Bruno Cava investe contra o cinismo dos argumentos contrários ao direito das mulheres ao seu corpo
PICICA: "O argumento contra o aborto, de que a lei protege a vida, é
tão cínico e não merecedor de respeito, quanto dizer que a escravidão
protegia os negros da desocupação, a catequese indígena os salvava da
vadiagem, ou então que a ditadura existiu para defender a democracia. É o
velho cinismo cordial à brasileira, na base de uma sociedade patriarcal
e racista. Se fossem homens brancos os destinatários dessa lei, o
aborto sequer entraria em discussão. Como assim, o estado violar o MEU
direito individual ao corpo? Mas quando são mulheres, ou negros, ou
indígenas, aí o homem branco atrás da máscara do estado pode interferir,
com a maior cara lavada."
Forjado
no eixo atlântico com base no tráfico de mulheres e homens, na guerra
racial e na espoliação latifundiária da terra, o estado brasileiro foi o
único do continente cuja independência levou a um império dinástico;
foi também o último a aceitar a liberdade dos escravos e reconhecer a
existência de populações indígenas; e no século 20 gozou da mais longa
ditadura, com exceção do Paraguai (um país invadido e devastado pelo
estado brasileiro). Hoje, o Brasil vai seguindo a tradição, ao manter a
proibição e criminalização do aborto, enquanto outros países reconhecem e
valorizam os direitos da mulher. Os números reafirmam a violência de
dimensões continentais: 3 milhões de abortos/ano sem o amparo do sistema
de saúde, 200 mil mulheres/ano com úteros furados, infecções graves,
sequelas diversas, um número desconhecido de mortes silenciosas, no
isolamento íntimo de não só suportar a dor física e emocional, mas
também moral. A maioria pobre, negra, lembrada pelo estado apenas nas
proibições. O Art. 124 segue cláusula pétrea do código penal, enquanto a
bancada da família brasileira brinca de papai-e-mamãe no congresso.
Somente no ano passado, décimo segundo do século 21, o judiciário
brasileiro autorizou o aborto de fetos anencéfalos. Precisou um
pronunciamento da corte suprema do estado para a mulher poder não levar
adiante a gravidez de um feto sem cérebro. E ainda houve dois votos
contrários! O argumento contra o aborto, de que a lei protege a vida, é
tão cínico e não merecedor de respeito, quanto dizer que a escravidão
protegia os negros da desocupação, a catequese indígena os salvava da
vadiagem, ou então que a ditadura existiu para defender a democracia. É o
velho cinismo cordial à brasileira, na base de uma sociedade patriarcal
e racista. Se fossem homens brancos os destinatários dessa lei, o
aborto sequer entraria em discussão. Como assim, o estado violar o MEU
direito individual ao corpo? Mas quando são mulheres, ou negros, ou
indígenas, aí o homem branco atrás da máscara do estado pode interferir,
com a maior cara lavada. Nem São Tomás atribuía alma ao amontoado de
células, até certo período da gestação. Ah, mas ele não tinha acesso à
ciência moderna. De fato, a mesma que também demonstra a inexistência de
córtex cerebral durante os primeiros meses da gravidez. O argumento é
de fé ou de douta razão, afinal? Ou de imbecilidade e canalhice? E ainda
dizem que as pesquisas de opinião mostram que a maioria da população é
contra a mudança na lei. Eu duvido. Não do resultado, mas da própria
lógica da pesquisa. É como aquelas pessoas que dizem que direitos
humanos só servem para vagabundo, até o dia em que é preso ou abusado.
Pela inércia ou preguiça, você tende a responder a pesquisas que, em
princípio, o melhor é que tudo fique como está. Até o momento em que a
coisa chega até você. Aí você tem de enfrentar a realidade, e implicado
nela forma uma opinião. Eu não conheço mulher que tenha passado pela
situação, ou familiar ou amigo que tenha assistido ao caso, que seja
pela criminalização, pela exclusão do sistema de saúde. E são muitas:
20% das brasileiras, segundo os últimos dados. É muita coisa. É mais do
que a proporção das que admitem terem fumado maconha alguma vez. O
estado brasileiro certamente não representa essas pessoas. Se vamos
esperar por esse estado, o mesmo que estende tapete vermelho para um
papa, vamos esperar sentados. Não foi assim, esperando, que os negros e
indígenas conquistaram direitos, nem que se combateu e venceu a ditadura
militar, com as mobilizações e as diretas-já. As lutas antes: contra e
além do estado. O movimento das mulheres também tem força e tradição no
Brasil, e não por mera concessão arrancou o sufrágio feminino em 1932,
bem antes de outros países.
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