julho 28, 2013

"O ‘laicatolicismo’ brasileiro: a violência doce da razão católica", por Silvio Pedrosa

PICICA: "No fundamental, somos, os brasileiros, católicos, mesmo os que não somos. Concedemos naturalidade à postura doutrinária conservadora dos mesmos, quando denunciamos com vigor os mesmos dogmas na boca de outros. As determinações desse fenômeno são históricas e sociais, estão além do campo estritamente religioso: tem mais que ver com a nossa formação enquanto país. Forjados na expansão colonial européia, fomos também forjados como território exclusivo de expansão da fé católica, embalada no contra-reformismo tridentino. Ao exclusivo comercial metropolitano correspondia um exclusivo religioso, cuja resultante foi a oficialização do cristianismo católico como religião nacional."




O ‘laicatolicismo’ brasileiro: a violência doce da razão católica


Não, não é. E nunca foi.
Não, não é. E nunca foi.
 
No laicatolicismo brasileiro, tudo é laico até que não seja católico.

A vinda do Papa Francisco para a Jornada Mundial da Juventude é o acontecimento da semana. O Papa está constantemente embutido nas programações de diversos canais televisivos e é o assunto de todas as rodas de conversa. No Rio de Janeiro, onde as ruas estão tomadas por ‘peregrinos’, é tema onipresente em todas as rodas possíveis; nos bares, restaurantes, nos ônibus… mesmo porque em todos esses lugares é impossível não topar com a indumentária padronizada dos fiéis.

No campo da política, as declarações do Papa reverberam pelos espaços prováveis de acolhimento das opiniões manifestadas (e mesmo nos nem tão prováveis assim) e se chocam com a crítica minoritária. E é a respeito da reverberação improvável e do excessivo comedimento no ataque às posições reacionárias que se trata esse texto. Não tanto para insistir nas obviedades, sempre tão pouco óbvias infelizmente, do conservadorismo atroz de posturas como a oposição a concessão de direitos à população LGBTT, a pretensão de controlar os corpos de homens e, principalmente, mulheres, ou da interdição moralista do debate sobre a descriminalização das drogas (que se alinha na trincheira da guerra às drogas que, de fato, é guerra aos pretos e pobres). Mas para tentar problematizar o verdadeiro bloqueio anti-crítica que se instaura quando essas opiniões, tão severamente criticadas quando expressas por líderes evangélicas como Silas Malafaia ou Marco Feliciano, estão inscritas no discurso papal e católico. Bloqueio em que se alinham não apenas conservadores, mas também liberais sinceros e pessoas inequivocamente de esquerda. O que explicaria a atitude de comedimento e não-enfrentamento frente aos descalabros papais, se os mesmos descalabros provocam a ira dos mesmos atores quando ditas e defendidas por líderes evangélicos? 

Primeiramente, algumas pessoas de esquerda (como o respeitado teólogo da libertação Leonardo Boff) são da opinião de que Mario Bergoglio, o Papa Francisco, representa uma ruptura com a orientação reacionária dos últimos papados e reaproximaria a Igreja Católica de um maior contato com os pobres e despossuídos, bem como creem que ele renovará as práticas da instituição frente à necessidade de uma igreja mais militante e combatente (sua ordenação jesuítica — os jesuítas tendo origem na expansão contra-reformadora que impulsionou a ICAR à disputa dos fiéis no além-mar e sendo denominados como ‘exército de Cristo’ — confirmaria essa inclinação). Diante dessa leitura (cujo endosso não damos em hipótese alguma, preferindo seguir as boas análises de Breno Altman e Hugo Albuquerque, onde Francisco se aproxima mais a um Wojtyla do século XXI, imiscuindo-se no campo dileto das esquerdas bem-sucedidas da América Latina, o combate à pobreza e à desigualdade, e tendo como objetivo ser, tal como o polonês João Paulo II, uma ponta de lança da ofensiva da direita neoliberal no continente), a continuidade do corpo doutrinário conservador parece aceitável em face dos avanços que se percebe. Em segundo lugar, apontam-se diversos motivos para não dar bom combate às posições reacionárias do catolicismo: o Papa e os católicos não seriam virulentos como os evangélicos (o que ficou bastante discutível com fatos recentíssimos), a crítica seria contraproducente politicamente, haveria a necessidade de se respeitar a fé alheia, entre outras. Em comum, apenas a manifestação de uma tergiversação variada e sem nenhum fundamento realmente razoável. Mais do que isso, a manifestação do que se pode chamar o ‘laicatolicismo’ brasileiro.

