PICICA: "Como acabará
essa história? Há uma questão que, diante de um discurso como o
de Agamben, novamente se abre: poderá talvez a forma – ou seja, a ação
ou a instituição – salvar-se da destruição de todo conteúdo necessário?
Quem, a esse respeito, insiste em tons e negações anárquicas é tão
irritante quanto quem pensa que a continuidade da instituição ou a
anulação de toda ação negativa representam a condição de um radical
passo à frente. O provável, ao invés, contra esses extremismos, é que,
como em outras épocas revolucionárias, anarquismo e comunismo, em formas
novas, cada vez mais, nas lutas que atravessam o nosso século, estejam
se reaproximando. Em todo caso, a única coisa certa é que,
spinozianamente, “o homem guiado pela razão é mais livre no Estado, onde
vive segundo um decreto conjunto, do que na solidão, onde obedece
apenas a si mesmo”."
O sacro dilema do inoperoso: a propósito de “Opus Dei” de Giorgio Agamben
Detalhe de pintura a óleo de Antonello da Messina, Vierge de l’Annonciation (1475), utilizada na capa da edição da Boitempo para o livro Opus Dei, de Giorgio Agamben
Por Antonio Negri.
Com este livro, Opus Dei: arqueologia do ofício, parece concluir-se o caminho que Agamben empreendeu com Homo sacer.
Um belo trecho de estrada, desde o início dos anos 1990, duas décadas.
Uma arqueologia da ontologia conduzida (com um rigor que nem mesmo o
jogo bizarro e enganoso dos numerosinhos postos
para fingir uma ordem para diversos estágios da pesquisa conseguiu
tornar opaco) – conduzida, portanto, até uma reabertura do problema do Sein (ser). Uma escavação que nem Heidegger (na
opinião do autor que se reivindica como jovem aluno do filósofo alemão)
havia conseguido – porque aqui a ontologia é liberta de todo vestígio
de “operatividade” de toda ilusão de que ela possa se ligar à vontade e
ao comando. O que resta disso? “O problema da filosofia que vem é aquele
de pensar uma ontologia para além da operatividade e do comando e uma
ética e uma política inteiramente liberadas dos conceitos de dever e
vontade.” (p.132)
A
demonstração de que a ontologia criticada por Heidegger ainda é, no
fundo, uma teoria da operatividade e da vontade, é uma ideia
indubitavelmente verdadeira. Schürmann já a havia desenvolvido quando
criticara o Sein como a própria ideia de “arché” e, portanto,
como indistinção de início e de comando. Seguir o desenvolvimento e a
organização sucessiva dessa ontologia da operatividade – que dos
neoplatônicos aos Padres da Igreja, dos filósofos latinos a Kant,
de Tomás e Heidegger põe uma ideia do ser completamente assimilada à da
vontade/comando – é tarefa de Agamben, aqui resolvida com grande
maestria.
Aristóteles,
em primeiro lugar. Na sua teoria da virtude como hábito, ele poderia
ter arrancado o ser de toda pulsão aporética com relação à virtude e,
assim, libertar-se de toda operatividade valorífica: ele não faz isso,
apesar de ser aquele que, nas origens da metafísica, havia concebido a
virtude como relação com a privação e como determinação ontológica
inoperante. Mas daí em diante – segundo Agamben –, as coisas vão de mal a
pior.
No
cristianismo (mais uma vez a imersão na relação entre neoplatonismo e
patrística solicita Agamben no seu proceder), ação e vontade começam a
servir de padrões. Deixemos aos medievalistas o julgamento sobre a
correção da análise agambeniana: a nós, basta seguir o seu fio que
mostra uma consistência indubitável. Agora, a aporia aristotélica como
se definia na alternativa de conectar (ou não conectar) o hábito e a
virtude, o ser e o dever, a passividade e a atividade, desaparece na
Escolástica.
O hábito
crítico, ao contrário, é ordenado constitutivamente na ação, e a virtude
não consiste mais no ser, mas sim no agir – e é somente através da ação
que o homem se assemelha a Deus. Assim, em Tomás: “É essa ordenação
constitutiva do hábito à ação que a teoria das virtudes desenvolve e
impele ao extremo” (p.104). Daí em diante, a história da metafísica,
despojada da arqueologia crítica, mostra uma bela continuidade e revela
uma espécie de ânsia perversa (segundo Agamben) a desenvolver e
aprofundar aquele princípio operativo da ética e aquele conceito de
virtude como obrigação e dever que a teologia medieval lhe havia
concedido como herança.
A “dívida
infinita” em que consiste, segundo os filósofos da Segunda Escolástica, o
dever religioso foi assim definitivamente se implantando nas
metafísicas da modernidade. Com Kant, aparece pela primeira vez a ideia
de uma tarefa e de um dever infinitos, inalcançáveis, mas nem por isso
menos necessários. Em uma passagem exemplar, Agamben resume: “Aqui se vê
com clareza que a ideia de um ‘dever-ser’ não é somente ética nem
somente ontológica: ela liga, antes, aporeticamente ser e praxe na
estrutura musical de uma fuga, na qual o agir excede o ser não apenas
porque lhe dita sempre novos preceitos, mas também e antes de tudo
porque o ser mesmo não tem outro conteúdo além de um puro débito.”
(p.112)
Nas páginas
seguintes, Agamben insistirá polemicamente na interrogação da ideia da
lei moral, no seu aprofundamento da forma da autoconstrição e até do
prazer masoquista na lei. “A substituição do ‘nome glorioso de
ontologia’ por aquele de ‘filosofia transcendental’ significa,
justamente, que uma ontologia do dever-ser já tomou o lugar da ontologia
do ser.” (p.125)
Uma
discussão e uma conclusão totalmente heideggeriana, se diria. E, no
entanto, percebe-se logo, essa referência decepciona Agamben.
Mesmo Heidegger, “cuja ontologia é mais solidária do que se crê com o
paradigma da operatividade que ele pretende criticar.” Ficamos
estupefatos com essa afirmação. Heidegger não havia, portanto, ido longe
o suficiente em sua destruição da ontologia da modernidade? Ele já não
havia despojado o bastante o Sein daquilo que lhe era possível atribuir de humano?
Não –
insiste Agamben –, há um ponto em que Heidegger cede à tentação de uma
ontologia operativa: são a teoria da técnica, a crítica do Gesell que descobrem essa irresolução. “Não
se compreende a essência metafísica da técnica se entendida somente na
forma da produção. Ela é, entretanto e antes de tudo, governo e oikonomia,
que, em seu desenlace extremo, podem até colocar provisoriamente entre
parênteses a produção causal em nome de formas mais refinadas e difusas
de gestão dos homens e das coisas.” (p.69) Auschwitz ensina! Já em O reino e a glória, com um pouco de atenção, se podia ler essa conclusão.
Aqui me nasce uma suspeita. Isto é, que esse livro, Opus Dei, embora resuma e desenvolva, como já se disse, as análises de O reino e a glória, na
realidade, não é apenas o completamento daquele filão arqueológico de
pensamento e de trabalho agambenianos. Esse livro marca, ao invés, a
separação definitiva de Agamben e Heidegger: a escolha ontológica se
eleva sobre a qualidade arqueológica das análises, e o choque se dá em
nível fundamental. Heidegger é aqui acusado de ter conseguido apenas uma
solução provisória para as aporias do ser e do dever-ser (ou seja, da
operatividade): indeterminação mais do que separação, mais do que
escolha de um outro terreno ontológico. Devo admitir que senti uma certa
satisfação relevando-o. Mas foi curta. Qual é, de fato, o Sein ulteriormente
inescrutável que Agamben agora, mesmo contra Heidegger, nos propõe? Já
antes, em 1990, antes de se aventurar no longo episódio do Homo Sacer, em La Comunità che viene [A
comunidade que vem], Agamben havia se afastado de Heidegger: havia
então cedido a uma solicitação benjaminiana, quase marxista, na promoção
de um desafio ao sentido humanista do ser. Agora, certamente não é
nesse sentido que Agamben procede. Ele se move, ao contrário, contra
todo humanismo, contra toda possibilidade de ação, contra toda esperança
de revolução.
Mas
como Agamben chegou a aí, a esse niilismo radicalizado, no qual,
agitando-se, se compraz por ter superado (ou levado a termo) o projeto
de Heidegger? Ele chega através de um longo processo que se articula em
duas direções: uma de crítica propriamente político-jurídica, a outra
arqueológica (uma escavação teológico-política). Carl Schmitt está no
centro desse caminho: ele guia as duas direções, aquela que leva à
qualificação do poder como exceção, e portanto como força e destino,
instrumentação absoluta e sem qualidade de toda técnica, e sadismo da
finalidade; de outro lado, aquela que leva à qualificação do poder como
ilusão teológica, ou seja, impotência, isto é, a impossível confiança na
efetualidade, portanto: incitamento à inoperatividade, portanto,
denúncia da frustração necessária da vontade, do masoquismo do dever.
As duas coisas andam juntas. É quase impossível, recuperada a atualidade dos conceitos schmittianos do “Estado de exceção”
e do “teológico-político”, compreender se eles representam o maior
perigo ou, ao invés, se se trata simplesmente de uma abertura à sua
verdade. A metafísica e a diagnóstica política se rendem à indistinção.
Mas isso seria irrelevante, talvez, se nessa indistinção não fosse
afogada toda possível resistência. Voltemos às duas linhas
identificadas: todo o percurso que o Homo sacer segue se desenvolve nesse duplo trilho. A segunda linha é sumarizada por O reino e a glória.
Insistimos: essa segunda linha também é movida pela Teologia política de Carl
Schmitt e pelo confronto com a ontologia de Heidegger. Dizemos isso
para evitar que se confunda a arqueologia de Agamben com a de Foucault.
Em Agamben, falta a história, aquela história que em Foucault, não é
arqueologia da modernidade, mas também genealogia ativa do presente, do
seu dar-se, assim como do seu desfazer-se, do seu ser assim como do seu
devir. A história, para Agamben, não existe. Melhor, é no máximo
história do direito, que é justamente o único lugar onde o filósofo pode
ser gramático e analista das gramáticas do comando. Mas, certamente,
também o lugar onde biopolítica e genealogia podem se apresentar apenas
de maneira linear – como destino, justamente. Porque aqui não aparece
nem a sombra da subjetividade, da produção – e, ao invés, parece que
esta última é totalmente submissa ao bloco do fazer, da técnica, do agir
e, sobretudo, da resistência.
Não é de se estranhar, portanto, em Opus Dei,
as exemplificações jurídicas que Agamben apresenta como prova
definitiva das suas teses. A absolutização do dever no direito seria
introduzida por Pufendorf mais do que por Hobbes (e esse processo se
conclui com Jean Domat). Pode ser. Uma distante história do século XVII,
portanto, que marcha simultaneamente com o nascimento e o
desenvolvimento da Segunda Escolástica (quanto lhe deve o próprio
Heidegger!) e da definitiva estabilização de uma metafísica da
operosidade, da virtude eficaz. Mas especialmente importante porque,
como vimos, é Kant que retoma esse motivo e, depois de Kant, Kelsen o absolutiza na figura fundamental do dever jurídico, do Sollen.
Lembre-se: não é tanto a conclusão kelseniana que afirma a relação
entre direito e comando como necessária que é importante aqui; a
importância está no fato de que ela retoma – a mil quilômetros de
distância da sua primeira afirmação, embora viva em toda a “ideologia
europeia” – aquele nexo interno à liturgia que vai da operatividade
econômica ao ser divino, caindo homogeneamente através das deduções
jurídicas, até a necessidade fundante do Sollen: tudo isso nada
mais representa do que o comando inescrutável da divindade. Assim, de
Kelsen, fez-se o igual de Schmitt e, como se devia mostrar, as duas
linhas abertas por Homo Sacer se recompõem: de um lado, a crítica da exceção e, de outro, a crítica do Sollen, filtrada na oekonomia cristã,
definitivamente se unificam. Mas se essa redução pode ser – em linhas
muito gerais e em um terreno que já não é mais nem jurídico nem político
– aceita; se é verdade que a prática de governo fundada no direito de
exceção e na pretensão da eficácia econômica substituíram toda forma
constitucional de governo; se, como lembrava Benjamin há tanto tempo, “o
que já é efetivo é o estado de exceção em que vivemos e que não
saberemos mais distinguir da regra”: bem, dito isso, o que, segundo
Agamben, pode nos libertar? (Desde que a pergunta ainda faça sentido!)
Chegamos
assim ao término de um caminho complexo. É preciso que nos libertemos do
conceito e da potência de vontade: é assim que Agamben começa a
responder à pergunta. Devemos nos libertar da vontade que quer ser
instituição, que quer ser eficiência e pontualidade. As razões, as
conhecemos. Na filosofia grega da idade clássica, o conceito de vontade
não tem significado ontológico; essa deturpação ontológica é introduzida
pelo cristianismo, forçando elementos embrionalmente presentes em
Aristóteles. Assim, o dever é introduzido na ética para fundamentar o
comando. Assim, a ideia de uma vontade é elaborada para explicar a
passagem da potência ao ato. Desse modo, toda a filosofia ocidental é
posta dentro de um campo de insolúveis aporias que triunfa na
modernidade plena, com a redefinição do mundo como produto de tecnologia
e de indústria (o que é mais evidente do que a realização, do que o
devir eficaz do poder na realidade, na atualidade – o que mais do que
esse horizonte?). Novamente, se impõe a questão: como sair disso? Como
reconquistar um ser sem efetualidade? Que belo enigma Agamben nos deu!
