da precariedade dos pobres. Os programas policiais na tv, o aumento da violência, as propostas para diminuir a violência que em grande medida reforçam o velho caráter racista e classista do capitalismo, enfim, a incapacidade geral em lidar com a diferença. Tudo isto é sinal de como esta força é esguia e complexa e certamente não se aloja só no estado.

Tudo é real no desdobramento dos desejos insurgentes. Não há nada de simbólico em quebrar a vidraça de um banco, e se há discursos que conferem a este ato o estatuto de “violência gratuita”, diremos que se trata justamente de algo gratuito, no sentido de ser, desde sempre, contra a racionalidade programática do capitalismo. Aqui, a noção de ‘simbólico’ aparece como uma falsa diferença entre a prática e o conteúdo. Quebrar uma vidraça é real, é ação de uma maquina que ultrapassa o maniqueísmo dos comportamentos permitidos ou proibidos. Por um lado, produzindo uma máquina-saque-quebra-engrenagem, pois conseguiu fazer falar quem por tanto tempo foi explorada pelas lojas vandalizadas, destruindo um acordo implícito que sempre deixou claro que certos lugares são impenetráveis, mesmo sendo ‘abertos’. Por outro lado criando uma máquina-foto das cenas do vandalismo, que despertou ódio racista e de classe, moralismo cristão e ao mesmo tempo um produto revolucionário em si mesmo ao funcionar como imagem real de algo devastado e reapropriado pela multidão.

O moralismo cristão se mostrou contra os manifestantes menos quando eles saquearam as lojas do que quando souberam que boa parte do que foi retirado das lojas estava sendo usado pelos próprios manifestantes. A pregação do desinteresse aparece aí como mais um limite interno no corpo capitalista, prevendo até onde podemos nos insurgir, mostrando todo seu conservadorismo na tentativa de normatizar o desejo dos insurgentes. Nesse sentido é importante lembrar que o governo neo-liberal existe para regular os lucros obtidos com os corpos dóceis ou não dóceis, ou seja, mesmo certa rebeldia pode ser devidamente transformada em algum tipo de lucro econômico ou lucro de conteúdo para a melhor gestão. Além disso, podemos dizer que esta postura se serve da mesma racionalidade que forja certos programa onde as desigualdades devem ser aceitas e harmonizadas. Programas sociais são formulados e modulados contra ou a favor dos paradigmas neo-liberais. O consumo e sua regulamentação tem um papel decisivo nesta harmonia dos diferentes. Existem programas que interferem diretamente na distribuição real de renda para consumo e para criar condições materiais de sobrevivência e autonomia dos grupos assistidos, e existem programas sociais que só permitem e desejam a sobrevivência destes grupos com dois intuitos. De um lado, uma política de constante formação onde estes grupos são encaixados para servir de mão-de-obra de reserva em um campo específico do mercado de trabalho. De outro lado, há o objetivo de fortalecer a dependência destes grupos em relação a esta racionalidade. Por isso podemos ver nessa crítica que, por pregar o desinteresse, chamo de moralista e cristã, uma forma de governar que ultrapassa o Estado onde a caridade, a filantropia e certa assistência social estatal tem um papel fundamental na hora de articular as sujeições.

As últimas manifestações foram marcadas por questões recorrentes no Rio, mas que nunca haviam conseguido antes tamanha repercussão popular. A chacina de moradores na favela da Maré e o desaparecimento de um morador da Rocinha foram os dois acontecimentos que demonstraram a pior face do capitalismo contemporâneo. Estes acontecimentos não são exceções em nenhuma medida ou forma: são ações banais da polícia racista que foi formulado na nossa sociedade. O capitalismo é a organização social agônica por excelência, ao mesmo tempo em que se expande, limita da forma mais violenta, identifica, regulamenta, e este limite/regulamentação é traçado desde fora, pela força abstrata do capital que produz e procura gerir subjetividades da maneira que lhe convêm, articulados com os devidos e diversos lucros. No capitalismo contemporâneo, não se trata de expandir lucros a qualquer custo, não se trata simplesmente de aumento do acúmulo de capital-moeda, mas sim de gerir instituições e multiplicidades afim de garantir um lucro maior em relação a uma espécie de código que permitirá a permanência da gestão e da manutenção do bom funcionamento do mercado. Alguns exemplos são 1- a transformação do desemprego em coeficiente econômico, 2- o maior cuidado com a estabilidade dos preços do que com a expansão da produção, acarretando na ‘manutenção do poder aquisitivo’, 3- as diversas intervenções na educação (privatização), legislação (flexibilização de regras que beneficiavam os trabalhadores), sindicatos (imprimir uma racionalidade que privilegie a constante formação e os acordos reformistas). Produzindo nestas instituições uma racionalidade que, disseminada por toda a sociedade, estrutura formas de subjetividade-empresa, onde cada corpo deve ser gerido para o melhor funcionamento do mercado, para a melhor forma de atuar sem comprometer o andamento da política econômica.

Essa forma de gerir se espalha e também sabe agir em cooperação, se trata de uma governo múltiplo que sabe trabalhar além do Estado. O que há de novo por parte da resistência é a forte articulação dentro da multidão entre os grupos e seus diversos desejos e sofrimentos. O recorrente encontro entre moradores de comunidades, juventude precarizada, movimentos políticos abertos, anarquistas e tantos outros inomináveis dá a esta multidão cada vez mais potencia e legitimidade para produzir uma radical mudança nas condições materiais em que nos encontramos. O que fazemos é forçar a barra (ou ‘quebrar a barra’, como diz a música Forró no escuro de Luiz Gonzaga) para sairmos de um mundo de probabilidades dadas, que sabem se rearticular e reaparecer com novas roupagens, com o qual deveríamos resignadamente nos entreter para violentamente entrarmos no processo de produção e devoração de mundos e das possibilidades imprevisíveis, ou seja, estamos diferindo enquanto ferimos o que não quer nos deixar diferir.

Este momento de abertura e suspensão da ordem estabelecida, onde não cansamos de intensificar nosso desejo constituinte, cria uma estética onde a beleza das ruas e sua violência real e estonteante quebra vidraças e consensos, não deixa o Papa passar ileso, faz a mídia de massa voltar atrás (ainda que saibamos que eles sempre vão lagar um veneno na volta), despenca a popularidade de um governador que comanda o Estado sem nenhum diálogo real com a população, deixa este governo nu ao demonstrar os passos e quebras de limites tão normais quanto obscuros no nosso capitalismo (como no caso já citado de obrigar as empresas de telefonia a ceder dados sigilosos da população, ou nas ações de sua polícia nas ruas e comunidades), e por fim cria uma quantidade incontável de novas subjetividades cooperantes, atentas e autônomas que violentam a privatização da cidade e produz, produz cada vez mais desejo de continuar nas ruas criando e recriando o que é de todos.

Por Ricardo Gomes

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