PICICA: "Dinamismo das lutas sociais na região seria contraponto
ao declínio da esquerda europeia e abriria caminho para política dos
“comuns”"
Toni Negri: América Latina deixou de ser periferia
Dinamismo das lutas sociais na região seria contraponto
ao declínio da esquerda europeia e abriria caminho para política dos
“comuns”
A saída de cena da linha de montagem fabril e a ascensão dos grandes salões de telemarketing — enquanto o sistema financeiro termina por se afirmar como o “elemento que unifica o complexo social, de um modo abstrato, porém efetivo” — é o que interessa a Negri, na sua leitura inovadora de Marx, firmemente assentada no imanentismo de Spinoza — que se volta para a defesa do comunismo no horizonte do capitalismo cognitivo e, por tabela, globalizado. Não existem, dentro do sistema negriano, concessões para o sistema do capital como também não há saída que não seja global para um capitalismo globalizado, no qual os Estados-nações estão postos em função do funcionamento do sistema.
Diante do Império capitalista global, é necessário mais do que indignação e velhas táticas, a compreensão do fenômeno e a produção de novas formas de atuação, baseadas na multidão como classe emergente global e na reapropriação da riqueza comum. É essa preocupação que fez de Negri um observador atento, e visitante recorrente, da América Latina: ele enxerga nas experiências dos movimentos sociais do continente, e sua relativa “chegada ao poder” nos últimos anos, fatos dignos de atenção no que concerne à constituição de uma nova práxis revolucionária global, objeto central de sua obra militante.
Lutas como as do novo sindicalismo e dos sem-terra no Brasil, dos movimentos indígenas na América Andina — sobretudo na Bolívia e Peru — e de movimentos democráticos antineoliberais por todo o continente, sua ascensão na forma dos governos Lula, Kirchner, Chávez ou Morales (entre tantos outros) e o consequente atravessamento que passou a existir entre Estado e movimentos animam o pensamento de Negri — em contraste com a constatação da paralisia da esquerda europeia, burocratizada e elitizada.
É certo que o ciclo de mais de uma década desses governos apenas aprofundou certas contradições já existentes nos seus planos iniciais, sobretudo no que toca ao fortalecimento do extrativismo. Como agir diante disso? Quais ganhos e quais projetos merecem mais atenção? Quais ainda merecem atenção? São questões como estas que Negri buscou responder em uma entrevista ao periódico argentino Pagina 12. (Hugo Albuquerque.)
Há alguns anos, você propôs uma hipótese para entender a situação política na América do Sul: disse que havia um atravessamento do Estado por parte dos movimentos sociais. Desta maneira, o poder constituinte dos movimentos podia desenvolver-se, ainda que de modo conflitivo, no interior do poder constituído. Agora fala em estar “dentro e contra” o Estado. Como você lê atualmente esta relação entre potência popular e Estado?
Eu penso que quando se diz “dentro e contra”, se faz uma
afirmação metodológica que sempre deve ser confrontada com as
determinações do concreto. Não é que “dentro e contra” signifique sempre
o mesmo, mas sim que se trata de adotar uma perspectiva da qual se
enxergam as coisas. Tenho a impressão de que tanto do ponto de vista da
gestão econômica como da política houve, nos últimos anos, um relativo
declive a partir da situação inicial formada na última década, depois de
2001, quando havia um quadro efetivamente revolucionário. Houve um
primeiro deslocamento do ponto de vista econômico a partir do governo de
Néstor Kirchner: a partir de uma recuperação produtiva, que tomou como
base a produção social em um sentido amplo, se produziu uma confrontação
com os ditadores dos mercados, sustentada pela experiência de
resistência do período anterior. Aquele primeiro momento foi
efetivamente muito importante, na medida em que ganharam força os
movimentos piqueteiros, as ocupações de fábrica, a organização das
vizinhanças como base de ampliação do terreno da produção social, sem
fechar essas experiências em uma interpretação puramente ideológica.
Este elemento novo da produtividade social insurgente é a força que
consegue se fazer representar em um processo institucional efetivo, que
tem a nação como espaço definido. Nesse sentido, o poder político
nacional consolidou a efetiva necessidade de ter um ponto de referência
central para enfrentar os mercados e suas manobras monetárias. Por
exemplo, deste ponto de vista, a renegociação do pagamento da dívida e
as tratativas com o Clube de Paris têm sido um momento de requalificação
da trama institucional da democracia argentina em relação aos esquemas
herdados do peronismo tradicional, levando em conta as mutações no
tecido social.
Do ponto de vista econômico, parece que foi dado um impulso
ao extrativismo, empurrado pelo agronegócio da soja, consolidando a
estrutura de relações com as grandes empresas multinacionais.