O que chamo de laicatolicismo brasileiro é essa violência doce da razão católica que domina a conformação das opiniões, o consenso por trás da formação do consenso, o horizonte mesmo onde se pode pensar as relações das religiões com a vida, a política, ou seja, no seu atravessamento biopolítico. Porque a situação desses debates, a linha de frente da defesa do discurso papal sendo capitaneada por pessoas de esquerda e sinceros adversários do fundamentalismo de matriz evangélica, não cessa de o provar: no Brasil, tudo é laico, até que não seja católico. 

Assim, os gritos contra a ‘teocracia evangélica’ ignoram olimpicamente que a capacidade desse grupo sócio-relogioso ou mesmo sua expressão político-institucional — mesmo a partir do crescimento das últimas décadas — são insuficientes para sustentar tais posições como consensuais, e que, portanto, é necessário que uma maioria laico-católica se poste na retaguarda das escaramuças neopentecostais. Qualquer motivo ou razão para indignar-se seletivamente contra os evangélicos, ou não indignar-se contra os católicos, é brandido. E isso, justamente, porque é a razão católica que comanda os termos do debate, que diz o que pode e o que não pode ser dito.

Dessa forma, ignora-se, por exemplo, o histórico envolvimento da Igreja católica com movimentos anti-democráticos (não à toa as marchas de 1964 eram marchas ‘com Deus’) e todas as suas ofensivas contra direitos de minorias e ataques à laicidade do estado*: o ensino religioso em escolas públicas, o ataque aos direitos das mulheres, como no caso atual do PLC 03/2013, ou a intervenção contra a garantia dos direitos reprodutivos no documento final da Rio+20, os gastos públicos com um evento do porte da JMJ, ou mesmo a condenação do atual Papa a concessão de direitos civis à população LGBTT (presente em sua primeira encíclica).

Ao laicatolicismo brasileiro, fortíssimo – capaz de (eu vi!) fazer sorrir os moradores da Tijuca, bairro de classe média do Rio de Janeiro, fortemente cioso do seu direito à imperturbabilidade, ante o estrondo de um bumbo tocado nas dependências de um mercado, com direito a exclamações a respeito da beleza daquela ‘fé’ –, some-se o estilo popularesco de Sua Santidade e talvez se consiga compreender como, à esquerda e à direita, todos parecem magnetizados pelo Papa dos pobres o seu rebanho.

No fundamental, somos, os brasileiros, católicos, mesmo os que não somos. Concedemos naturalidade à postura doutrinária conservadora dos mesmos, quando denunciamos com vigor os mesmos dogmas na boca de outros. As determinações desse fenômeno são históricas e sociais, estão além do campo estritamente religioso: tem mais que ver com a nossa formação enquanto país. Forjados na expansão colonial européia, fomos também forjados como território exclusivo de expansão da fé católica, embalada no contra-reformismo tridentino. Ao exclusivo comercial metropolitano correspondia um exclusivo religioso, cuja resultante foi a oficialização do cristianismo católico como religião nacional. 

Da mesma maneira, o laicatolicismo é compromisso de estado: destina-se a tolerância mútua de espaços de atuação e funcionamento (o espaço secular conquistado para o estado sendo, aliás como sempre, uma conquista das lutas sociais e não dádiva concedida desde o céu das classes dirigentes). Nesse panorama, a emergência dos vários matizes de evangélicos, num sentido muito específico, é bastante benéfico para a crítica da crítica laica. Desembaralhando as cartas marcadas do jogo — em busca de um diferencial de competitividade no mercado da fé –, ‘o processo de pluralização do campo religioso brasileiro’, como afirmou Antônio Flávio Pierucci¹, desmonta o consenso e evidencia o mal-estar do secularismo à brasileira. O que não pode passar desapercebido é o correto dimensionamento das forças em jogo, sendo fundamental a percepção de que o grito do fundamentalismo evangélico não existiria sem o silêncio cúmplice (e sócio) da maioria laico-católica (e que em ambos os campos, católico ou evangélico, como em quaisquer campos, há espaço para o trabalho militante da esquerda que queira agenciar-se aos aspectos positivos, certamente existentes). Tendo percebido o que está no palco, não se pode demorar a perceber quem está nos bastidores da produção (do consenso).

* À guisa de manutenção da unidade do texto não aprofundaremos o mérito da questão, mas tampouco a bandeira liberal (irrealizável do ponto de vista prático) do estado laico nos parece uma saída para o problema que se enfrenta.

1. Antônio Flávio Pierucci, ‘Religiões no Brasil’ In: André Botelho & Lília Moritz Schwarcz, Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos, 2012, p. 67.

Fonte: O lado esquerdo do catolicismo

Nenhum comentário: