PICICA: "Fica evidente que são os interesses
das classes capitalistas que determinam o transporte nas cidades, e que
são eles que se beneficiam de seu funcionamento. Nesse quadro, lutar
pelo direito ao transporte – o que pode configurar-se em lutas pela
redução da tarifa, ou mesmo contra a existência dela, mas também por
melhorias na qualidade do serviço – significa lutar pela liberdade, pelo
direito à cidade em oposição ao controle do espaço público.
[...]
De
um lado, os técnicos do transporte se debruçam sobre o que chamam de
crise de financiamento e explicam uma crise que é estrutural dizendo que
a mesma se dá pelos altos custos do setor e a insuficiência da tarifa
para bancá-los, criando soluções mirabolantes que vão da renúncia fiscal
à “eliminação das gratuidades socialmente desnecessárias”, mantendo o
modelo de exploração e a mercantilização do direito de ir e vir das
pessoas. Do outro lado, preocupado em resolver a crise de mobilidade da
população, alijada do direito à cidade, a proposta do MPL é inverter
essa lógica com o fim da tarifa e o custeio indireto do serviço, que
seria financiado por toda a sociedade (e não mais apenas pelos usuários)
onerando os setores mais ricos [1]."
Lutas sociais pelo transporte: uma breve introdução
13 de julho de 2009
Lutar pelo direito ao transporte
significa lutar pela liberdade, pelo direito à cidade em oposição ao
controle do espaço público.
Nos últimos anos, especialmente a partir
de 2003 (ano da histórica Revolta do Buzu, ocorrida em Salvador),
intensas lutas têm sido travadas em torno da questão do transporte
coletivo em diversas cidades do Brasil e também em muitas outras partes
do mundo. Tais lutas refletem especialmente dois aspectos: o caráter de
classe do serviço de transporte dentro da sociedade capitalista e a
crise de seu modelo atual de exploração.
Iniciando nossa breve análise,
partiremos do seguinte pressuposto: se existem lutas sociais, é porque
existem conflitos sociais; e se existem conflitos sociais é porque as
diferentes classes estão em permanente antagonismo umas em relação às
outras. Dito isso, fica a dúvida: quais são então os atores
(conseqüentemente as classes) em disputa?
De forma simplificada podemos dizer que
são os usuários e trabalhadores do sistema, os empresários, e os
gestores estatais. Pela dinâmica contraditória e complexa da questão, em
determinados momentos os interesses de cada setor podem se aproximar e
em alguns momentos até mesmo se conjugar, mas isso sempre de forma
efêmera e transitória, pois são incompatíveis.
O caráter de classe reflete-se na forma
como o transporte coletivo é organizado e ofertado na sociedade
capitalista. Transformado em mercadoria, sua lógica não pode ser outra
senão a lógica do lucro, que rege as relações entre usuários
(consumidores) e empresários (vendedores), e empresários (patrões) e
trabalhadores do sistema (empregados). Assim, o deslocamento dentro das
cidades transforma-se em produto e a (i)mobilidade urbana reflete essas
relações socialmente determinadas.
Mais do que uma questão de ordem
técnica, como é apresentada pelos gestores e pela tecnocracia
dominantes, também de acordo com seus próprios interesses, o transporte
coletivo e seu atual quadro de crise têm um caráter eminentemente
político e é só por meio desse prisma que o problema pode ser
solucionado.
A mobilidade, o direito de ir e vir,
enfim, a liberdade de transitar pelas cidades são fundamentalmente
mediados de acordo com a estrutura de classes presente em nossa
sociedade. Dessa forma, quem tem mais dinheiro movimenta-se mais e
melhor, enquanto aqueles que têm menos, pouco se movimentam e fazem isso
da pior forma possível – quando não estão completamente imóveis, presos
nas periferias das cidades por não conseguirem pagar os altos custos
das tarifas ou nem mesmo encontrarem pontos de ônibus próximos de onde
vivem. Além de garantir a natureza mercantil do transporte no
capitalismo, a tarifa do transporte público constitui uma barreira,
simbolicamente demonstrada pela catraca, que impede e exclui aqueles que
não possuem recursos financeiros para transitarem pela cidade. Por isso
a tarifa e a forma como o transporte público é organizado hoje
constituem mecanismos bastante avançados de controle social, privando o
grosso da população de transitar em determinados locais, dias e horários
e oferecendo à elite mais uma forma de controlar o espaço das cidades.
Sem transporte coletivo não existe vida
nas cidades, não existe circulação de pessoas, de consumidores, nem o
deslocamento dos trabalhadores aos seus postos de trabalho; sem
transporte público, portanto, as cidades não funcionariam. Nessas
condições, nada mais óbvio do que transformar o transporte em negócio,
reproduzindo a lógica do sistema e fazê-lo funcionar para a produção e
comercialização de serviços e mercadorias. O “direito” à mobilidade e à
cidade transforma-se em um produto comercializado no mercado
capitalista, que organiza esse “serviço público”, beneficiando a
estrutura produtiva da sociedade e marginalizando os interesses
populares. Basta pensar no preço da tarifa, na disposição das linhas e
trajetos e comparar a oferta de transporte nos horários reservados ao
trabalho e ao estudo (etapa de qualificação e formação da futura
mão-de-obra) com a oferta desse mesmo serviço nos finais de semana e
demais horários que não são os de entrada e saída dos trabalhadores em
seus locais de trabalho e dos estudantes nos seus locais de ensino.
