julho 26, 2013

"As muitas cabeças da hidra: a revolta brasileira no contexto global", por Silvio Pedrosa

PICICA: "Quando se quer ‘mais dinheiro para saúde e educação’ não se está propugnando uma intervenção governamental pela melhora dos serviços públicos que interferem, diretamente, na dinâmica reiterada de exclusão social no Brasil? Quando a multidão pede a desmilitarização da polícia, a partir, sobretudo, da própria experiência de confronto contra as forças repressivas, mas não só — vide os agenciamentos com a Maré, a Rocinha e o Vidigal –, não se está problematizando a máquina assassina de repressão e controle das classes subalternas, de negros e pobres? Quando se questiona as passagens dos transportes públicos, demandando a abertura de suas contas e atacando diretamente o seu empresariado, inclusive nas suas articulações privatistas dentro do Estado, não se está lutando por mobilidade urbana mais barata, por mais direito à cidade para quem é dela excluído pelo desenho elitista do traçado urbano brasileiro (que concentra equipamentos culturais e os próprios serviços públicos de forma escalonada em consonância com as hierarquias sociais)? Multidão de ‘classe média’!?!?" 


As muitas cabeças da hidra: a revolta brasileira no contexto global


Contra um inimigo global, uma multidão comum.
Contra um inimigo global, uma multidão comum.
A hidra tem muitas cabeças, espalhadas pelo mundo, sempre a se renovar, mas o corpo é o mesmo e se articula de forma comum contra um inimigo global.

Ainda no calor das primeiras movimentações de monta da multidão brasileira, logo após o 17J e a batalha da ALERJ, esse blog publicou algumas notas a respeito do movimento dos movimentos que se irradiava pelo Brasil. Além de posteriormente ter arriscado uma tentativa de interpretação mais global da situação, procurando enxergar o entrecruzamento das temporalidades que se articulavam na irrupção indignada dos manifestantes nas ruas.


O que proporciona e impulsiona o retorno ao tema (para além do fato de que o ‘tema’ não se foi, a multidão não tendo adormecido — como querem alguns analistas que, na esquerda e na direita, parecem amedrontados com a força das ruas –, mas tendo vindo a se comportar como verdadeiras cabeças de uma hidra que, após serem cortadas pela repressão policial, retornavam em outros lugares, prontas para novo confronto), além de alguns pontos que ficaram por dizer (ou que sequer haviam sido detectados pelo autor naquelas alturas), é a reiterada insistência com que algumas leituras insistem em desqualificar aprioristicamente as manifestações, bem como o fato de outras delas se assentarem em alguns pontos de vista que consideramos errôneos ou contraproducentes.

I. Determinação classista (e moralista) dos movimentos: uma das grandes chaves de leitura da multidão brasileira no campo do governismo (incluindo-se aí boa parte da blogosfera progressista – com algumas ressalvas) é a desqualificação classista do movimento: seria uma multidão de classe média, incapaz de fazer avançar a agenda política brasileira (quando não o ovo de serpente de um golpe ditatorial contra o atual governo) e cuja (suposta) circunscrição social do seu lugar de fala impediria qualquer desencadeamento de um processo novo de redistribuição de riqueza.

O que se poderia chamar de hipótese governista tem diversos problemas (como a convicção com a qual identifica todo o processo multitudinário a uma classe social específica, quando se sabe que as formas de auto-organização da multidão, tal e qual todos os recentes — e nem tão recentes, basta lembrar Seattle e Gênova na longínqua passagem do milênio — simplesmente descentram socialmente as mobilizações), mas vale notar que o principal deles é, de fato, uma miopia assombrosa para com as resultantes do próprio governo que apoiam. Os dez anos de lulismo nunca vem à baila nas análises governistas, não pelo menos para serem contados como possível determinação dos horizontes que permitiram os atuais protestos.

Ora, o rearranjo social que o lulismo (a partir do desencadeamento de processos de mobilidade social e a potencialização desse processo com outras iniciativas — como as cotas e o Pro-Uni — democratizantes) produziu é não apenas contexto da multidão brasileira, é uma de suas mais importantes determinações, além de, claramente, ter duas ou três coisas a dizer sobre a composição social do movimento: em primeiro lugar, por ter se agenciado a movimentos de ascensão da renda e permitido que mais e mais famílias e pessoas ingressassem na arena da política brasileira com voz (e não só com o voto), e, em segundo lugar, por ter redesenhado as hierarquias sociais brasileiras (no contraponto das determinações antagônicas do capitalismo global), bem como seus horizontes de desejo: os filhos da classe média, assim como os filhos das classes subalternas ascendentes, são, ao mesmo tempo e diferentemente, precários: enquanto os primeiros não conseguem vislumbrar um horizonte onde terão rendimentos e um padrão de vida semelhante ao de seus pais (tanto em absoluto, mas também e, principalmente, relativamente à massa de pobres e excluídos), os últimos, após ascenderam em termos de renda salarial, começam a vislumbrar um porvir diferente do contexto em que cresceram, mas que depende da sua batalha cotidiana ao trabalhar e estudar. Em ambos os casos, é a subsunção real do trabalho no capital, a mercantilização do que antes eram direitos, em suma, o atual contexto biopolítico — processos inscritos na atual ordem do capitalismo neoliberal e que, no Brasil, se modulam especificamente pela ascensão, não ‘programada’, dos pobres — que, de certa forma, (associados aos gritos decorrentes da crise da representação, no qual nos deteremos na segunda nota) os impulsiona às ruas.