Seguramente, a disputa com o campo teve a ver com isso. Desse ponto de
vista, parece ter havido uma paralisação e uma forte intenção de
centralizar o poder por parte do governo. O extrativismo não é apenas um
fato econômico. Não se trata somente de discutir que pode ser útil
concentrar a produção em certos produtos, mas sim ter em conta que isso
funciona como negação efetiva de uma democratização econômica, no
sentido de que nega uma produtividade generalizada. Agora, a pergunta é
como faz o modelo atual para garantir um regime efetivo de bem-estar na
Argentina. Tenho a impressão de que as políticas sociais — tal como
acontece, por exemplo, na Venezuela — adotam cada vez mais a aparência
de concessões ao povo e, por tabela, cada vez menos parecem ser
consequência de uma mobilização geral produtiva, à qual corresponde um
welfare efetivo.
Consiste na utilização do Estado, por assim dizer, no interior do espaço global dos mercados, colocando no centro esse problema fundamental da democracia, que não é tanto o problema da liberdade, mas sim o da produção. Quero dizer que é no nível das condições materiais de produção que se desempenham, em essência, o devir democrático e a conquista de novas liberdades.
Como você acredita que outros países da América Latina manejam a relação entre welfare e extrativismo? Pensemos nas experiências importantíssimas de Venezuela e Brasil.
Já mencionei o que se passa na Venezuela. Não sei se
podemos chamar de welfare, mas há ali, sem dúvida, uma difusão de
serviços às comunidades com significativo salto político e tecnológico
com o apoio cubano (médicos, professores etc). Foi algo muito
importante, na medida em que houve um constante crescimento no nível de
expectativa de vida. Sem dúvida, uma verdadeira democratização da
sociedade supõe enfrentar muitas dificuldades. Por exemplo, os problemas
que se abateram sobre as missões, ao mesmo tempo em que se forma uma
nova burguesia, tão ativa quanto espoliadora. Tenho uma avaliação mais
positiva do processo brasileiro, que conta com condições excepcionais do
ponto de vista dos recursos naturais e sociais. Há, de fato, uma
situação muito afortunada, mas não há dúvida de que a política de Lula
foi capaz, efetivamente, de permitir que todos participassem do
desenvolvimento, configurando uma sociedade aberta, em termos
democráticos e produtivos. Lula desencadeou uma luta de classes
contínua, contra uma burguesia e um setor capitalista fortes e com
grande capacidade, o que supõe problemas enormes.
Não sei se essas lutas podem se dar de modo igual em
diferentes lugares. Não creio que sua política seja um modelo. Mas,
esses dias eu me perguntava sobre a ênfase do discurso oficial argentino
a respeito da batalha contra o grupo Clarín. Lula precisou enfrentar o
enorme poder da televisão brasileira e não fundou um só diário,
preferindo apoiar-se na capacidade de intervir sobre outros setores,
sustentado em uma politização das bases por meio dos grandes movimentos,
como o MST e os movimentos de favelados que foram extremamente
importantes. A situação argentina não parece contar hoje com uma
capacidade de recriar movimentos sociais dessa magnitude, ainda que eu
tenha muitas dúvidas a esse respeito. De toda a maneira, me parece que o
problema da democracia se mostra com toda clareza na América Latina,
isto é, que ela já não pode ser pensada como um território periférico,
pois em muitos aspectos constitui um cenário central para todos nós.
A mim parece que quando o Estado se pronuncia contra o
neoliberalismo, ele mente. Existe toda uma série de acordos específicos
com multinacionais. É um pouco o que aconteceu aqui (na Argentina) no
momento da crise do campo. Dentro do marco no qual surgem esses acordos,
atuam as empresas nacionais e os empreendimentos cooperativos imersos
na lógica capitalista. Esses governos estão contra o neoliberalismo?
Talvez seja melhor dizer: estão contra as extremas consequências do
neoliberalismo, que são aquelas que buscam anular o welfare. Mas essas
são apenas as consequências extremas.
Tenho a impressão que há uma identidade completa entre
capital financeiro e extrativismo. Mesmo que os governos progressistas
da América do Sul tenham construído novas relações de força em relação
aos mercados financeiros, o certo é que esses capitais seguem
funcionando a partir da expropriação do valor produzido pela cooperação
social. É certo que o capital financeiro continua sendo o elemento que
unifica o complexo social, de um modo abstrato, é verdade, porém
efetivo. E não se trata de uma intervenção que venha de fora, de um modo
imperialista: ao contrário, trata-se de uma intervenção que condiciona a
máquina social inteira, e busca prefigurá-la. Por isso é insuficiente
toda tentativa de lhe opor meramente uma estrutura de regulação
vertical. O problema político que se impõe é, na verdade, como
articular contra isso as pluralidades produtivas. Eu não vejo uma
proposta diferente.
Creio que isso se trata, efetivamente, de um verdadeiro
problema. Vejo que, por esses dias, fala-se muito [na Argentina] dos
panelaços. Para além do sentido político que possui o movimento — pelo
que escuto aqui, é um movimento basicamente de direita –, trata-se de
fenômenos que não se expressam no nível institucional, mas no das
multidões. Coloca-se a pergunta: como se pode dizer que uma multidão é
“boa” ou “má”? Creio ter uma resposta, embora ela seja abstrata: o que
distingue uma boa multidão da má é o que chamo de comum. Trata-se de uma
hipótese teórica que abarca também uma noção de democracia substancial,
não como algo meramente formal. Eu me refiro à democracia enquanto
capacidade de organizar um conjunto de relações, e extrair delas uma
consciência política. O comunismo não é algo que pode brotar do comum de
modo direto. Por isso, há de se criar formas políticas capazes de pôr
as singularidades em relação, e de dar-lhes uma forma institucional no
decorrer do processo.
Creio que depois da grande polêmica contra o Estado-nação, e
também frente ao poder de inovação capitalista, devemos refletir sobre
os termos nos quais se considera a questão hoje, a partir de uma visão
de esquerda. Na Europa, o fracasso da esquerda consiste em não ter
conseguido ir além do Estado-nação e de não chegar a imaginar uma gestão
do poder por fora e para além dele. O defeito da esquerda europeia é
ter identificado a própria ideia de governo como uma única instância. Ao
identificar a ideia de governo à de Estado nacional, a capacidade de
imaginar formas de governo sobre os mercados ficou bloqueada, uma vez
que eles possuem poderes que excedem as fronteiras dos países. E então,
acontece que os mercados criam por eles mesmos suas instância de
governo. Assim, o Banco Central atua como representante da rede
europeia: é disso que se trata o comunismo do capital. Na América
Latina, as coisas se dão de outro modo, embora também aqui se trate de
superar visões que se fecham nos limites dos projetos
nacionais-extrativistas. E me parece que a possibilidade de articular
uma espacialidade mais ampla passa pela compreensão do papel
desempenhado pelo Brasil.
Porque o Brasil produz mais do que produzem os demais
países da América Latina, e tem uma enorme capacidade de atração no
nível internacional, fato que o coloca necessariamente em posição
hegemônica. Esse problema se situa fora do conceito de hegemonia que
propõe Laclau, referido exclusivamente ao nível nacional, e que exclui a
necessidade de levar a sério o nível regional. Creio que teríamos de
pensar em um equilíbrio da relação entre espaços nacionais e regionais a
partir de uma colaboração real. Porque se os países se fecham na
exportação de seus recursos naturais, é muito fácil que passem a
competir uns com os outros, ao estilo do Oriente Médio, mas sem xeique.
Seria importante voltar a trabalhar sobre as noções de
Marx, tais como capital constante e capital variável, além de capital
fixo e capital circulante, para ver como essas categorias se modificam a
partir da hegemonia do capital financeiro. O paradoxo é que, ao mesmo
tempo que as finanças constituem atualmente o próprio poder do capital, a
força de trabalho está determinada por novas formas de existência em
virtude de sua mobilidade, da incorporação do conhecimento e do fato de
que sua cooperação tornou-se autônoma. Neste sentido, pode-se dizer que o
trabalho vivo sofreu uma mudança antropológica: o homem-máquina,
tomando aqui como exemplo a imagem de Deleuze e Guattari, se apropriou
de elementos do que Marx tradicionalmente chamou de capital fixo, isto
é, as máquinas. Essa mutação supõe que o capital já não dirige o
trabalho de modo direto, mas sim à distância, capturando o trabalho a
partir de dispositivos financeiros. Trata-se de um capital que capta o
resultado do trabalho em rede. Esta é uma grande diferença, que implica
uma série de consequências políticas.
Por exemplo, a respeito da questão da propriedade, que
concerne cada vez menos à posse imediata de um bem e mais à apropriação
de uma série de serviços. A propriedade depende cada vez mais do
conjunto do trabalho que se organiza em torno da posse. A composição
desse trabalho se dá como uma realidade inteiramente bipolítica, que
implica um movimento de subjetivação fundamental. Me parece que a
reconstrução de um pensamento revolucionário deve se desenvolver sobre
este terreno, no sentido de ligar a análise dessas transformações à
utopia: nisso, Maquiavel, Lenin e Gramsci continuam sendo muito atuais.
Creio que hoje se coloca o problema da reapropriação da
riqueza comum, processo que só poderá se dar por meio da moeda do comum,
de modo a torná-la o mais extensa possível, aceitando sempre a
abstração da relação, já que isso não pode ser revertido. Logo, nesse
território, só uma luta comum em nível global é que resolve o problema.
Não vejo outras soluções. Pode haver soluções particulares de ruptura,
expulsar uma multinacional, repetir operações com a de 2001, não pagar,
declarar a insolvência: são momentos de luta, mas não de solução. Esses
são problemas que se colocam politicamente de maneira muito forte, por
isso este é um momento maquiavélico puro.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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