Fica evidente que são os interesses
das classes capitalistas que determinam o transporte nas cidades, e que
são eles que se beneficiam de seu funcionamento. Nesse quadro, lutar
pelo direito ao transporte – o que pode configurar-se em lutas pela
redução da tarifa, ou mesmo contra a existência dela, mas também por
melhorias na qualidade do serviço – significa lutar pela liberdade, pelo
direito à cidade em oposição ao controle do espaço público.
Feitas essas curtas e sintéticas
colocações, cabe-nos agora falar da crise do atual modelo de exploração
do transporte coletivo. Trataremos desse tema de forma bastante genérica
e esquemática, simplificando propositalmente seu vasto conteúdo.
Como dissemos no início do texto,
especialmente a partir de 2003, intensas lutas em torno da questão do
transporte têm sido travadas. Mas, ao contrário do que se pode pensar,
não é de hoje que o problema do transporte tem gerado grandes revoltas
populares.
Entre 28 de dezembro de 1879 e 1º de
janeiro de 1880, a cidade do Rio de Janeiro foi palco da chamada Revolta
do Vintém, protesto popular de imensa radicalidade contra a cobrança de
vinte réis (ou seja, um vintém) nas passagens dos bondes da cidade, que
somente após virar os bondes e arrancar os trilhos da Rua Uruguaiana
conseguiu conquistar a revogação do tributo. Em Salvador, em 1930, em
protesto contra os maus serviços e tarifas altas, o povo tocou fogo em
60 bondes da Cia. Circular de Carris da Bahia, e em agosto de 1981
ocorreu o “quebra-quebra” contra o aumento da tarifa, deixando um saldo
de três mortos, dezenas de feridos e 600 ônibus danificados. Exemplos
como esses não faltam na história de outras cidades do país, como
Recife, São Paulo e Florianópolis.
Entretanto, nos últimos anos o desgaste
do atual modelo tem gerado grandes revoltas e manifestações em várias
cidades, todos os anos, a cada aumento de tarifa. Seria muito difícil
realizar um levantamento de todas essas revoltas, mas não seria justo
deixar de citar a histórica Revolta da Catraca, um evento que sem dúvida
nenhuma marcou a história de Florianópolis.
Foi a partir da vitória do povo
organizado de Florianópolis em 2004 – ano da primeira revolta da
catraca, quando milhares de pessoas saíram às ruas para impor pela ação
direta popular a revogação do aumento das tarifas decretado naquele ano –
que as bases para a formação do Movimento Passe Livre (MPL), um
movimento social de luta pelo transporte de âmbito nacional, foram
lançadas. E se foi na esteira desse processo que o MPL se formou, foi no
ano seguinte, após a segunda revolta da catraca – igualmente grandiosa,
impondo uma vergonhosa derrota à elite da cidade, que teve que recuar
por dois anos seguidos em relação ao aumento da tarifa – que ele se
consolidou. O exemplo vitorioso de Florianópolis ecoou pelo país, dando
fôlego e animando a luta por todo Brasil, demonstrando a importância de
dois elementos: a espontaneidade das massas e a necessidade da
(auto)organização popular, que se combinam e complementam uma à outra.
Sem vontade, iniciativa e
participação ativa e espontânea das massas, não há luta vitoriosa; mas
sem projeto, organização e um trabalho cotidiano e contínuo, a chance de
uma vitória real é quase nula. Por isso, espontaneidade e organização
são elementos essenciais e de naturezas convergentes.
Após um curto processo de discussão e
amadurecimento, a bandeira inicial do movimento (o passe livre
estudantil) foi secundarizada – e mesmo abandonada em muitas cidades –
dando lugar ao projeto de Tarifa Zero no transporte coletivo para toda a
população.
De
um lado, os técnicos do transporte se debruçam sobre o que chamam de
crise de financiamento e explicam uma crise que é estrutural dizendo que
a mesma se dá pelos altos custos do setor e a insuficiência da tarifa
para bancá-los, criando soluções mirabolantes que vão da renúncia fiscal
à “eliminação das gratuidades socialmente desnecessárias”, mantendo o
modelo de exploração e a mercantilização do direito de ir e vir das
pessoas. Do outro lado, preocupado em resolver a crise de mobilidade da
população, alijada do direito à cidade, a proposta do MPL é inverter
essa lógica com o fim da tarifa e o custeio indireto do serviço, que
seria financiado por toda a sociedade (e não mais apenas pelos usuários)
onerando os setores mais ricos [1].
Ao tratarmos a crise de mobilidade como
produto da crise de financiamento não enxergamos a chave do problema: o
controle privado e a lógica mercantil sobre o direito de ir e vir das
pessoas. Enquanto essa realidade não for transformada, continuaremos a
ver o transporte em crise e as lutas sociais pelo transporte não
tardarão em crescer. Passa Palavra
Nota:
[1] Para entender melhor a oposição
entre “crise de financiamento” e “crise de mobilidade”, ver o artigo de
Manolo “Transporte coletivo urbano: crise de financiamento vs. crise de
mobilidade”, disponível aqui.
Fonte: Passa Palavra
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