Provavelmente
haveria um caminho que Agamben, nesse ponto, ainda poderia percorrer. É
o do spinozismo, isto é, um caminho em que o poder se organiza
imediatamente como dispositivo de ação, onde violência e prazer se
determinam nas instituições da multidão, e a capacidade constituinte se
torna esforço para construir, na história, liberdade, justiça e comum.
Agamben percebe essa saída, perfeitamente ateia. Ele
a capta, de fato, na insultante rejeição do ateísmo de Spinoza que, em
um momento crítico da modernidade, Pufendorf e Leibniz declaram. Mas o
ser que Agamben nos apresenta é, por enquanto, de tal forma obscuro e
plano, a imanência de tal modo indistinta, o ateísmo tão pouco
materialista, o niilismo de tal forma triste, que Spinoza realmente não
pode estar em jogo – mesmo considerando, ele, como superstição toda
ideologia do Estado que não fosse produto da multidão e, como fundamento
intransitivo de liberdade, o corpo (os corpos da multidão). Nem
Spinoza, por outro lado, espera que as formas de vida do Ocidente
cheguem à sua consumação histórica (recusando-se, enquanto isso, a agir,
porque a vontade não morderia a efetualidade). Ele sabe, ao invés,
responder à pergunta sobre o agir, sobre a esperança, sobre o futuro.
O que é o
Iluminismo? Essa é a pergunta que atravessa, com a filosofia de Spinoza,
as de Maquiavel e de Marx – e que, na atualidade, foi gloriosamente
retomada por Foucault. Contra o nazismo ontológico de Heidegger. No
final, o único lugar do longo caminho percorrido por Agamben, no qual o
limite ontológico de potência poderia ser alcançado, é quando,
deslocando a ênfase das formas linguísticas do ser histórico, a forma de
vida se destaca não do direito em abstrato, mas sim daquele direito
historicamente dado (ou seja, do direito de propriedade), não do comando
em geral, mas sim daquele comando que é da produção capitalista e do
seu estado. Trabalhar para a dissolução do direito de propriedade e da
lei do capitalismo é o único niilismo operativo que as pessoas virtuosas
proclamam e agem. Mas mesmo essa hipótese Agamben descarta –
recentemente, no seu Altíssima pobreza: regras monásticas e forma de vida [Homo Sacer, IV, 1].
Como acabará
essa história? Há uma questão que, diante de um discurso como o
de Agamben, novamente se abre: poderá talvez a forma – ou seja, a ação
ou a instituição – salvar-se da destruição de todo conteúdo necessário?
Quem, a esse respeito, insiste em tons e negações anárquicas é tão
irritante quanto quem pensa que a continuidade da instituição ou a
anulação de toda ação negativa representam a condição de um radical
passo à frente. O provável, ao invés, contra esses extremismos, é que,
como em outras épocas revolucionárias, anarquismo e comunismo, em formas
novas, cada vez mais, nas lutas que atravessam o nosso século, estejam
se reaproximando. Em todo caso, a única coisa certa é que,
spinozianamente, “o homem guiado pela razão é mais livre no Estado, onde
vive segundo um decreto conjunto, do que na solidão, onde obedece
apenas a si mesmo”.
* Publicado originalmente no jornal Il Manifesto, em 24.02.2012.
A tradução é de Moisés Sbardelotto, IHU.
A tradução é de Moisés Sbardelotto, IHU.
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A Boitempo acaba de lançar Opus Dei: arqueologia do ofício [Homo Sacer, II, 5], de Giorgio Agamben, pela coleção “Estado de sítio“. O livro já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso nas livrarias Travessa, Amazon, Google Play e Gato Sabido.
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Estado de exceção [Homo Sacer, II, 1] * PDF (Travessa | Google)
O reino e a glória [Homo Sacer, II, 2] * ePub (Amazon | Travessa)
Opus Dei [Homo Sacer, II, 5] * epub (Amazon | Travessa | Google)
O que resta de Auschwitz [Homo Sacer, III] * PDF (Travessa | Google)
Profanações * PDF (Travessa | Google)
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Antonio Negri,
ou “Toni” Negri, nasceu em Pádua, na Itália. Foi integrante, entre
outros, do Partido Socialista Italiano, do Autonomia Operaia, do Potere
Operaio e lecionou na Universidade de Pádua, na Universidade de Paris
VIII e no Collège International de Philosophie. É autor, entre outros
livros, de A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza, Império e Trabalho de dionísio: uma crítica da forma-estado, os dois últimos escritos em conjunto com Michael Hardt.
Fonte: Blog da Boitempo
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