Nos dois casos apresenta-se um futuro diferente, mas uma mesma situação de precarização (um fenômeno diacrônico, por certo): enquanto os jovens criados no seio da velha classe média temem pelo próprio futuro, a partir das expectativas que nutriram ao longo da vida, os jovens das classes subalternas se rebelam ante o fechamento das brechas e aberturas por meio das quais o lulismo fazia passar iniciativas democratizantes da sociedade brasileira — bem como pela situação de precariedade geral inscrita nas suas próprias vidas desde sempre (eles querem mais) — e que, desde a ascensão de Dilma, combinada ao recrudescimento da crise mundial, cessaram.

Quando se quer ‘mais dinheiro para saúde e educação’ não se está propugnando uma intervenção governamental pela melhora dos serviços públicos que interferem, diretamente, na dinâmica reiterada de exclusão social no Brasil? Quando a multidão pede a desmilitarização da polícia, a partir, sobretudo, da própria experiência de confronto contra as forças repressivas, mas não só — vide os agenciamentos com a Maré, a Rocinha e o Vidigal –, não se está problematizando a máquina assassina de repressão e controle das classes subalternas, de negros e pobres? Quando se questiona as passagens dos transportes públicos, demandando a abertura de suas contas e atacando diretamente o seu empresariado, inclusive nas suas articulações privatistas dentro do Estado, não se está lutando por mobilidade urbana mais barata, por mais direito à cidade para quem é dela excluído pelo desenho elitista do traçado urbano brasileiro (que concentra equipamentos culturais e os próprios serviços públicos de forma escalonada em consonância com as hierarquias sociais)? Multidão de ‘classe média’!?!?

II. (Anti-)genealogia dos protestos: conexamente, a leitura das manifestações tem se deixado dominar, por vezes, por uma leitura genealógica dos movimentos de massa no Brasil. Espelha-se, assim, as atuais manifestações em outros processos semelhantes, ao longo da história do país, na busca por uma receita de ação frente ao que acontece no Brasil contemporâneo. Pior ainda, o passado passa a oprimir, inexoravelmente, a ação dos vivos, determinando (tal qual a composição social de classe média que acabamos de rejeitar) todo o horizonte das atuais mobilizações.

O provérbio árabe, segundo o qual os homens parecem mais com seu tempo do que com seus pais, nos parece mais sensato e aponta para um caráter extremamente problemático desse tipo de análise: sua contenção ao universo do Estado-nação. Justamente quando as convulsões sociais se estendem e articulam globalmente (com movimentos de multidões em diversas partes do mundo repetidamente se mobilizando: Ocuppy Wall Street, Indignados, Primavera Árabe, resistência anti-Troika na Grécia, entre outros), deixar a análise restrita a esse universo é perder completamente a capacidade de enxergar os cruzamentos da conjuntura planetária, deixando-se levar pelas travas daquilo que Deleuze e Guattari denominaram como ‘pensamento arborescente’ e seu ‘modelo representativo’ (justamente aquilo que é filosoficamente rejeitado pela multidão).

A esse tipo de pensamento, tal e qual os dois pensadores franceses, devemos opor um pensamento rizomático, capaz de enxergar as linhas que ligam a multiplicidade dos vários momentos e processos de rebelião política e social atuais. Nesse ponto específico é necessário que a leitura do movimento dos movimentos brasileiro no pano de fundo do contexto global atual seja acompanhada de uma leitura do lulismo no mesmo pano de fundo, o que a análise ancorada na ideia de Estado-nação é completamente incapaz de fazer.

É preciso notar que o lulismo sob Dilma enveredou pelo fechamento das brechas democratizantes, tanto pela dinâmica interna da coalizão, quanto pela consistência da crise econômica e financeira mundial — que tornou o preço das negociações inter-institucionais bastante mais elevado, o consenso governista sendo o de que importaria mais a manutenção da situação macroeconômica do país, com a manutenção dos níveis de emprego, dos programas sociais e da valorização da renda salarial. O pemedebismo que se insinuou desde então não é apenas um fenômeno nacional, mas, de fato, uma variante dos processos de fechamento dos canais de expressão política da vasta maioria das democracias parlamentares pelo mundo nos tempos do neoliberalismo maduro, modulação política e institucional da crise da representação que caracteriza o nosso tempo.

Desse modo, se apercebendo das várias temporalidades complexas e interconectadas que instauram o instante (kairòs) em que se pode pensar e agir no nosso tempo histórico, é que se pode ter uma compreensão menos moralista e determinista de fenômenos tão complexos quanto os recentes levantes de junho (e que no Rio de Janeiro, por exemplo, ganharam consistência temporal). Esperar que o mundo vivo e potente se adapte às teorias, descrições e desejos individuais, por outro lado, é a receita mais acertada para que sejamos engolfados no turbilhão, pregando sermões contra terremotos.

Fonte: O lado esquerdo do possível

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